São Paulo
precisa redescobrir a relação com seus rios.
Por Denis
Pacheco – do Jornal da USP –
Pesquisa analisa o processo
histórico que tornou os rios da capital paulista símbolos de descaso e
degradação.
“Hoje a gente só percebe o rio
quando ele transborda ou cheira mal. Ou seja, só de uma forma negativa. Apesar
de a água refletir a luz do sol e render uma paisagem bonita, só percebemos o
rio quando ele paralisa automóveis.” A melancólica constatação é
do arquiteto José Paulo Neves de Gouvêa, pesquisador da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP.
Na
escala de urgência das agendas políticas, rios estão listados como uma
prioridade menor – Foto: Marcos Santos / USP Imagens.
Segundo dados do Instituto Trata
Brasil, apenas 47% dos dejetos recebem tratamento atualmente na região
Sudeste do País – os que não recebem vão parar em rios e represas, corroborando
o diagnóstico de Gouvêa. Não por acaso, nomes como Tietê e Pinheiros se
tornaram símbolos do descaso com o qual o governo trata seus rios.
Com o objetivo de compreender como os rios da
capital paulista chegaram a esse estado de degradação, o arquiteto
realizou uma pesquisa que culminou em tese de doutorado defendida na
FAU. “Eu queria entender qual foi o processo histórico que levou os rios a
ocuparem uma posição tão desprivilegiada na cidade como hoje”, revela. Seu
trabalho analisa como se deu a apropriação privada dos rios de São Paulo e sua
participação na produção do espaço da cidade, aprofundando aspectos relativos
ao desenvolvimento social, político e econômico, desde sua fundação no século
16 até o início do século 20.
Para
pesquisador, é necessário criar estratégias mais radicais de reaproximação da
população com os rios, superando ações de “embelezamento”. Na imagem, o Rio
Tiête – Foto: Marcos Santos / USP Imagens .
Partindo das obras de canalização dos rios
Tamanduateí, Tietê e Pinheiros, a pesquisa traçou um recuo histórico até o
momento em que os rios e córregos de São Paulo se constituíam como um bem comum
e sua principal característica era o uso de suas águas e terras.
Mapeando a
história
Filho de geógrafos, Gouvêa trabalhou sua pesquisa
intercalando resgate histórico, estudo e elaboração de mapas. “No meu mestrado
eu estudei cartografia histórica em São Paulo para entender a relação da
cartografia com o desenvolvimento da cidade, e a pesquisa coincidiu com o
doutorado”, afirma ele. Os mapas foram então utilizados para que o arquiteto
pudesse formar uma ideia ampla sobre como os rios influenciaram a cidade e
como a cidade influencia o estado atual dos rios.
Margeando a pesquisa pelos rumos do
desenvolvimento paulistano, o arquiteto pontuou os principais rios da
cidade, inicialmente, como fontes de subsistência. “Por vários séculos a cidade
usava esse bem comum, as pessoas subsistiam a partir dele. Paulatinamente,
começou a nascer uma relação com a água e com o rio que já intermediava trabalho”,
conta ele, ao lembrar de funções que não mais existem como a de aguadeiro, um
grupo de profissionais constituído geralmente de imigrantes portugueses que
pegavam a água do rio e a vendiam fora. “Era um verdadeiro serviço de
distribuição de água em tonéis”, diz.
De 1850 até o começo do século 20, com o desenvolvimento da propriedade privada
como a conhecemos hoje e, em especial, da apropriação privada da natureza, a
realidade urbana interferiu na relação dos paulistanos com os rios e eles
deixaram de ser uma fonte de subsistência. “Primeiro, porque foram poluídos e,
segundo, porque todas as margens já estavam ocupadas por lotes que foram
fundamentais para o crescimento da cidade”, descreve o autor do estudo ao
destacar que esse crescimento foi baseado no que chamou de uma “expropriação de
um bem comum”. “E isso é uma condição do crescimento de quase todas as
cidades”, reitera.
Com a meta de empregar imigrantes e ex-escravos,
o governo e a iniciativa privada instauraram uma lógica moderna de mão de obra
que não mais podia permitir que a população encarasse os espaços dos rios como
bens comuns. “É o princípio da propriedade privada que acabou engendrando o
espaço”, sumariza ele.
Somando movimentos migratórios à chegada de
novos serviços urbanos, providos por companhias estrangeiras, o final do século
19 se configurou em uma transformação radical para a cidade de São Paulo. Um
processo tão extremo que, de acordo com o arquiteto, é distinto tanto de
cidades europeias quando de capitais sul-americanas.
Nas primeiras décadas do século 20, São Paulo
enfrentou uma série de enchentes que atingiu seu ápice em 1929. Para sanar a
subida dos rios, empresas como a Light & Power, de capital canadense e
responsável pela formação da Represa de Guarapiranga, em 1907, obteve a
concessão do governo federal para retificar, canalizar e inverter o curso do
Rio Pinheiros. Paralelamente, a prefeitura municipal se responsabilizou por
obras no Rio Tietê e São Paulo sofreu o que Gouvêa classificou como “um ponto
de inflexão”.
“Os rios foram retificados, as várzeas foram saneadas. A cidade pôde ocupar
espaços e eles sumiram.
Rodovias foram instaladas e isso praticamente
consolidou o tipo de relação que a cidade tem com os rios até hoje”, explica o
arquiteto.
Para ele, é fundamental compreender como, em uma
esfera tanto simbólica quanto factual, terra e água foram separados.
“Terra virou lote e a água virou algo para
se obter energia e servir de destino ao esgoto.”
Na visão do pesquisador, em 30 anos, São Paulo
migrou de uma cidade pequena para uma cidade grande e isso ainda reverbera na
identidade da capital. “Até hoje, nós não temos nenhum espaço dela que
possamos considerar um bem comum”, reflete.
Um novo
entendimento sobre rios
Não são poucos os projetos e pesquisas que
almejam a despoluição dos rios paulistanos, entretanto, Gouvêa não acredita que
exista uma solução direta para um problema que está encalacrado nas políticas
que formaram São Paulo.
“O rio hoje é a manifestação da forma como a
gente vive”, reflete ele. “O agravante é que a gente não vê o rio e o fato de
termos rodovias instaladas ao lado dos rios impossibilita qualquer tipo de
identificação e ação”, lamenta.
Na opinião do urbanista, o rio foi
separado entre terra e água, sendo preciso articular um pensamento que torne o
rio de novo uma unidade. Na imagem, o Rio Pinheiros – Foto: Marcos Santos / USP
Imagens.
Com canais administrados pelo governo do Estado e
as margens pela prefeitura municipal, os rios da capital paulista enfrentam uma
série de entraves políticos que dificultam sua gestão conjunta. “O rio foi
separado entre terra e água, e nós teríamos que articular um pensamento que
tornasse o rio de novo uma unidade”, argumenta o especialista ao apontar que,
na escala de urgência das agendas políticas, os rios estão listados como uma
prioridade menor.
Para Gouvêa, a melhor alternativa seria
criar estratégias mais radicais de reaproximação da população com os rios, num
esforço que superasse ações de embelezamento e que, verdadeiramente,
educasse gerações futuras.
A tese A presença e a ausência dos rios de São
Paulo: acumulação primitiva e valorização da água foi orientada pela professora
Angela Maria Rocha, da FAU, e pode ser acessada neste link.
Mais informações: e-mail paulogou@uol.com.br,
com José Paulo Neves Gouvêa
Fonte: USP
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