A
humanidade é uma anomalia!
João Vitor Santos | Tradução de Moisés
Sbardelotto no IHU/Adital
A humana é uma “espécie anômala” – explodiu
os mecanismos espontâneos de autorregulação das populações animais que habitam
o nosso pequeno e frágil planeta. Entrevista especial com Giuseppe Fumarco
O
papa Francisco vem denunciando um complexo
estado de crises, não apenas ambiental, mas também civilizacional. O sociólogo
Giuseppe
Fumarco vai ao pensamento de
Edgar Morin para tentar compreender esse estado.
Segundo o professor, antes de pensar em saídas, é preciso compreender a
complexidade em
que estamos imbricados. Por isso, recupera o
pensamento de Morin
quando diz que “a complexidade não é uma receita que se oferece para nós, mas
sim o apelo à ‘
civilização das ideias’. A barbárie das ideias
significa também que os sistemas de ideias são bárbaros uns em relação aos
outros. As teorias não sabem dialogar umas com as outras. A palavra barbárie,
de fato, quer dizer ‘fora de controle’”. Para
Fumarco, o autor
evidencia que “embora aparentemente progrida a ‘civilização’ de muitos povos,
ao mesmo tempo, têm-se incríveis regressões”. É o caso do Ocidente, que vive
seu fetichismo pelo
consumo enquanto países do Oriente são
destroçados.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à
IHU On-Line, o sociólogo também reflete sobre
Donald
Trump, alinhado como força contrária a
Francisco. “A
escolha de Trump nos permite entender o que significa quando se fala de ‘novas
ignorâncias’. Como muitos ilustres pedagogos do século XX tinham previsto, sem
uma sistemática ‘educação ao civismo’, a democracia só pode degenerar”,
destaca. E, ainda, avalia a inabilidade da esquerda mundial para compreender
crises. “A
esquerda também aderiu aos desvios neoliberais, já
que não amadureceu ao longo do tempo uma consciência intelectual que lhe torne
capaz de enfrentar os desafios totalmente novos que a globalização coloca’,
dispara.
Fumaco | Foto: Arquivo
Pessoal
Giuseppe Fumarco é sociólogo na Itália, foi professor de
Direito e Economia nas escolas superiores, formador de adultos em várias
entidades e pesquisador do Istituti Regionali di Ricerca Educativa – IRRE
Piemonte (ex-IRRSAE). Escreveu um livro de história do pensamento econômico
sobre
J. A. Schumpeter e dois estudos sobre a autonomia
escolar e a profissão docente. Mais recentemente, ocupou-se do pensamento da
complexidade, chegando, por fim, à vasta produção de
Edgar Morin,
sobre a qual realiza palestras e seminários.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A partir de Edgar Morin
[1], como compreender o conceito de globalização? E de que forma sua
perspectiva pode iluminar compreensões sobre o nosso tempo e nossas crises?
Giuseppe Fumarco – Vou responder
expondo por inteiro a definição que
Morin nos
dá da “
idade do ferro planetária” que estamos vivendo:
“‘A idade do ferro planetária’ indica que
entramos na era planetária na qual todas as culturas e todas as civilizações já
estão em interconexão permanente. Mas indica também que, apesar de todas essas
intercomunicações, estamos em uma barbárie total nas relações entre raças,
culturas, etnias, potências, nações e superpotências. Nós estamos nesta idade do
ferro, e ninguém sabe ‘se’ e ‘quando’ sairemos dela. A coincidência entre a
idade do ferro planetária e a ideia de que estamos na pré-história da mente
humana, na era da barbárie das ideias, não é uma coincidência fortuita.
