segunda-feira, 6 de março de 2017

Uma história que não deveria ser escrita.
Por Baher Kamal, da IPS – 

Roma, Itália, 2/3/2017 – Esta é uma história que não deveria ser escrita – a de centenas de milhões de doadoras de vida cuja produção e produtividade são sistematicamente quantificadas em detalhadas estatísticas, mas cuja abnegação, sofrimento humano e negação de direito são apenas objeto de palavras.

É a história das mulheres que veem seus filhos e filhas morrerem enquanto fogem das guerras, ou são sequestradas para venda de seus órgãos, ou que foram recrutadas como meninas combatentes. É a história dessas mulheres que caem nas mãos de traficantes, que as vendem como escravas sexuais. O Escritório das Nações Unidas Contra a Droga e o Crime informa que as mulheres e as meninas constituem 71% das vítimas do tráfico de pessoas.

E é a história dessas mulheres e meninas que se convertem em vítimas de violência abominável cometida por seus familiares homens. Daquelas cujos empregadores violam continuamente seus direitos como trabalhadoras, e que inclusive são assassinadas por seus companheiros em alguns países, sete em cada dez mulheres apanharão, serão abusadas, violadas ou mutiladas durante sua existência, segundo denúncia da ONU Mulheres.

“A violência contra mulheres e meninas é uma violação dos direitos humanos, uma pandemia de saúde pública e um sério obstáculo para o desenvolvimento sustentável”, denunciou Ban Ki-moon, ex-secretário-geral da ONU. Foto: Belinda Mason

Também é a história de milhões de jovens que são obrigadas a se casar e engravidar de forma precoce, e daquelas submetidas à mutilação genital feminina (MGF). A Organização das Nações Unidas reconhece essa prática como violação dos direitos humanos, tortura e uma forma extrema de violência. A MGF nega às mulheres e às meninas sua dignidade e causa dor e sofrimento desnecessários, com consequências que perduram por toda a vida e inclusive podem ser fatais, recorda o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres.

A África e a região árabe estão entre os lugares onde se prática a MGF. A União Africana considera que se trata de uma prática extremamente dolorosa que viola os direitos humanos básicos. Seu impacto nas meninas e nas mulheres é multifacetário e afeta diversos aspectos de suas vidas, incluindo o bem-estar físico, psicológico e social, e as cicatrizes persistem pelo resto de suas vidas.

É a história de milhões de meninas sem acesso a educação, que, quando o têm, a maioria abandona devido à falta de serviços sanitários. Um estudo realizado, entre 2009 e 2014, pelo Alto Comissariado para os Direitos Humanos confirmou milhares de ataques contra escolas em pelo menos 70 países, muitos dos quais sofreram represálias por defender a educação das meninas.
A ONU aposta em um mundo no qual todas as mulheres e meninas tenham igualdade de oportunidades e direitos até 2030. Foto: ONU Mulheres

É a história de quase dois terços dos habitantes do mundo, que sofrem insuficiência no acesso aos serviços de saúde reprodutiva e de maternidade. O Fundo de População das Nações Unidas insiste em afirmar que o acesso universal à saúde reprodutiva afeta muitos aspectos da vida. Tem a ver com as relações mais íntimas das pessoas, incluída a negociação e a tomada de decisões dentro dessas relações, e com a interação dos provedores de saúde com respeito às opções anticonceptivas.

Também é a história de moças muito jovens que são sequestradas por grupos terroristas para saciar brutalmente seus apetites sexuais, como é o caso do Boko Haram, na Nigéria. E é a história das mulheres indígenas que cuidam do que resta de suas terras, que custodiam 80% da biodiversidade do planeta, mas cujos direitos e conhecimentos ancestrais são ignorados e até mesmo desprezados.

É a história das mulheres agricultoras que produzem até 80% dos alimentos, mas não têm o direito de serem donas de suas terras, possuírem insumos agrícolas e recursos, nem obterem pequenos créditos. 

E é a história de uma crescente desigualdade. A organização não governamental Oxfam calcula que, mantida a tendência atual, as mulheres demorarão 170 anos para conseguirem a mesma remuneração que os homens, para não falar de que metade da riqueza do planeta se encontra nos bolsos de apenas oito pessoas, todas elas homens.

O Dia Internacional da Mulher será comemorado em 8 de março com o lema As mulheres em um mundo do trabalho em transformação: para um planeta 50-50 em 2030. A ONU assegura que será “um momento para refletir sobre os progressos realizados, considerar como acelerar a Agenda 2030, impulsionar a aplicação efetiva dos objetivos da igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”, e fixou vários objetivos estratégicos da Agenda 2030:
  • Até 2030, garantir que todos os meninos e todas as meninas completem uma educação primária e secundária gratuita, equitativa e de qualidade.
  • Até 2030, assegurar que todas as meninas e todos os meninos tenham acesso a atenção, cuidado e educação pré-escolares de qualidade para prepará-los para o ensino primário.
  • Pôr fim a todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas de todo o mundo.
  • Eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas pública e privada, fundamentalmente o tráfico e a exploração sexual.
  • Eliminar todas as práticas nocivas, como o casamento infantil, o matrimônio prematuro e forçado e a mutilação genital feminina.
A ONU também assinala que o mundo do trabalho está em transformação, com importantes consequências para as mulheres. “Temos a globalização, a revolução tecnológica e digital, e as oportunidades que estas trazem, e por outro lado temos a crescente informalidade do trabalho, meios de subsistência e renda instáveis, novas políticas fiscais e comerciais e impactos ambientais, tudo o que deve ser abordado no contexto do empoderamento econômico das mulheres”, ressalta.

Todas essas palavras e desejos soam geniais. Entretanto, o Dia Internacional da Mulher representará, antes de tudo, outra bofetada no rosto da humanidade, que ainda não pode – ou não quer? – honrar de forma devida e efetiva aquelas que são as doadoras de vida.

* Este artigo é parte da cobertura especial da IPS por ocasião do Dia Internacional da Mulher, celebrado em 8 de março.


Fonte: ENVOLVERDE

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