Na Reserva Extrativista
Cazumbá-Iracema, no Acre, moradores dão exemplo de uso sustentável dos recursos
naturais.
LETÍCIA VERDI, MMA (texto e fotos)
Enviada especial a Cazumbá-Iracema
Enviada especial a Cazumbá-Iracema
O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico
(Pronatec) Bolsa Verde, do Ministério da Educação em parceria com o Ministério
do Meio Ambiente (MMA), completa três anos em 2017. Na Reserva Extrativista do
Cazumbá-Iracema, no município de Sena Madureira, no Acre, mais de 350 pessoas
concluíram 15 cursos em 2016.
O Pronatec Bolsa Verde capacita moradores de áreas
inseridas no Programa Bolsa Verde em atividades que contribuam para a elevação
de renda e o uso sustentável dos recursos naturais. O Bolsa Verde atende a
população em situação de extrema pobreza, que vive em unidades de conservação e
assentamentos ambientalmente diferenciados, com o incentivo de R$ 300 a cada
três meses.
Segundo o mestre farinheiro da Resex do
Cazumbá-Iracema, Jair Gomes da Silva, os cursos do Pronatec Bolsa Verde
ensinaram as pessoas a viver dentro da floresta produzindo de forma
sustentável. “A pessoa tinha até vontade, mas não tinha conhecimento. O curso
nos deu isso: sobreviver aqui dentro sem desmatar”, diz. A Resex tem,
atualmente, pouco mais de 1% de área desmatada, segundo dados do Instituto de
Conservação da Biodiversidade Chico Mendes (ICMBio).
Jair destaca o caráter educativo dos cursos
inclusive em relação à alimentação. “As pessoas aprenderam a valorizar e comer
o que tem aqui. Deixar o refrigerante e trocar por um suco natural. Pegar uma
fruta e fazer um suco, um doce. Uma castanha, e fazer leite, óleo”, conta.
O empreendedor fez o primeiro curso de melhoramento
do processamento de farinha de mandioca em 2004, por uma parceria do ICMBio com
a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Distrito Federal (Emater).
De lá para cá, aprimorou a qualidade e a forma de fazer a farinha e já
multiplicou seu conhecimento para 14 turmas na Resex. “Trabalho com farinha e
tenho orgulho. É o meu sustento. É um alimento que é consumido cru e puro. Por
isso, é preciso muito cuidado e higiene”.
Jair criou uma farinha com castanha-da-Amazônia que
é um dos produtos de maior sucesso da reserva, vendida a R$ 250 a saca de 50
quilos – mais que o dobro da farinha comum. “O valor dela é agregado. Você trabalha
menos, desmata menos e seu lucro é maior”.
QUALIDADE DE VIDA
O analista ambiental do Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e gestor da Resex do Cazumbá-Iracema,
Tiago Juruá, nota que os cursos técnicos mudaram a vida das pessoas. “As
famílias estão aprendendo a melhorar e diversificar a produção, melhorando
assim a segurança alimentar e também a renda”.
Considerando o exemplo da farinha, ele explica que
a renda das famílias aumentou, com menos trabalho e menos área plantada – ou
seja, menor necessidade de conversão de áreas de floresta para “roçado”. “Menos
trabalho significa mais tempo para fazer outras coisas, como jogar futebol,
pescar, ficar com a família e descansar”, ressalta.
O líder comunitário e presidente da Associação dos
Seringueiros do Seringal Cazumbá, Aldeci Cerqueira Maia, conhecido como
Nenzinho, tem hoje 54 anos e, há 37, está envolvido com a organização
comunitária. Ele adotou um bigode em homenagem ao líder seringueiro e
ambientalista Chico Mendes. “Manter o modo de vida das populações tradicionais
garante a manutenção da floresta em pé. Se não valorizarmos os produtos
tradicionais e apoiarmos as comunidades na expansão do conhecimento, eles vão
acabar saindo da reserva. E se eles saem, a floresta fica entregue a outros”,
alerta.
O professor Leilson Ferreira Gomes, engenheiro
florestal e doutorando em geociências na Universidade de Brasília (UnB), diz
que aprendeu mais nos cursos, do que ensinou. “O conhecimento tradicional é
muito valioso, os acadêmicos só têm a aprender”. Leilson passou temporadas com
as comunidades mais isoladas da Reserva Extrativista, viajando até nove horas
de canoa para chegar até elas. Muitos de seus alunos são analfabetos e, ainda
assim, conseguiram acompanhar o curso. O ICMBio orienta que os ensinamentos
sejam trabalhados através da oralidade, com muita aula prática.