Pré-história da mente humana significa que, no plano do pensamento consciente,
estamos apenas no início. Ainda estamos submetidos a modelos mutilantes e
disjuntivos do pensamento e é bastante difícil pensar de modo complexo. A
complexidade não é uma receita que se oferece para nós, mas sim o apelo à
‘civilização das ideias’. A barbárie das ideias significa também que os
sistemas de ideias são bárbaros uns em relação aos outros. As teorias não sabem
dialogar umas com as outras. A palavra barbárie, de fato, quer dizer ‘fora de
controle’. Por exemplo, a ideia de que o progresso da civilização é acompanhado
pelo progresso da barbárie é uma ideia totalmente aceitável apenas se
compreendermos a complexidade do mundo histórico-social. A recente atomização
das relações humanas (também resultantes dos processos de civilização urbana
com todos os fatores de bem-estar que ela trouxe consigo) leva a agressões, à
barbárie, a insensibilidades incríveis. É preciso superar as ilusões eufóricas
do Progresso sem cair nas visões apocalípticas ou milenaristas; trata-se de
entrever que estamos, talvez, no fim de certos tempos e, esperamos, no início
de tempos novos.”
IHU On-Line – Como compreender a nova era
que vivemos, o Antropoceno[2] ?
Giuseppe Fumarco – O termo “
antropoceno” não foi cunhado por
Morin,
mas pelo químico holandês
Paul Crutzen [3], no ano 2000. É composto pelo grego
ἄνϑρωπος
(“homem”), com o acréscimo do segundo elemento, “ceno”. Pode-se definir assim a
época geológica atual em que o ambiente terrestre, no conjunto das suas
características físicas, químicas e biológicas, é fortemente condicionado, tanto
em escala local quanto em escala global, pelos efeitos da ação humana: com
particular referência ao aumento das concentrações de CO2 na atmosfera, o
derretimento das geleiras, o aumento tendencial médio da temperatura terrestre
e a consequente elevação do nível dos mares, o desmatamento e a desertificação
de algumas partes do planeta etc. E, mais em geral, a poluição de toda a
biosfera. Na realidade, a classificação por eras geológicas à qual se atêm os
especialistas desse setor continua nos colocando no
Holoceno [4], que iniciou há 11 mil anos e ainda não
se concluiu.
“Antropoceno”, portanto,
significa conotar uma época a partir da qual a presença e a intervenção do
homem sobre a natureza e sobre os equilíbrios ambientais está se tornando cada
vez mais “pesado” e alcança um limiar crítico para além do qual alguns desses
aspectos de degradação ecológica tornam-se irreversíveis.
IHU On-Line – No que consistem e quais os
desafios para se compreender a crise ecológica, definida pelo papa Francisco?
Giuseppe Fumarco – O
desenvolvimento (evolutivo e involutivo, ao mesmo tempo) das nossas sociedades
na era do antropoceno se “rapidizou” (em espanhol, “rapidación”),
no sentido de que sofreu – particularmente depois da revolução industrial do
século XX – um processo de aceleração devido à evolução da tecnociência que não
tem nada a ver com os tempos dos processos biológicos e ecológicos naturais do
planeta.
Como ressalta o Papa: “embora a mudança faça
parte da dinâmica dos sistemas complexos, a velocidade que hoje lhe impõem as
ações humanas contrasta com a lentidão natural da evolução biológica”,
acrescentando, em um parágrafo posterior: “Depois dum tempo de confiança
irracional no progresso e nas capacidades humanas, uma parte da sociedade está
entrando em uma etapa de maior consciencialização. Nota-se uma crescente
sensibilidade relativa ao meio ambiente e ao cuidado da natureza, e cresce uma
sincera e sentida preocupação pelo que está acontecendo ao nosso planeta”
(Laudato si’, par. 18 e 19].
A
Encíclica [5] prossegue evidenciando a “cegueira da
tecnologia” (par. 20), o problema da má eliminação dos resíduos, da poluição:
“A terra, nossa casa, parece transformar-se cada vez mais em um imenso depósito
de lixo” (par. 21). É essa “
cultura do descarte” que deriva também da circunstância de
que “ainda não se conseguiu adotar um modelo circular de produção” (par. 22).
Círculos viciosos
A Encíclica também acena aos
numerosos “círculos viciosos ambientais” (cfr. conceito de “recursividade” em Morin),
dando o exemplo do derretimento das geleiras polares e das elevadas altitudes
que são “efeito” do aumento global da temperatura e, ao mesmo
tempo, “causa” de um aumento adicional dela (por redução do efeito de espelho
da irradiação solar das geleiras, que, em consequência da sua reduzida
superfície refletora, permanece ainda mais aprisionada na atmosfera).
