Brincando
de guerra.
Nascidas em meio à ocupação americana no Iraque, as
crianças que vivem em Mossul agora assistem à batalha sangrenta contra o Estado
Islâmico. Nas brincadeiras de guerra, se fantasiam de soldados enquanto esperam
seu destino: matar ou morrer.
Por Yan Boechat, da Agência Pública –
Ainda faz frio nas primeiras horas de uma manhã
ensolarada de fevereiro quando um grupo de meninos entre 6 e 13 anos corre
entre as ruínas do que um dia foi um bairro de Mossul, no norte do Iraque.
Eles se escondem por trás de torres de energia
destruídas, pulam para dentro dos buracos abertos pelos ataques aéreos e, volta
e meia, disparam com suas armas imaginárias. São rifles AK-47, dizem eles, os
mesmos usados pelos militantes do Estado Islâmico que dominaram a segunda maior
cidade do Iraque por quase dois anos e meio. O armamento pesado é feito com
cabos de vassoura, restos de caixotes para o transporte de frutas ou qualquer
pedaço de madeira que lembre vagamente uma arma. Um deles chegou a criar um
sistema de disparo com um elástico. Sua munição são as cápsulas de balas
deflagradas que cobrem as ruas de Mossul.
“Até agora matamos apenas uns 22”, conta Ali Hawl,
de 10 anos, cabo de vassoura cortado em punho, e um olhar sério de soldado.
“Mas ontem foi melhor, matamos mais de 50, foi uma grande batalha.” Seu irmão,
Ahmed, um ano mais velho, concorda. “Eles tentaram fugir, estavam com medo de
nós, mas não deixamos nenhum escapar, pegamos todos os ‘daesh’”, diz,
referindo-se aos soldados do EI com o acrônimo árabe de cunho depreciativo para
Estado Islâmico.
Acompanhados de um irmão de 8 anos e mais dois
amigos, os garotos passam o dia a caçar os militantes do Estado Islâmico que
habitam suas fantasias.
“Os mais difíceis de matar são os guerrilheiros
estrangeiros, principalmente os russos, esses são muito bons lutadores, não
fogem e temos tido trabalho com eles”, conta Mohamed Suri, um menino de 12 anos
que carrega seu pedaço de madeira como se fosse um bem treinado soldado, com o
dedo indicador apontado para a frente, como fazem os combatentes profissionais
para não acionar o gatilho por acidente.
Os cinco são moradores de um dos bairros
periféricos da parte leste de Mossul que assistiu às primeiras e mais
sangrentas batalhas entre as Forças Especiais Iraquianas e os militantes do EI
pela retomada da capital econômica e política do Califado Islâmico. Foram
semanas de combates intensos.
Apenas nesta região da cidade, os extremistas
atacaram o exército com mais de 300 carros-bomba, muitos deles dirigidos por
meninos com idade semelhante à de Mohamed e seus amigos.
Ali (último da esquerda), Walis (do centro) e
Mohamed (segundo da direita para a esquerda) brincam de solados com mais dois
amigos no bairro de Al Samah, em Mossul. Foto: Yan Boechat/Agência Pública.
Walis Hawl, o irmão menor de Ali e Ahmed, ainda
guarda vivas as lembranças daqueles dias. “Eu ficava debaixo da cama ou com
minha mãe. Era muito barulho e eu achava que íamos todos morrer”, conta ele,
com sua arma tão pequena quanto seu tamanho. Ao final da batalha, as ruas da
vizinhança estavam cobertas de corpos, que acabaram servindo como diversão.
“Jogávamos pedras neles, e batemos com um pedaço de pau nas suas cabeças,
acabamos com eles. Só não mexemos naqueles que os cachorros estavam comendo”,
diz, rindo, Ali, pouco antes de sair com sua equipe para uma nova caçada
naquela manhã do início de fevereiro.
A paz é exceção
Apesar de brutal, o cotidiano dos cinco amigos do
bairro de Al Samah é a regra em Mossul. Desde a chegada do Estado Islâmico à
cidade, em junho de 2014, as crianças têm sido vítimas frequentes tanto dos
extremistas como, agora, da guerra contra eles. Uma estimativa do Unicef, a
agência das Nações Unidas para a defesa das crianças, estima que quase 50% dos
moradores de Mossul são menores, com idade variando entre 0 e 12 anos.
