Visões
femininas sobre o mundo pós-desenvolvido.
Por Rosa Alegria*
O Dia Internacional da Mulher não é apenas
para cumprimentar as mulheres que admiramos, mas também para lembrar que depois
de 50 anos de revolução feminista as mulheres carregam o maior peso da
desigualdade.
Em 2008 fui estudar no Schumacher College,
(Totnes, sul da Inglaterra) querendo aprofundar meu conhecimento sobre a
sustentabilidade -tema que até então achava que dominava, dando palestras,
escrevendo artigos, oferecendo consultorias.
Fui atrás de um tema instigante: o
pós-desenvolvimento. Já nas primeiras aulas do programa “Development: What
Next?” (Desenvolvimento: o que vem depois?) me deparei com o pensamento
radical (no melhor sentido da palavra) de Vandana Shiva e Gustavo Esteva. A
cada instante só lembrava daquela paráfrase grega do “sei que nada sei”.
Durante o curso, o impacto foi crescendo. Eram
descobertas fascinantes na primeira semana. Com a mente revirada do avesso,
resolvi passar uma noite em claro para refazer uma apresentação que iria expor
na Bélgica por ocasião de uma conferência de mulheres cujo tema central
era o desenvolvimento feminino.
Dei uma escapada do curso e fui para a cidade
de Liége atender o compromisso. Iniciei minha apresentação formulando uma
questão que mudou o rumo dos debates: que tipo de desenvolvimento nós,
mulheres, queremos?
Voltei para a Inglaterra e concluí o curso. Com a
cabeça ainda do avesso, passei a refletir sobre esse desenvolvimento
fabricado pelo poder masculino e pelos países economicamente mais fortes.
Essa reflexão não só elevou meu nível de
consciência sobre o que estava diante dos olhos (e que eu ainda não estava
enxergando bem), mas também antecipou o futuro que já emergia do meu
desconforto com a realidade que tem afetado especialmente as mulheres.
De lá pra cá, tenho pensado na proximidade
construtiva entre o universo feminino e os novos modelos de
desenvolvimento, pautados pela colaboração entre seres, comunidades, cidades e
nações.
Que desenvolvimento é esse?
Em vez de fomentar a inclusão,
a integração, o cuidado e o acolhimento, tão próprios do universo
feminino, esse mundo que se diz desenvolvido tem se sustentado na
segregação, exclusão e fragmentação dos sistemas humanos e naturais, fazendo a
sua própria espécie chegar cada vez mais perto do fim.
O desenvolvimento capitalista tem gerado enormes
riquezas para alguns, mas devastado o planeta. A biodiversidade está em
extinção a uma taxa mil vezes mais rápida do que a taxa natural observada nos
últimos 65 milhões de anos
Não foi capaz de gerar bem-estar humano em
larga escala (de acordo com recente estudo do Centro para a Saúde e Meio
Ambiente da Escola de Medicina de Harvard).
Há muito o que ser reparado e reconstruído pela
ótica feminina. O ônus da devastação ecológica e do crescimento irresponsável
pesa ainda mais sobre as mulheres em suas múltiplas funções sociais e em sua
condição biológica de quem gera a vida.
Não há melhor momento do que esta crise para
repensarmos o tipo de desenvolvimento que queremos e como inserir princípios
femininos que traduzam a quintessência de um mundo pós-desenvolvido.
O desenvolvimento do crescimento ilimitado não
pode continuar justificando a destruição ambiental e prejudicando a qualidade
de vida da humanidade, em nome do crescimento do PIB.
Para entender o desenvolvimento tal qual foi
concebido nos últimos cinquenta anos, temos que passar pela histórica dualidade
entre os que “possuem” e os que “não possuem”, entre o Norte e o Sul, entre os
desenvolvidos e os subdesenvolvidos.
Esse é um modelo criado pelos vencedores da
Segunda Guerra, em particular, pelos EUA que passaram a orquestrar a economia
mundial na base da dominação e da exclusão.
A felicidade que antes era preenchida pela
suficiência foi substituída pela necessidade insaciável que movimenta os
mercados e a roda-viva da economia, perpetuando a dependência do consumo e
acendendo a chama da ganância.
Populações inteiras e plenas de potencial
criativo foram colonizadas pela ideia de que há algo além de suas
possibilidades, gerando um sentimento de eterna frustração em torno daqueles
que não foram incluídos no sistema econômico.
