Água
incita disputa por terras no Nordeste.
Por Mario Osava, da IPS –
Apodi, Brasil, 16/1/2017 – O uso das águas da
represa Santa Cruz, no município de Apodi, intensificou a disputa por terras
irrigáveis, que se dissemina por muitas partes do Nordeste brasileiro e
contrapõe duas visões de desenvolvimento e dois modos de vida. O conflito foi
contido porque o grande Projeto de Irrigação Santa Cruz de Apodi, aprovado pelo
governo federal em 2011, para estabelecer um polo de fruticultura de exportação
com o aproveitamento das águas do reservatório, avançou pouco e está parado
desde o final de 2014.
Luis Alves Maia, na feira agroecológica onde, aos
sábados, vende suas frutas e verduras, em Apodi. Ele faz parte dos camponeses
afortunados que não foram afetados pela pertinaz seca no Nordeste do Brasil,
graças à disponibilidade de água. Foto: Mario Osava/IPS
No entanto, continua como uma ameaça a experiências
de sucesso na agricultura familiar, desenvolvidas na região nas últimas
décadas. O projeto afetaria direta ou indiretamente mais de 1.600 famílias de
55 comunidades camponesas do município, disseram à IPS os dirigentes locais do
Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR). “Damos banho no
cavalo com água mineral”, gabou-se Luis Alves Maia para destacar seu privilégio
de viver no vale do rio Apodi, até agora não afetado pela escassez hídrica que
há cinco anos golpeia o semiárido interior do Nordeste, devido a uma pertinaz
seca.
Um poço a 30 metros do rio e uma bomba permitem
irrigar sua horta e seu pomar, cuja produção vende aos sábados na feira
agroecológica de Apodi, junto com cerca de 30 agricultores familiares.
“Com o
pé, posso cavar um poço”, brincou Maia, para destacar que a água está quase na
superfície.
Com 62 anos e dois filhos adultos, que trabalham com ele, esse
agricultor demonstra seu entusiasmo entre grandes papaias, batatas-doces e
bananas, que vende pela metade ou um terço do que é cobrado em cidades do sul,
como o Rio de Janeiro. “Basta para viver e sobra”, garantiu à IPS em sua banca
na feira.
“Vendemos tudo cedo, às nove da manhã já vendemos
quase tudo, porque as pessoas preferem nossas verduras sem agroquímicos, que
duram mais: uma semana na geladeira sem estragar”, explicou sua vizinha na
feira, Aldivana Marinho, de 40 anos e dois filhos. O veneno agrícola causa
doenças”, afirmou o professor primário Raimundo Neto, de 51 anos, assíduo
comprador nesse mercado, há sete anos.
Represa Santa Cruz, com redução de água após cinco
anos de seca, e parte do vale do Apodi, à esquerda, onde se concentra a
atividade agrícola do município. O uso das águas do reservatório coloca em
confronto dois modelos produtivos e duas formas de vida no Nordeste brasileiro.
Foto: Mario Osava/IPS
A represa, inaugurada em 2002, evitou que o rio
Apodi ficasse seco durante a estiagem atual, que já dura cinco anos, como
ocorreu em 1983, quando outra situação semelhante açoitou a ecorregião do
semiárido, segundo os camponeses mais velhos. Mas o controle do caudal rio
abaixo beneficia uma minoria das famílias que vivem no vale. Aelza Neves, de 53
anos e quatro filhos, vive longe do rio e depende do poço de um vizinho, em um
povoado que fica a 13 quilômetros de Apodi. Sem poder plantar, sobrevive
confeccionando geleia e doces de mamão, coco e outras frutas.
A represa Santa Cruz, segundo maior reservatório do
Estado do Rio Grande do Norte, poderia oferecer água por gravidade, portanto, a
baixo custo, para milhares de camponeses no vale, fortalecendo ainda mais a
agricultura familiar, pontuou Agnaldo Fernandes, presidente do STTR de Apodi.
Mas o plano do governo é destinar sua água para um chamado “perímetro irrigado”
de monoculturas de frutas, um modelo que se estendeu no Nordeste desde o final
dos anos 1960 na bacia do rio São Francisco, principal recurso hídrico da
região, que cruza sua parte meridional.
Antônia de Sousa Oliveira em meio a um campo de
algodão irrigado com água tratada, no Assentamento Milagre, onde os camponeses
experimentam de forma comunitária diferentes métodos para melhorar sua
produtividade agrícola no semiárido do Nordeste brasileiro. Foto: Mario
Osava/IPS
A fruticultura por irrigação tem seu polo mais
produtivo mais ao sul, em Juazeiro e Petrolina, municípios separados apenas por
esse rio, fomentado pela estatal Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São
Francisco e do Parnaíba. A uva e a manga são seus principais produtos de
exportação. Em outras áreas, os perímetros estão a cargo do Departamento
Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), agência pública fundada em 1909 para
construir represas, estradas e outros projetos destinados a atender as vítimas
das secas como os 37 perímetros de irrigação já estabelecidos.
