Sementes
tradicionais alimentam semiárido.
Por Mario Osava, da IPS –
Apodi, Brasil, 9/1/2017 – Em seus 76 anos de vida, Raimundo
Pinheiro Melo suportou inúmeras estiagens prolongadas decorrentes das secas no
Nordeste do Brasil. Ele se lembra de todas desde a de 1958. “A pior foi em 1982
e 1983, a única vez que secou o rio”, em cuja proximidade vive desde 1962.
“Também foi muito ruim em 1993”, contou à IPS, porque ainda não existia o Bolsa
Família nem a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), que contribuem para uma
convivência menos traumática com secas como a atual, que já dura cinco anos.
Raimundo Pinheiro de Melo, um camponês de 76 anos
do município de Apodi, no Nordeste do Brasil, mostra a um agricultor que o
visita uma garrafa com sementes de feijões que mantém guardada. Foto: Mario
Osava/ IPS
Por meio do Bolsa Família, o governo federal ajuda
com dinheiro 13,8 milhões de famílias pobres no Brasil, metade delas no
Nordeste. A ASA é uma rede de três mil organizações sociais que promove a
coleta de água de chuva, bem como técnicas e conhecimentos para uma vida rural
adequada ao clima de chuvas irregulares na ecorregião do semiárido nordestino.
Para Mundinho, como Raimundo é conhecido por todos,
e seus vizinhos, a água não é tão escassa devido à proximidade do rio Apodi,
que, mesmo quando seca, ainda conserva água para ser extraída nas cacimbas,
buracos feitos no leito do rio ou em sua margem. Além do esforço para conseguir
água na zona alta onde vive, em uma área rural de Apodi, município do Rio
Grande do Norte, ele se dedica a outra tarefa vital para a sustentabilidade do
modo de vida camponês no interior semiárido do Nordeste, conhecido
tradicionalmente como sertão.
Mundinho é um guardião de sementes crioulas, ou
tradicionais. Armazena em garrafas e pequenos barris de plástico sementes de
milho, feijões, sorgo, melancia e outras espécies de cultivo local, em uma
pequena instalação construída ao lado de sua casa, em meio a uma terra
atualmente arenosa e de vegetação seca. Mais de mil dessas casas, ou bancos de
sementes, compõem, com a participação de 20 mil famílias, a rede organizada
pela ASA para preservar o patrimônio genético e a diversidade dos cultivos
adaptados ao clima e ao solo semiárido nordestino.
Guardar sementes é uma velha tradição camponesa,
que foi deixada de lado durante a modernização agrícola na chamada revolução
verde, iniciada na metade do século passado, e que incluiu uma “ofensiva das
empresas produtoras de sementes que diziam ser melhoradas” e das quais os
agricultores passaram a depender, recordou à IPS Antônio Gomes Barbosa,
coordenador do Programa de Sementes Crioulas da ASA.
Sementes crioulas armazenadas em garrafas plásticas
reutilizadas, em uma construção especial erguida em sua propriedade por
Raimundo Pinheiro de Melo, um orgulhoso guardião dessas sementes, que colaboram
para a segurança alimentar no semiárido do Nordeste brasileiro, em meio a uma
seca que já dura mais de cinco anos Foto: Mario Osava/IPS
A estratégia adotada em 2007, de disseminar
tecnologias para armazenar água para a produção, buscando a segurança
alimentar, levou a ASA a visualizar a necessidade de os pequenos agricultores
disporem sempre de sementes, explicou Barbosa, sociólogo de formação. Um estudo
com 12.800 famílias revelou que o “semiárido tem a maior variedade de sementes
de espécies alimentares e medicinais do Brasil”, destacando uma região em que
vivem mais de 25 milhões dos 56 milhões de habitantes no Nordeste, em um país
com população de 208 milhões de pessoas.
Barbosa acrescentou que para isso contribuíram a
herança familiar e comunitária de sementes armazenadas e “um intenso
intercâmbio, promovido por emigrantes que retornaram ao semiárido trazendo
sementes de São Paulo e do centro-leste” do país, onde viveram. O que a ASA fez
foi identificar os bancos de sementes existentes, articulá-las e promover sua
multiplicação, como forma de resgatar, preservar, ampliar existências e
distribuir as sementes crioulas, detalhou.