Trata-se de uma geração que nasceu e viveu em meio
à guerra que consome o Iraque há quase 15 anos. Para essas crianças, momentos
de relativa paz são a exceção, não a regra. “É uma situação complexa em que as
crianças já estavam vulneráveis e agora continuam ainda mais”, diz Sharon Behn
Nogueira, a coordenadora do Unicef no Iraque. Só entre novembro do ano passado
e fevereiro deste ano, a agência contabilizou mais de 100 mil crianças que
saíram da cidade em busca de refúgio, muitas delas sem os pais.
Menino brinca com rifle imaginário em parque de
diversão destruído no bairro de Al Karama, em Mossul. Foto: Yan Boechat/Agência
Pública.
É o caso de Abdulah, de 12 anos. Seu pai foi morto
pelo Estado Islâmico, diz ele, por ter sido pego vendendo cigarros em Mossul,
um crime grave para os extremistas, que proíbem quase tudo que não existia nos
tempos em que Maomé vivia, no século 7. Sua mãe, viúva, acabou casando-se com
um militante de alta patente do EI e, com o avanço das tropas iraquianas na
cidade, fugiu para a Síria com o marido. “Ele não quis me levar, disse que
seria muito trabalho fazer a viagem com uma criança”, conta ele, resignado. Sua
sorte foi ter sido acolhido pela mãe de dois de seus amigos de rua que, com
ele, mendigavam em Mossul. “Eles são meus irmãos agora, somos uma família.” Os
quatro vivem em uma barraca no campo de refugiados de Hasan Shan, a 40
quilômetros de Mossul. A mãe dos amigos, e agora sua mãe, também é viúva e os
três passam parte do dia a pedir cigarros aos estrangeiros que visitam o campo.
“É para minha mãe, ela está na barraca”, diz Abdulah.
Ele, como a maioria das crianças que vivem em
Mossul, quer ser soldado. Assim que tiver idade, conta, vai se alistar no
exército. Seu objetivo, como quase de todos os garotos, é lutar contra os
militantes do Estado Islâmico. “Quero matar todos eles com uma arma de
verdade”, diz Abdulah. No campo de Hasan Shan, no entanto, nem ele nem os
milhares de meninos de sua idade podem fantasiar batalhas imaginárias para
descarregar a raiva e a frustração dos dias de terror: é proibida qualquer
brincadeira que tenha ligação com a guerra.
Armas de brinquedo, mesmo pedaços de madeira que
possam fazer lembrar vagamente um rifle, são proibidas. “Nem com o dedo podemos
fingir que temos um revólver, eles nos batem”, diz Said Hussein, o “irmão” mais
novo de Abdulah. “Precisamos tirar da cabeça desses meninos a ideia de que
lutar e matar é bom”, conta um dos guardas do campo, com um rifle AK-47
pendurado no ombro, responsável por disciplinar os meninos e suas brincadeiras.
Não será uma tarefa fácil. Nos dois anos e meio em
que o Estado Islâmico esteve controlando Mossul e região, as cerca de 1,5
milhão de crianças que viviam sob o seu domínio deixaram de ir para escolas
regulares. Todo tipo de educação tradicional foi suspensa e apenas os meninos
tinham o direito de frequentar as madrassas islâmicas. Lá, a maior parte do
tempo era dedicada a estudar o Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos, e, em
alguns casos, técnicas de combate.
Abdulah (o mais alto), de 12 anos, Said (o mais
baixo), de 7, e Khaled (o do meio), de 9, no campo de refugiados de Hasan Shan:
história comum. Foto: Yan Boechat/Agência Pública.
“As crianças chegam aqui com assuntos militares na
cabeça, não conseguem usar exemplos simples, como frutas ou objetos, para
ilustrar suas operações matemáticas mais básicas”, diz Mustapha Akim,
coordenador de uma escola instalada no campo de refugidos de Khazer, onde vivem
mais de 140 mil pessoas hoje, metade delas crianças. “Os meninos em geral fazem
contas com balas de rifles e suas representações emocionais quase sempre estão
ligadas a situações violentas, como decapitações ou assassinatos. É uma
situação extremamente complexa”, conta ele. Os serviços de atendimento psicológico
nos campos é carente, ocorre apenas uma vez por semana, e a demanda é
imensamente maior que a oferta. “Só os casos mais extremados são atendidos. Os
traumas cotidianos, esses eles terão que lidar sozinhos”, diz Akim, resignado.
Pesadelo e morte
Moamim Namim tem apenas 10 anos e é perseguido
constantemente por um pesadelo aterrador. Volta e meia ele sonha que está
pegando uma bala às escondidas em uma pequena loja de doces e é descoberto com
ela já na boca. Alguém o surpreende e o leva para a praça em frente a sua casa.