Depois, é
citado outro círculo vicioso, ligado ao desmatamento selvagem que reduz a
capacidade do patrimônio florestal global de capturar dióxido de carbono e
liberar oxigênio, combatendo, assim, o aumento da toxicidade da atmosfera (par.
24). A Encíclica conecta tais comportamentos negativos ao estilo de vida
“ocidental” com o seu impacto negativo sobre as populações mais pobres do
planeta:
“As mudanças climáticas dão origem a migrações
animais e vegetais…”, que são muitas vezes recursos para as populações locais,
as quais também se veem, assim, forçadas a emigrar: “É trágico o aumento de
emigrantes em fuga da miséria agravada pela degradação ambiental” (par. 25).
Uma terra cada vez mais cinzenta e limitada
A Encíclica continua examinando
criticamente a questão da água (por exemplo, a pobreza de água pública na
África) (par. 27 e ss.), da perda da biodiversidade (par. 32 e ss.), do impacto
ambiental das iniciativas econômicas “a serviço das finanças e do consumismo”
(par. 34), da retirada descontrolada dos recursos hídricos (par. 40), e como
tudo isso tem como consequência o fato de que “esta terra onde vivemos se torne
realmente menos rica e bela, cada vez mais limitada e cinzenta”[6] .
IHU On-Line – É possível afirmar que a
crise civilizacional é o núcleo do estado de crises que vivemos? Por quê?
Giuseppe Fumarco – Morin afirma: “Pré-história da mente humana significa
que, no plano do pensamento consciente, estamos apenas no início. Ainda estamos
submetidos a modelos mutilantes e disjuntivos do pensamento e é bastante
difícil pensar de modo complexo. A
complexidade não é uma
receita que se oferece para nós, mas sim o apelo à ‘
civilização das
ideias’. A barbárie das ideias significa também que os sistemas de
ideias são bárbaros uns em relação aos outros. As teorias não sabem dialogar
umas com as outras. A palavra barbárie, de fato, quer dizer ‘fora de controle’.
Por exemplo, a ideia de que o progresso da civilização é acompanhado pelo
progresso da barbárie é uma ideia totalmente aceitável apenas se compreendermos
a complexidade do mundo histórico-social”.
Esta última observação significa que, embora
aparentemente progrida a “civilização” de muitos povos, ao mesmo tempo, têm-se
incríveis regressões. Enquanto no Ocidente se vive no
fetichismo mercantilista e no hiperconsumismo que desperdiça (sem, por isso,
ter eliminado a pobreza e o desemprego, que, ao contrário, na última década,
aumentaram quase por toda a parte), em outros contextos do mundo em
desenvolvimento não foram resolvidos problemas essenciais, tais como o de
saciar a todos ou garantir a todos o acesso à água potável. Além disso,
observamos que alguns grandes países de antiga civilização da Ásia
seguem insensatamente o modelo ocidental, com perigosas
consequências para os equilíbrios ecológicos.
Em nível de “
noosfera” (a esfera de pensamento e das ideias), quase
inacreditavelmente, recuperaram vigor contrastes mortíferos que alguns autores
definiram – em nossa opinião, erroneamente – como “
choques de
civilizações”. Basta ver aquilo que acontece em nível de nações de
religiosidade muçulmana, tanto como conflitos internos (xiitas contra sunitas) quanto
como “contradependência indesejada” desses países em relação ao Ocidente.
Psicopatologia das relações entre os povos
Em vez de buscar a unidade na
diversidade e de salvaguardar a diversidade na unidade, ainda hoje, as relações
entre os Estados e as nações são em nível de barbárie
Nas relações internacionais, particularmente,
prevalecem lógicas imperialistas, de domínio, de prevaricação, de fanatismo e
de extremização das diferenças religiosas e espirituais etc. Em vez de buscar
“a unidade na diversidade” e de salvaguardar “a diversidade na unidade”, ainda
hoje, em 2017, as relações entre os Estados e as nações são em nível de
barbárie.