Antônia de Souza Oliveira, ou Antonieta, como é
mais conhecida, participa do banco de sementes número 639 nos registros da ASA,
na comunidade Milagre, com 28 famílias assentadas na meseta de Apodi, que é
cortada pelo rio de mesmo nome. É um banco comunitário, que “conta com 17
guardiões e existências principalmente de sementes de milho, feijões e sorgo”,
acrescentou.
Antônia de Souza Oliveira, em frente ao Banco de
Sementes da comunidade rural Milagre, um assentamento de 28 famílias no Estado
do Rio Grande do Norte, onde há 17 guardiões de sementes e que ficou famoso
pelo protagonismo das mulheres nas atividades de coleta. Foto: Mario Osava/IPS
A forte presença feminina nas atividades desse
assentamento levou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) a
escolher Milagre para inaugurar uma linha de crédito para mulheres do Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar. Um caso exemplar, destacado
pela ASA, é o banco de sementes de Tabuleiro Grande, outro assentamento rural
de Apodi. Ali, uma iniciativa familiar acumula sementes de 450 variedades de
milho, feijões, outras leguminosas e ervas. Antônio Rodrigues do Rosário, de 59
anos, encabeça a quarta geração que mantém esse “banco familiar”.
O movimento de sementes crioulas se contrapõe à
lógica da revolução verde, em que as sementes são distribuídas pelo Estado ou
vendidas por grandes empresas especializadas, “em grande quantidade, mas pouca
variedade”, e a partir de uma produção central. “Não precisamos dessa
distribuição, mas de iniciativas locais, com cada território resgatando suas
sementes locais, com grande diversidade e disseminação”, pontuou Barbosa.
Trata-se de conhecimento acumulado pelas famílias,
com experiências de adaptação a cada localidade, solo e clima, ao tipo de
produção desejada e à resistência às pragas. Barbosa observou que, por exemplo,
“muitas variedades de milho atendem a diferentes necessidades, uma pode
produzir mais palha para alimentar os animais, outra o grão para os humanos”. E
acrescentou que “o quintal das casas é um laboratório familiar, onde são feitos
experimentos, melhorias genéticas, testadas resistência e produtividade. É onde
a mulher mais participa, inclusive ensinando os filhos”.
“Na grande seca de 1982 e 1983, uma variedade de
batata de crescimento rápido, que em 60 dias foi reproduzida e guardada por uma
avó, salvou muitas vidas”, apontou Barbosa. A permuta de materiais e
conhecimentos também faz parte importante da história das sementes crioulas.
Ocorre dentro da própria comunidade e nas relações com o exterior. A ASA
procura intensificar esse intercâmbio promovendo contatos entre camponeses de
diferentes áreas.
Antônio Gomes Barbosa, coordenador do Programa de
Sementes Crioulas do movimento Articulação Semiárido Brasileiro, que aglutina
mais de três mil organizações. A iniciativa é essencial para a segurança
alimentar e a biodiversidade do Nordeste brasileiro, principalmente durante a
longa seca que afeta a região. Foto: Mario Osava/IPS
“As sementes crioulas são o principal foco de
resistência às imposições do mercado. Trata-se de superar a dependência em
relação aos grandes fornecedores”, afirmou o coordenador do setor da ASA. A
mudança climática aumenta a importância das sementes do semiárido. “Não há
veneno agrícola para combater o aumento da temperatura”, ironizou.
O Programa de Sementes do Semiárido comprovou uma
“grande capacidade criativa e de experimentação” dos agricultores familiares do
Nordeste, ressaltou Barbosa em um diálogo com a IPS, no município próximo de
Mossoró. Além disso, existe a tendência à autonomia. “O agricultor segue sua
própria experiência, mais do que a orientação do agrônomo, porque escolhe o que
é mais seguro para ele”.
Porém, duas ameaças preocupam o movimento referente
às sementes da ASA. Uma é a “erosão genética”, que pode ser provocada pela
atual seca, que em algumas áreas já dura sete anos. As chuvas isoladas induzem
os camponeses a plantar. Sabendo da possibilidade de perder a colheita, nunca
usam todas as sementes, mas as vai perdendo pouco a pouco, diante de cada chuva
enganosa, com o risco de reduzir suas existências.
Outra ameaça são os transgênicos, rejeitados pelos
agricultores vinculados à ASA. Foi comprovada a presença de milho geneticamente
modificado em algumas plantações do Estado da Paraíba, que se suspeita ocorre
devido ao contágio de sementes trazidas de outras regiões.
Fonte: ENVOLVERDE
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