PLANEJAMENTO
O estudante e agricultor orgânico Daian dos Santos
Silva, 25 anos, dá ênfase ao que aprendeu em seis cursos: planejamento. “Antes
a gente trabalhava da forma que tínhamos aprendido com os nossos pais. Agora, a
gente planeja, se organiza. Trabalha menos e ganha mais”, conta. Daian pretende
fazer a prova do Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) no final deste ano e
cursar a faculdade de Direito na Universidade Federal do Acre (Ufac).
Muitos dos professores do Pronatec Bolsa Verde são
filhos da floresta, estudam e voltam para ensinar o que aprenderam a outros
produtores. A professora Janelda Nascimento de Lima (foto abaixo),
tecnóloga em Gestão Ambiental e pós-graduada em Geoprocessamento, cresceu na
comunidade Murumba, vizinha à Resex, estudou em Rio Branco e voltou à sua
comunidade para lecionar.
“Estou muito feliz, satisfeita pelo dever
cumprido”, diz. Ela ministrou o curso de operador de processamento de frutas e
hortaliças. Incentivou uma alimentação mais saudável, com os produtos locais, e
trouxe uma alternativa de renda para as famílias por meio de doces, compotas e
conservas.
Elínio Maia Soares, liderança jovem da comunidade
do Cazumbá, é o coordenador do grupo do açaí, formado após o curso de
açaicultor ofertado pelo Pronatec Bolsa Verde, em 2014. Em 2015, esse grupo
passou a trabalhar na agroindústria de polpa de frutas, construída com recursos
de uma parceria entre o ICMBio e o Serviço Florestal Americano.
“No curso, aprendemos boas práticas de colheita,
debulha, transporte e beneficiamento do açaí. Agora, temos a estrutura e os
equipamentos adequados para produzir a polpa de açaí. Tudo isso melhora a
qualidade do produto e assim podemos ter uma renda melhor, sem agredir a floresta”.
CLIMA AGITADO
O seringueiro e artesão Jilberto Miranda Maia (foto
abaixo), 54 anos, descobriu que o artesanato é um grande parceiro da
conservação. “Faço a fauna da região completa em borracha, moldada a mão”.
Tatu, jabuti, onça e outros animais ganham forma a partir de uma massa feita de
látex, chamada de seringa por eles, com serragem e limão – para coalhar a
borracha.
“Sabemos que o nosso clima hoje está muito agitado.
O seringueiro antes trabalhava no roçado sem nenhum problema. Hoje, você
trabalha até às nove horas da manhã e está morrendo”, diz Gilberto. “Por isso,
é tão importante manter a mata em pé”.
Raimundo Nonato Soares (foto abaixo), também
seringueiro, aproveitou os cursos do Pronatec para valorizar ainda mais a
floresta. “Como nascemos aqui, conhecemos árvore por árvore. Sabemos as que nos
alimentam e, aos animais. A floresta é vida, ela é quem nos dá a água, quem nos
dá o ar”.
Com os cursos, Nonato conta que aprendeu a usar os
produtos da mata não só para o consumo próprio e imediato. “O açaí, por
exemplo, é um produto que a gente usa desde os nossos pais e avós, preparado
sempre de modo artesanal. Hoje, já temos uma agroindústria e podemos vender
para o comércio local, tendo a possibilidade de tirar uma renda bem melhor”.
A esposa de Nonato, Leonora Siqueira Maia,
conhecida como Nói, é coordenadora do grupo de artesanato da Reserva, que
produz peças decorativas em látex, com formato de folhas de árvores amazônicas.
As peças, confeccionadas em diversas cores, são muito procuradas para decoração
de espaços e ambientes. Devido à sua maleabilidade e resistência a altas
temperaturas, servem também como descanso de prato (sousplat) e de panela. Já
foram expostas em feiras nacionais e internacionais, além terem decorado a mesa
de café da manhã do programa Mais Você, apresentado por Ana Maria Braga.
Além do Pronatec Bolsa Verde, a Resex conta com
outros projetos importantes. O Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ)
desenvolve em parceria com o ICMBio o trabalho de monitoramento participativo
da biodiversidade local. Ilnaiara Sousa, bióloga contratada pelo IPÊ,
conta com o auxílio de monitores comunitários da biodiversidade, como Francisco
de Souza Carvalho, morador e conselheiro representante da comunidade no
Conselho Deliberativo da Reserva. Ele diz que é fundamental estudar para
aprender a conservar.