Os Estados Unidos persistem em
uma visão unilateral das suas relações com o resto do mundo, e, assim, torna-se
difícil mover-se rumo àqueles equilíbrios multipolares que, sozinhos, poderiam
garantir paz e segurança para as gerações futuras. Nestes últimos anos, em
particular, pode-se fazer uma leitura daquilo que acontece em nível geopolítico
internacional nos termos de uma verdadeira “psicopatologia das relações entre
os povos” causada, ao mesmo tempo, pelo comportamento paranoico de alguns
importantes expoentes das classes políticas dirigentes nacionais e pelo
comportamento hiperegoísta das classes que detêm o poder em nível econômico
transnacional (a nova classe capitalista transnacional). Todos comportamentos
que impulsionam “de facto” muitas nações a agirem umas em relação às outras na
lógica bárbara e atávica do “amigo/inimigo” (ou você está comigo ou está contra
mim).
IHU On-Line – Qual sua leitura de Laudato
si’? Como analisa a forma que Francisco tece a teia de relações entre as crises
até chegar à formulação de uma crise ecológica?
IHU On-Line – De que forma o documento
apostólico pode inspirar outras concepções que levem a pensar para além da
crise ecológica? E, nesse sentido, quais os limites do documento?
Giuseppe Fumarco – Um dos
limites mais problemáticos da
Laudato si’ consiste
na circunstância de que o Papa, lá, não aborda a questão demográfica. No meu
livro “
Complexus” [8] , eu defendia:
“Partimos de uma primeira constatação banal:
os 7 bilhões de indivíduos que povoam o planeta (entre os 8 e os 9 bilhões
previstos para 2050) há muito tempo já superaram a capacidade do ecossistema
que os sustenta. Cada alerta neste campo já é irremediavelmente tardio. A
humanidade – em particular desde a Revolução Industrial – prosseguiu
antropizando selvagem e destrutivamente a biocenose e o biótopo em que habitava
e, assim, se metamorfoseou […]. Poderá (talvez) sobreviver, mas em condições
psiquicamente alienadas. Para rastrear uma relação mais equilibrada com a
natureza, devemos remontar para bem antes da Revolução Industrial.”
Devemos sempre recordar que todos os problemas
que estamos elencando seriam de origem muito inferior se, em vez de sermos 7
bilhões, fôssemos, por exemplo, na ordem de alguns milhões sobre todo o
planeta. No meu texto, eu citava o grande etólogo austríaco Konrad
Lorenz [9], que, em um livreto publicado em 1973, intitulado Os
oito pecados capitais da nossa civilização, colocava de forma significativa
entre os dois primeiros “pecados” a “superpopulação mundial” e a consequente
“redução/devastação do espaço vital”.
Pode-se estar de acordo ou não com o elenco das
criticidades propostas por Lorenz (que aqui, por razões de
espaço, não retomamos), mas o fato, significativo para nós, é que um etólogo
atento às lógicas dos comportamentos animais coloca na raiz dos muitos desvios
atuais da humanidade justamente o dado quantitativo do excessivo povoamento do
planeta por parte da espécie Homo sapiens. A humana é uma
“espécie anômala”, que fez explodir os mecanismos espontâneos de autorregulação
das populações animais que habitam o nosso pequeno e frágil planeta.
A partir da denúncia do “Clube de Roma”
[10] de Aurelio Peccei [11] (fim dos anos 1960), muitas foram
as tomadas de posição de personagens renomados em favor da temática da redução
da natalidade e das políticas de contenção da população.
IHU On-Line – Como pensar outro modelo de
desenvolvimento global? E quais os desafios para conscientizar a humanidade de
que cada um é parte do todo nessa construção de outro modelo civilizacional?
O homem não é só sapiens, mas
também demens, isto é, destrutivo, agressivo.
