Uma
história que não deveria ser escrita.
Por Baher Kamal, da IPS –
Roma, Itália, 2/3/2017 – Esta é uma história que
não deveria ser escrita – a de centenas de milhões de doadoras de vida cuja
produção e produtividade são sistematicamente quantificadas em detalhadas
estatísticas, mas cuja abnegação, sofrimento humano e negação de direito são
apenas objeto de palavras.
É a história das mulheres que veem seus filhos e
filhas morrerem enquanto fogem das guerras, ou são sequestradas para venda de
seus órgãos, ou que foram recrutadas como meninas combatentes. É a história
dessas mulheres que caem nas mãos de traficantes, que as vendem como escravas
sexuais. O Escritório das Nações Unidas Contra a Droga e o Crime informa que as
mulheres e as meninas constituem 71% das vítimas do tráfico de pessoas.
E é a história dessas mulheres e meninas que se
convertem em vítimas de violência abominável cometida por seus familiares
homens. Daquelas cujos empregadores violam continuamente seus direitos como
trabalhadoras, e que inclusive são assassinadas por seus companheiros em alguns
países, sete em cada dez mulheres apanharão, serão abusadas, violadas ou
mutiladas durante sua existência, segundo denúncia da ONU Mulheres.
“A violência contra mulheres e meninas é uma
violação dos direitos humanos, uma pandemia de saúde pública e um sério
obstáculo para o desenvolvimento sustentável”, denunciou Ban Ki-moon,
ex-secretário-geral da ONU. Foto: Belinda Mason
Também é a história de milhões de jovens que são
obrigadas a se casar e engravidar de forma precoce, e daquelas submetidas à
mutilação genital feminina (MGF). A Organização das Nações Unidas reconhece
essa prática como violação dos direitos humanos, tortura e uma forma extrema de
violência. A MGF nega às mulheres e às meninas sua dignidade e causa dor e
sofrimento desnecessários, com consequências que perduram por toda a vida e
inclusive podem ser fatais, recorda o secretário-geral da Organização das
Nações Unidas (ONU), António Guterres.
A África e a região árabe estão entre os lugares
onde se prática a MGF. A União Africana considera que se trata de uma prática
extremamente dolorosa que viola os direitos humanos básicos. Seu impacto nas
meninas e nas mulheres é multifacetário e afeta diversos aspectos de suas
vidas, incluindo o bem-estar físico, psicológico e social, e as cicatrizes
persistem pelo resto de suas vidas.
É a história de milhões de meninas sem acesso a
educação, que, quando o têm, a maioria abandona devido à falta de serviços
sanitários. Um estudo realizado, entre 2009 e 2014, pelo Alto Comissariado para
os Direitos Humanos confirmou milhares de ataques contra escolas em pelo menos
70 países, muitos dos quais sofreram represálias por defender a educação das
meninas.
A ONU aposta em um mundo no qual todas as mulheres
e meninas tenham igualdade de oportunidades e direitos até 2030. Foto: ONU
Mulheres
É a história de quase dois terços dos habitantes do
mundo, que sofrem insuficiência no acesso aos serviços de saúde reprodutiva e
de maternidade. O Fundo de População das Nações Unidas insiste em afirmar que o
acesso universal à saúde reprodutiva afeta muitos aspectos da vida. Tem a ver
com as relações mais íntimas das pessoas, incluída a negociação e a tomada de
decisões dentro dessas relações, e com a interação dos provedores de saúde com
respeito às opções anticonceptivas.
Também é a história de moças muito jovens que são
sequestradas por grupos terroristas para saciar brutalmente seus apetites
sexuais, como é o caso do Boko Haram, na Nigéria. E é a história das mulheres
indígenas que cuidam do que resta de suas terras, que custodiam 80% da
biodiversidade do planeta, mas cujos direitos e conhecimentos ancestrais são
ignorados e até mesmo desprezados.
É a história das mulheres agricultoras que produzem
até 80% dos alimentos, mas não têm o direito de serem donas de suas terras,
possuírem insumos agrícolas e recursos, nem obterem pequenos créditos.
E é a
história de uma crescente desigualdade. A organização não governamental Oxfam
calcula que, mantida a tendência atual, as mulheres demorarão 170 anos para
conseguirem a mesma remuneração que os homens, para não falar de que metade da
riqueza do planeta se encontra nos bolsos de apenas oito pessoas, todas elas
homens.
O Dia Internacional da Mulher será comemorado em 8
de março com o lema As mulheres em um mundo do trabalho em transformação:
para um planeta 50-50 em 2030. A ONU assegura que será “um momento para
refletir sobre os progressos realizados, considerar como acelerar a Agenda
2030, impulsionar a aplicação efetiva dos objetivos da igualdade de gênero e
empoderar todas as mulheres e meninas”, e fixou vários objetivos estratégicos
da Agenda 2030:
- Até
2030, garantir que todos os meninos e todas as meninas completem uma
educação primária e secundária gratuita, equitativa e de qualidade.
- Até
2030, assegurar que todas as meninas e todos os meninos tenham acesso a
atenção, cuidado e educação pré-escolares de qualidade para prepará-los
para o ensino primário.
- Pôr
fim a todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas
de todo o mundo.
- Eliminar
todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas
esferas pública e privada, fundamentalmente o tráfico e a exploração
sexual.
- Eliminar
todas as práticas nocivas, como o casamento infantil, o matrimônio
prematuro e forçado e a mutilação genital feminina.
A ONU também assinala que o mundo do trabalho está
em transformação, com importantes consequências para as mulheres. “Temos a
globalização, a revolução tecnológica e digital, e as oportunidades que estas
trazem, e por outro lado temos a crescente informalidade do trabalho, meios de
subsistência e renda instáveis, novas políticas fiscais e comerciais e impactos
ambientais, tudo o que deve ser abordado no contexto do empoderamento econômico
das mulheres”, ressalta.
Todas essas palavras e desejos soam geniais.
Entretanto, o Dia Internacional da Mulher representará, antes de tudo, outra
bofetada no rosto da humanidade, que ainda não pode – ou não quer? – honrar de
forma devida e efetiva aquelas que são as doadoras de vida.
* Este artigo é parte da cobertura especial da IPS
por ocasião do Dia Internacional da Mulher, celebrado em 8 de março.
Fonte: ENVOLVERDE
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