Ela está cheia de gente, seus pais estão entre os espectadores. Então um homem
de barba longa, negra, o agarra e coloca sua mão sobre um tronco de árvore
cortado. Com um golpe certeiro de machado, arranca sua mão direita.
Algumas vezes, o sonho muda.
Em vez da mão, sua cabeça é cortada. “Sempre
acordo, é muito ruim. O pior é quando cortam minha mão”, diz ele, sentado ao
lado de galões de combustível que ajuda a vender com seu pai, exatamente em
frente à praça de seus pesadelos. Não é preciso muito tempo de conversa para
entender por que Moamim tem pesadelos terríveis tão frequentes.
Criança vítima de estilhaços de morteiro é atendida
por paramédicos em hospital de campo na parte Leste de Mossul. Foto: Yan
Boechat/Agência Pública.
A praça de seus sonhos e de seu cotidiano era um
tradicional ponto de execuções do Estado Islâmico em Mossul até essa parte da
cidade ter sido retomada pelo exército iraquiano. Moamim, assim como muitas das
crianças da região, era incentivado a assistir às execuções. “Era bem ali”, diz
ele apontando para o largo agora semidestruído pela batalha que expulsou dali
os militantes do EI há poucos meses. “Às vezes eles usavam uma espada, às vezes
uma faca e em alguns casos as pessoas jogavam pedras, mas isso era só para
mulheres”, conta com naturalidade. Ele quer voltar a estudar. Mas, por
enquanto, seu pai não quer deixá-lo retornar à escola. “Quando eles saíram
daqui, eles avisaram que iriam colocar bombas em todas as escolas. Achamos
melhor esperar. Ele já está há tanto tempo sem ir, não fará diferença esperar
mais um pouco”, diz Ahmed Namim, enquanto pede ao filho que cobre a venda de
dois litros de gasolina para um motorista estacionado nas proximidades da
praça.
Para a maior parte dos mossulis, Moamim teve sorte
ao longo dos últimos três anos. Não pereceu na mão do Estado Islâmico e não
sofreu nenhum ferimento nos cinco meses de batalhas intensas que já dura a
tentativa de recuperar a cidade dos extremistas. Não existem números exatos
sobre o número de civis mortos em Mossul desde o início da ofensiva. O governo
iraquiano não divulga nenhum número e a maior parte das agências internacionais
diz não ter capacidade de fazer um monitoramento preciso. Apenas a organização
não governamental Iraqi Body Count se arrisca a fazer estimativas. De acordo
com a ONG, entre outubro do ano passado, quando a ofensiva contra Mossul teve início,
e fevereiro deste ano, mais de 7 mil civis foram assassinados em todo o Iraque,
sendo mais de 70% das mortes ocorridas naquela cidade, onde atualmente se
desenrola a maior campanha militar no Iraque desde a invasão americana em 2003.
Nos hospitais de campo que atendem soldados e civis
vítimas das batalhas, o número de crianças feridas e mortas é impressionante. A
reportagem da Pública acompanhou o cotidiano de alguns desses hospitais por
vários dias entre novembro e fevereiro e testemunhou dezenas de vítimas
infantis. “Esta é uma batalha diferente, com muitos civis, e as crianças são as
mais frágeis”, diz o capitão das Forças Especiais Iraquianas Ahmed Ali, um dos
médicos que atuam exclusivamente nesses centros de atendimento médico próximos
das frentes de batalha.
Crianças brincam ao lado de carcaça de carro bomba
em Mossul. Foto: Yan Boechat/Agência Pública
Nos momentos mais intensos, o hospital de Mossul
chega a receber até 200 vítimas civis apenas em um dia – quase metade crianças.
Muitas delas chegam a esses centros dilaceradas pelos morteiros, granadas ou
pelos estilhaços dos carros bomba. Ninguém sabe ao certo quantas morreram, mas
não seria leviano afirmar que os corpos de crianças já se contam aos milhares
nesta guerra.
Mais sangue infantil será derramado. Depois de
conquistarem a parte leste de Mossul, agora as forças iraquianas estão
invadindo o outro lado da cidade, cortada pelo rio Tigre. É uma área mais
densamente povoada, com ruas estreitas e elevações de terreno que prometem
tornar as lutas ainda mais sangrentas. Pela estimativa do Unicef, ao menos 350
mil crianças irão enfrentar esta que promete ser a fase mais brutal da retomada
de Mossul, por viverem na parte afetada – no total, a cidade abriga mais de
meio milhão de crianças.
A única certeza que há neste momento é que muitas
delas não sobreviverão.
Fonte: Agência Pública
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