Giuseppe Fumarco – Pergunta, por
si só, “complicada” demais, mais do que complexa. Um novo “
modelo de civilização”, por enquanto, é impensável. O homem
não é só “
sapiens”, mas também “
demens”, isto é, destrutivo,
agressivo etc. Sofre a
hubris (desmesura, do grego) em consequência
das contínuas turbas que irrompem no seu cérebro “
triúnico” sujeito a
uma dialética permanente entre paixões e racionalidade, instintos e emoções…
Quanto a pensar em um “
novo modelo de
desenvolvimento” (abriria mão do “global”), por enquanto, para mim,
isso significa retornar para as questões não resolvidas que o século XX nos
deixou. Uma acima de todas: qual deve ser o papel de um Estado
“suficientemente” democrático (pois a democracia também é uma ideologia, eu
diria muito “utópica”) para um novo “
welfare state” que não tropece nas tesouras da
dívida
pública? A resposta
keynesiana parecia adequada, mas,
neste momento, os economistas sofrem maciçamente a nefasta influência do
pensamento
liberal neoclássico.
Por fim: não tenho respostas sobre a questão de
como “conscientizar a humanidade” para fazer com que ela compreenda que “cada
um é parte do todo”. As taxas de escolarização aumentaram um pouco em todos os
países, mas, por enquanto, não parece que isso tenha tido um impacto tão
positivo sobre as “tomadas de consciência”… A confusão e o “ruído” da
hipercomunicação de massa atordoam as mentes, e novas ignorâncias,
paradoxalmente, crescem precisamente agora.
IHU On-Line – O mundo vive um momento
ímpar com a ascensão da “extrema-direita”, que prega o nacionalismo radical e
recusa o outro, como exemplo a figura de Donald Trump[12] e suas propostas que
recusam o enfrentamento da crise ecológica. Como chegamos a esse momento?
Giuseppe Fumarco – O
“soberanismo” e o retorno ao “particular” constituem a lógica reação por parte
dos povos que veem justamente na globalização (assim como ela está acontecendo)
riscos, inseguranças, novos medos etc. A nova classe capitalista transnacional
parece caracterizada por uma não eticidade impressionante. Novas
injustiças na distribuição de renda desenham um mundo onde
os ricos se tornam cada vez mais ricos e os pobres, cada vez mais pobres. Sem
sinais significativos de inversão dessas tendências, a humanidade certamente
não terá um futuro “vivível”.
O caso estadunidense e a escolha de Trump
nos permitem entender o que significa quando se fala de “novas ignorâncias”. Como
muitos ilustres pedagogos do século XX tinham previsto, sem uma sistemática
“educação ao civismo”, a democracia só pode degenerar e reabrir o caminho para
todo tipo de neototalitarismos. Trump e a direita são os primeiros sinais.
Jornalismo e meios de comunicação de massa têm uma grande parte de
responsabilidade nessas regressões globais: muito poucos se movem contra a
corrente.
IHU On-Line – E, por outro lado, em que
medida é possível afirmar que a “esquerda” global é inábil na compreensão da
complexidade da teia da vida, para muito além do paradigma do consumo e
desenvolvimento?
Giuseppe Fumarco – A esquerda
(salvo raras exceções minoritárias) também aderiu aos desvios neoliberais,
já que não amadureceu ao longo do tempo uma consciência intelectual que lhe
torne capaz de enfrentar os desafios e os pontos nodais totalmente novos que a
globalização (ou, melhor: a “planetarização”) coloca. Além disso, na Europa,
os chamados movimentos “populistas” pregam que não se pode mais pensar em
termos de direita e de esquerda: erro muito grave, pois essa atitude ambígua e
“agnóstica” aumenta o nível de confusão. O pós-ideologismo certamente não devia
ser abordado em termos de simplificação, mas, sim, como aceitação do desafio
da complexidade.
IHU On-Line – A maior das desigualdades
de nosso tempo consiste em quê? E como enfrentá-la?
Giuseppe Fumarco – Há diversos
níveis de
desigualdades: a desigualdade das oportunidades desde o
nascimento, as desigualdades entre os diversos países, as diversas nações e os
diversos grupos étnicos, as desigualdades dentro dos países individuais e das
nações individuais, as desigualdades de gênero etc. Temos diante dos nossos
olhos um desconfortante panorama de desigualdades de todos os tipos.