“Você só preserva quando sabe o que tem, então, é
importante a comunidade conhecer os produtos da mata. Estamos identificando as
espécies mais comuns e as menos, para montar um plano de conservação”, conta
Francisco. Ele participou do curso de operador de computador oferecido pelo
Pronatec Bolsa Verde.
LIDERANÇAS
Outro projeto importante que aconteceu na Resex do
Cazumbá-Iracema foi o curso de formação de lideranças, com duração de mais de
um ano, apoiado pelo Programa Áreas Protegidas da Amazônia (Arpa). “Como
liderança, temos que saber lidar com as dificuldades e valorizar o nosso
território.
Sem floresta, não há vida”, diz Suzana Queiroz da Silva, 20
anos, conselheira do Conselho Deliberativo da Reserva.
O projeto de formação de novas lideranças foi
coordenado pelo professor e historiador César Felix.
“Vemos a necessidade de
que novas lideranças sejam formadas para assumirem as responsabilidades
desempenhadas até o momento pelos mais velhos”. Ele destaca, porém, o caráter
geracional do projeto. “A formação de lideranças é um processo contínuo, que
leva uma geração inteira. Um curso apenas não resolve”.
Nas aulas, foram trabalhadas as histórias dos povos
da floresta, do Acre, da conquista das reservas extrativistas e dos heróis
brasileiros, com o objetivo de fortalecer a identidade dos moradores da Resex.
O curso também abordou temas como biodiversidade, agroecologia e educação para
a floresta.
O projeto também possibilitou a realização de
intercâmbios com outras comunidades para que as jovens lideranças conhecessem
de perto produções agroecológicas, o cultivo de orgânicos, sem queimadas ou
agrotóxicos, e a gestão comunitária de empreendimentos. Entre os locais
visitados, estão a aldeia indígena Apurinã, de Boca do Acre, no Amazonas,
assentamentos e empreendimentos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, em
Santa Catarina, e o projeto RECA (Reflorestamento Econômico Consorciado
Adensado), em Rondônia, que é uma referência na Amazônia.
RECONHECIMENTO
No dia 10 de fevereiro, o ministro do Meio Ambiente,
Sarney Filho, esteve na Resex do Cazumbá-Iracema com o governador do Acre, Tião
Viana, para entregar 200 certificados de conclusão de cursos do Pronatec Bolsa
Verde. Também participaram da solenidade o presidente do ICMBio, Ricardo
Soavinski, a secretária de Extrativismo e Desenvolvimento Rural Sustentável do
MMA, Juliana Simões, e o secretário Estadual de Meio Ambiente, Carlos Edegard
de Deus.
Na abertura da solenidade, alunos do professor
Leilson Ferreira Gomes apresentaram esquete teatral escrita, dirigida e
encenada por eles durante o curso de administrador de empreendimentos
florestais.
Logo depois, alunos do professor César Felix surpreenderam os
presentes declamando, da plateia, trechos do poema Matança, de Antônio Jatobá.
A secretária Juliana Simões destacou que o programa
Bolsa Verde reconhece o papel de cada um na conservação ambiental. Soavinski
lembrou que a Resex Cazumbá-Iracema é exemplo entre as unidades de conservação,
reconhecida pelo Tribunal de Contas da União como uma das dez unidades de
conservação da Amazônia com alto grau de gestão e implementação.
O ministro Sarney Filho afirmou que, na Resex do
Cazumbá-Iracema, não existe a conservação apenas da natureza, mas também, da
cultura. “Esse é o caminho para o desenvolvimento sustentável e para melhorar a
qualidade de vida das pessoas da Amazônia”, destacou.
A RESERVA
A Resex do Cazumbá-Iracema é gerida pelo Instituto
de Conservação da Biodiversidade Chico Mendes (ICMBio) em parceria com
representantes da comunidade e da sociedade civil organizadas.
Para a
realização dos cursos do Pronatec Bolsa Verde, o Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Acre (IFAC) e o Instituto Dom Moacyr (IDM) foram os
órgãos executores do programa.
Cerca de 350 famílias residem na unidade de
conservação de 750 mil hectares, com 84 famílias beneficiárias do programa
Bolsa Verde. As principais atividades produtivas são o extrativismo da seringa,
da castanha-da-Amazônia, do açaí e da copaíba. O plantio da mandioca para
produção de farinha também é uma prática comum das famílias extrativistas.
Criada em 2002, a Reserva completará 15 anos.
Fonte: EcoDebate
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