O Dia Internacional da Mulher não é apenas para
cumprimentar as mulheres que admiramos, mas também para lembrar que depois de
cinquenta anos de revolução feminista as mulheres carregam o maior peso da
desigualdade.
Falando das brasileiras: a cada 12 minutos morre
uma mulher vítima de violência doméstica; ocupam precariamente 8% dos cargos
políticos do país.
Representam globalmente 70% dos analfabetos e
apesar de serem as responsáveis pelo cultivo da maior parte dos alimentos que
comemos, não têm acesso à propriedade das terras.
Das duzentas maiores empresas brasileiras apenas
três têm uma mulher no comando e certamente muitas delas sob modelos de
liderança masculinos hostis à sua realidade feminina.
Diga-se de passagem, já há algum tempo, uma
corrente de mulheres bem-sucedidas em suas profissões, competentes e que
ocuparam cargos importantes nas empresas, abriram mão de sua carreira para
cuidar da família em busca de um alivio emocional.
Desenvelopando
o desenvolvimento
Realmente não é bem esse o desenvolvimento que
vai fazer a humanidade florescer e tornar possível a vida na Terra. Em resposta
a esse insustentável modelo, muitos movimentos e inovações estão
(des) envelopando esse desenvolvimento que na gênese da palavra traduz o
des-fazer do que poderia já estar feito, do des-envolver daquilo que poderia
envolver o coletivo no econômico construtivo.
Grandiosas mudanças estão emergindo como frentes
não só de resistência como (e principalmente) de evolução.
Somos todos da geração pós-guerra e vivemos ainda
o desenvolvimento revestido de crescimento insustentável. Estamos cada vez
mais deslocados no ambiente de trabalho.
Queremos pular o muro para entrar no quintal dos
empreendedores que fazem do Brasil destaque mundial entre os que fazem por
conta própria (estudo GEM Global Entrepreneuship Monitor de 2016).
Sistemas educacionais arcaicos já esgotaram nossa
paciência, e principalmente a paciência dos que ainda têm de sentar em bancos
escolares pontualmente. Mas muitas inovações começam a transformar escolas
em centros de genuíno saber.
Nesse fim de ciclo aparecem os sintomas como, por
exemplo, as erupções conservadoras da era Trump e a atual onda conversadora
pipocando pelo mundo.
Mas o futuro está mais perto do que se imagina.
Grandes transformações estão a caminho. Uma nova civilização já está
germinando.
A cultura patriarcal que incorporamos durante
oito mil anos está por um fio, seja na sala de aula, no trabalho ou dentro de
casa.
A visão integral da realidade está desinstalando
a velha ideia de separação entre Ciência e Espiritualidade, Norte e Sul, Razão
e Emoção, Feminino e Masculino, Esquerda e Direita, Trabalho e Lazer,
Humanidade e Natureza.
A competição já é palavra indigesta nas rodas de
conversa. A colaboração entra como valor nos planos de negócio. O sistema
financeiro começou a colapsar em 2008 (ano em que estudei no Schumacher) e
ainda está colapsando.
Novos indicadores entram nas agendas públicas
fragilizando a lógica do PIB. Países com mais recursos naturais já representam
contrapartida na falência dos recursos financeiros.
O acordo de Paris consolida a constatação de que
o planeta está fervendo, incluindo a febre raivosa do Trump.
Escolas renomadas de business já incluem a
felicidade como indicador evolucionário. Valores femininos já integram o perfil
das cartilhas de RH das grandes empresas.
O mundo pós-desenvolvido requer um olhar mais
feminino simplesmente porque “uma mulher é um circulo pleno; dentro dela está o
poder de criar, nutrir e transformar.
“Uma mulher sabe
que nada pode se concretizar sem luz. Vamos chamar a voz e o coração da
mulher para nos guiar nesta era de transformação planetária”. (Diane Mariechild).
* Rosa Alegria,
Master of Sciences, há 15 anos pioneira em Estudos do Futuro no Brasil,
academicamente certificada pelo mais reconhecido centro mundial nessa área:
University of Houston, Clear Lake, USA. Fundadora do NEF – Nucleo de Estudos do
Futuro, na PUC/SP. É colunista da Envolverde.
Fonte: Diário
do Comércio
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