Esta também é a minha tristeza mais profunda, que
se liga a uma sensação pessoal negativa de impotência. Eu admiro o Papa pelo
otimismo que ele consegue expressar e difundir ao seu redor. Mas temo que não
seja suficiente: Francisco é escutado e aplaudido, mas os
chamados poderes fortes e o establishment transnacional continuarão se movendo
de modo automático de acordo com os próprios mecanismos endógenos perversos.
Infelizmente, o “
desafio da complexidade”
impunha a adoção de novos registros conceituais, de novos mapas mentais capazes
de tentar, ao menos, enfrentar, senão resolver também e “sobretudo” esses
problemas. A desigualdade em nível planetário – como bem escreveu o Papa – se
liga à degradação ecológica. O “
todo” é complexo precisamente por ser inter-relacionado,
conectado… às vezes por fios invisíveis.
Ninguém tem nem terá, a meu ver, a coragem de
enfrentar, no futuro próximo vindouro, o “desafio dos desafios”, o mais
radical, que certamente não é a busca do igualitarismo absoluto, mas, pelo
menos, de uma igual oportunidade para todos no nascimento. Hoje, isso é pura
Utopia. Amanhã… quem viver verá (João Paulo II).
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Giuseppe Fumarco – Bergoglio
vem das minhas terras, de um vilarejo em Asti. Os meus
parentes são “monferrinos” exatamente como os seus antepassados antes da
migração para a Argentina. Eu ainda tenho parentes distantes
na Argentina, com os quais às vezes estou em contato. Isso criou, desde já, um feeling
subterrâneo com esse papa de ar tão bondoso; a minha gente, muitas vezes, foi
definida pelos escritores justamente como que caracterizada por uma certa
bondade natural.
Notas:
[1]
Edgar Morin (1921):
sociólogo francês, autor da célebre obra O Método. Os seis livros da série
foram tema do Ciclo de Estudos sobre “O Método”, promovido pelo IHU em parceria
com a Livraria Cultura de Porto Alegre em 2004. Embora seja estudioso da
complexidade crescente do conhecimento científico e suas interações com as
questões humanas, sociais e políticas, se recusa a ser enquadrado na sociologia
e prefere abarcar um campo de conhecimentos mais vasto: filosofia, economia,
política, ecologia e até biologia, pois, para ele, não há pensamento que
corresponda à nova era planetária. Além de O Método, é autor de, entre outros,
A religação dos saberes. O desafio do século XXI (Bertrand do Brasil, 2001).
Confira a edição especial sobre esse pensador, intitulada
Edgar Morin e o pensamento
complexo, de 10-09-2012. O IHU, na
seção Notícias do Dia, em seu sítio, vem publicando uma
série de textos e reflexões sobre o pensamento de Morin. (Nota da
IHU
On-Line)
[3] Paul Josef Crutzen (1933):
químico holandês, laureado com o Nobel de Química de 1995, por seu estudo sobre
a formação e decomposição do ozônio na atmosfera. Membro da Pontifícia Academia
das Ciências em 25 de junho de 1996. É professor do Instituto Max Planck de
Química em Mainz, Alemanha. O asteroide 9679 Crutzen é denominado em sua
homenagem. Ele cunhou o termo antropoceno e desenvolveu a teoria a que este
corresponde. (Nota IHU On-Line)
[4] Holoceno: divisão da escala
de tempo geológico, é a última e atual época geológica do Quaternário. O começo
de o Holoceno é definido na mudança climática correspondente à do final do
episódio frio conhecido como o Dryas recente, após a última glaciação, e
abrange os últimos 11.784 anos, tendo 2000 como referência de tempo base. Ele é
um período interglacial em que a temperatura foi mais suave e diferentes
calotas desapareceu ou diminuição do volume, o que causou uma elevação do nível
do mar. (Nota da IHU On-Line)
[5] O entrevistado se refere a
Encíclica
Laudato Si’: encíclica do Papa Francisco, na qual critica o consumismo
e desenvolvimento irresponsável e faz um apelo à mudança e à unificação global
das ações para combater a degradação ambiental e as alterações climáticas.