O de Apodi seria o de número 38, com irrigação de
nove mil hectares. As terras ficam em uma meseta, cerca de 80 metros acima do
ponto de captação das águas da represa Santa Cruz, rio abaixo. Uma pequena
represa no rio, canais de captação e distribuição de água, o esqueleto de uma
estação de bombeamento e tubulações abandonadas recordam o grande projeto
frustrado do Dnocs.
De todo modo, a represa seria insuficiente para
irrigar os mais de três mil hectares plantados, segundo um documento elaborado
por 20 pesquisadores de sete universidades. Além da inviabilidade hídrica, o
projeto poderia destruir progressos singulares da agricultura familiar local,
sua produção diversificada e sem agrotóxicos; técnicas de convivência com o
clima semiárido, inclusive de irrigação, e organização comunitária, destaca o
estudo.
Graças a isso, Apodi mantém em sua área rural
metade de sua população, de 34.763 habitantes, segundo o censo de 2010. De suas
55 comunidades rurais ameaçadas, 20 são assentamentos da reforma agrária,
somando mais de 700 famílias, segundo dados do STTR. O perímetro irrigado
inverteria essa lógica, com monoculturas, exploração empresarial e abuso de
agrotóxicos, em detrimento do ambiente, da saúde e da água, segundo seus
críticos.
Esqueleto abandonado da estação de bombeamento de
água do paralisado projeto de irrigação da represa Santa Cruz, que ia dirigir
as águas do rio Apodi para nove mil hectares dedicados à produção intensiva de
frutas para exportação, no Estado do Rio Grande do Norte. Foto: Mario Osava/IPS
O Dnocs, porém, anunciou que somente 30% da área
serão destinados às empresas, e que estas terão apenas 60 hectares de terra
irrigados. A maior parte se destinaria a parcelas de oito hectares para
pequenos agricultores. Seja como for, o espírito difere. Fala-se em gerar de 12
mil a 13 mil empregos diretos, exportar frutas pelos portos localizados a
poucas centenas de quilômetros. Mas nada sobre uma produção diversificada de
alimentos, segurança alimentar ou participação feminina.
A suprema contradição é expulsar camponeses para
incorporar outros no perímetro irrigado. Vicente de Freitas Neto, de 58 anos,
se queixa de que teve expropriados 133 hectares para o perímetro, com a
promessa de receber R$ 700 por hectare. “É muito pouco, o japonês paga três
vezes mais”, argumentou à IPS, referindo-se a um fazendeiro vizinho que produz
melão. “Além disso, ainda não recebi o pagamento e nem sei quando receberei.
Fiquei com apenas 24 hectares para 25 herdeiros”, lamentou.
Freitas não é contra a monocultura de frutas em
grande escala. Dois de seus quatro filhos trabalham na Agrícola Famosa, a maior
empresa exportadora de frutas no Brasil, que tem parte de sua produção em uma
fazenda de 1.700 hectares incrustrada entre comunidades camponesas da meseta de
Apodi.
A empresa, fundada em 1995, cultiva 27 mil hectares
em 19 fazendas em dois estados do Nordeste, onde produz principalmente melão e
melancia, exportando 75% da produção. Chegou a Apodi em 2015, atraída por seus
aquíferos como solução para a seca. Sua irrigação é feita com água de poços que
chegam a ter centenas de metros de profundidade.
Genival da Silva, viúvo de 50 anos e com três
filhos, também trabalha na Agrícola Famosa há 16 meses e defende o uso de
pesticidas. “Só se aplica veneno à noite e com o trabalhador protegido”,
afirmou à IPS. Mas, “se voltarem as chuvas, voltarei a cultivar minha terra”,
acrescentou.
Manejos exemplares
Os camponeses da meseta de Apodi não esperam pela
água da represa. Um exemplo é o do Assentamento Milagre, onde além de cavarem
poços reutilizam a água. Uma rede de encanamentos recolhe o esgoto de suas 28
famílias, que é levado para um sistema de tratamento.
Com a água tratada, são irrigadas plantações
experimentais de algodão e palma forrageira, em frequências e mesclas variadas
com dejetos, para estudar a melhor forma de reaproveitar a água na agricultura,
explicou Antônia de Souza Oliveira, tesoureira da associação comunitária local.
Fonte: ENVOLVERDE
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