Publicada oficialmente em 18 de junho de 2015, mediante grande interesse das
comunidades religiosas, ambientais e científicas internacionais, dos líderes
empresariais e dos meios de comunicação social, o documento é a segunda
encíclica publicada por Francisco. A primeira foi Lumen fidei em 2013. No
entanto, Lumen fidei é na sua maioria um trabalho de Bento XVI. Por isso
Laudato Sí’ é vista como a primeira encíclica inteiramente da responsabilidade
de Francisco. A revista IHU On-Line publicou uma
edição em que analisa debate a Encíclica. (Nota da
IHU
On-Line)
[6] As referências às afirmações do Papa
Francisco são tiradas diretamente dos parágrafos numerados da encíclica
“Laudato si’: Encíclica sobre o cuidado da casa comum”, Livraria Editora
Vaticana, Roma, 2015. (Nota do entrevistado)
[8]
“Complexus. Leggere il presente sulle orme di Edgar Morin”, Effetto Farfalla,
2013. Istituto per l’Ambiente e l’Educazione “Scholé Futuro”, Onlus,
Turim. (Nota do entrevistado)
[9] Konrad Zacharias Lorenz
(1903-1989): foi um zoólogo, etólogo e ornitólogo austríaco. Foi agraciado com
o Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1973, por seus estudos sobre o
comportamento animal, a etologia. Em 1935 descreveu o processo de aprendizagem
nos gansos e criou o conceito de “imprinting”. Este é um fenômeno exibido por
vários animais filhotes, principalmente pássaros tais quais pintinhos e
patinhos. Após saírem dos ovos seguirão o primeiro objeto em movimento que eles
encontrarem no ambiente, o qual pode ser a mãe, mas não necessariamente. (Nota
da IHU On-Line)
[10] Clube de Roma: é um grupo
de pessoas ilustres que se reúnem para debater um vasto conjunto de assuntos
relacionados a política, economia internacional e, sobretudo, ao meio ambiente
e o desenvolvimento sustentável. Foi fundado em 1966 pelo industrial italiano
Aurelio Peccei e pelo cientista escocês Alexander King. Tornou-se muito
conhecido a partir de 1972, ano da publicação do relatório intitulado Os
Limites do Crescimento, elaborado por uma equipe do MIT, contratada pelo Clube
de Roma e chefiada por Dana Meadows. O relatório, que ficaria conhecido como
Relatório do Clube de Roma ou Relatório Meadows, tratava de problemas cruciais
para o futuro desenvolvimento da humanidade, tais como energia, poluição,
saneamento, saúde, ambiente, tecnologia e crescimento populacional, foi
publicado e vendeu mais de 30 milhões de cópias em 30 idiomas, tornando-se o
livro sobre ambiente mais vendido da história. (Nota do IHU On-Line)
[11] Aurelio Peccei (1908-1984):
foi um estudioso e industrial italiano, mais conhecido como o fundador e
primeiro presidente do Clube de Roma – uma organização que Levantou a atenção
pública considerável em 1972 com seu relatório os limites ao crescimento. (Nota
da IHU On-Line)
[12] Donald John Trump (1946): é
um empresário, ex-apresentador de reality show e presidente eleito dos Estados
Unidos. Na eleição de 2016, Trump foi eleito o 45º presidente norte-americano
pelo Partido Republicano, ao derrotar a candidata democrata Hillary Clinton no
número de delegados do colégio eleitoral; no entanto, perdeu no voto popular.
Trump tomou posse em 20 de janeiro de 2017 e, aos 70 anos de idade, é a pessoa
mais velha a assumir a presidência. Entre suas bandeiras estão o protecionismo
norte-americano, por onde passam questões econômicas e sociais, como a relação
com imigrantes nos Estados Unidos. Trump é presidente do conglomerado The Trump
Organization e fundador da Trump Entertainment Resorts. Sua carreira, exposição
de marcas, vida pessoal, riqueza e modo de se pronunciar contribuíram para
torná-lo famoso. (Nota da IHU On-Line).