A propósito
da sangria (vertimento) do reservatório da hidrelétrica de Xingó, artigo de
João Suassuna.
Antes das intervenções no São Francisco,
com as construções das barragens de Três Marias (1962) e Sobradinho (1979),
visando à regularização volumétrica do rio, a vazão média histórica do Velho
Chico situava-se em torno de 2.800 m³/s. Apesar de não existirem barreiras
artificiais que impedissem o fluxo natural das águas, a amplitude volumétrica
do rio se comportava de forma preocupante, prejudicando, e muito, as pretensões
das instituições responsáveis pela geração elétrica da região (Cemig e Chesf),
de obterem uma energia, segura e estável.
As secas na bacia do Velho Chico, sempre
existiram (em outubro de 1955, houve
registro de vazão da ordem de apenas 595 m³/s). Enchentes
monumentais também foram apontadas, com a calha do rio escoando volumes da
ordem de 20.000 m³/s (na cheia de 1979).
Diante de números tão díspares, a
construção de represas reguladoras de volumes, no Velho Chico, se fazia
necessária. Sobradinho, por exemplo, quando foi construída, regularizou a vazão
média do Submédio e do Baixo São Francisco, em cerca de 2.060 m³/s, volume que
solucionou, por um bom período de tempo, os problemas de geração de energia no
complexo da Chesf, em Paulo Afonso.
Com o desenvolvimento do Nordeste, os
grandes empreendimentos – demandantes de significativo volume de energia –
foram se ampliando, a população da região foi crescendo, e a potência geradora
de energia ofertada pela Chesf, de 10.000 MW, permaneceu inalterada. Esse fato
resultou em sérias limitações no atendimento da demanda energética, sob a
responsabilidade da Chesf. Em 2010, por exemplo, o complexo produtor da
Companhia gerou uma energia equivalente a 6.000 MW médios para um consumo de
cerca de 8.000 MW. Portanto, 2.000 MW médios já tiveram que ser transmitidos de
outras fontes geradoras de energia do País, localizadas fora da região
Nordeste.
Atualmente, com a existência de grandes
represas reguladoras de volumes no rio (Três Marias e Sobradinho), o São
Francisco passou a ter suas vazões controladas artificialmente, sendo possível,
por exemplo, de acordo com os percentuais volumétricos existentes nos
reservatórios, reduzir e aumentar as vazões na calha do rio, independentemente
da situação do tempo reinante: se na quadra chuvosa ou em período de estiagem.
Para facilitar as ações de geração, a Chesf implantou, ao longo do São
Francisco, estações mensuradoras de vazões, que monitoram seus volumes,
principalmente aqueles decorrentes das chuvas caídas ao longo de sua bacia.
Vale salientar que, mesmo após a
construção das represas reguladoras de Três Marias e Sobradinho, por
conseguinte com o mecanismo regulador de vazão em pleno funcionamento, houve
registros, nos postos de observação de São Romão e São Francisco, de vazões
inferiores a 400 m³/s, abaixo, portanto, da vazão registrada no período de
estiagem de 1955, de cerca de 595 m³/s, na região de Juazeiro/Petrolina,
considerada, até então, a menor, em valor, apontada no São Francisco.
Além disso, um fato assustador ocorreu
na grande estiagem de 2015, quando o Velho Chico desidratou de vez: a sua
nascente secou, o rio Verde Grande interrompeu seu curso, a represa de
Sobradinho chegou a 1% do seu volume útil e houve o perigo de o rio São
Francisco vir a interromper o seu curso na altura de Pirapora, limite do Alto
com o Médio São Francisco, fato que felizmente não se concretizou, em virtude
do início da quadra chuvosa salvadora.
Outro fator que merece registro é o uso
indiscriminado, pelo agronegócio, das águas subterrâneas dos principais
aquíferos do Rio São Francisco, a exemplo do Urucuia, que vem interferindo nas
vazões de base do rio. Nos subsolos desses aquíferos, os fluxos de base se
fazem em direção à calha do rio, normalmente de forma lenta e gradual, chegando
a ocorrer numa escala de apenas alguns centímetros por dia. Em contrapartida,
as irrigações praticadas pelo agronegócio, como as da região da MAPITOBA, no
extremo-oeste baiano, que utilizam pivôs centrais, chegam a retirar, do
subsolo, volumes de cerca de 2.600 m³ por hora. Adotando essa prática, as
empresas irrigantes, sempre vorazes em grandes volumes de água, chegam a
provocar a interrupção dos fluxos de base no Rio São Francisco em direção à sua
calha, prejudicando sobremaneira o regime de suas vazões. Para se ter ideia da
importância dessas vazões de base, o hidrogeólogo José do Patrocínio Tomaz
Albuquerque, em seus trabalhos, afirma que, os fluxos
de base provenientes do aquífero Urucuia, representam cerca de
50% das vazões do São Francisco que alimentam a represa de Sobradinho.
Atualmente, os frequentes períodos de
seca na bacia do rio, somados aos usos indiscriminados das águas de subsolo dos
seus principais aquíferos, vêm resultando na diminuição das vazões
regularizadas do rio em sua foz. Mensurações realizadas recentemente dão conta
de valores de cerca de 1.850 m³/s, com tendências a caírem mais ainda.
Todo esse balanço hídrico, atualmente
tão desfavorável à manutenção da vida do rio São Francisco, necessita ser
revisto em futuros planejamentos que venham a ser efetivados na sua bacia e que
visem ao desenvolvimento daquela região. Infelizmente, o que se percebe é um
enorme empirismo na gestão dos recursos sanfranciscanos. A prova disso é a
construção das hidrelétricas de Riacho
Seco e Pedra Branca (2013), localizadas na cascata entre
Sobradinho e Xingó, obra fisicamente impossível de obter êxito, devido à falta
de água no rio São Francisco. Na maioria das vezes, as ações de desenvolvimento
são propostas e realizadas como se a água fosse um bem natural infinito e,
portanto, sujeita a usos igualmente ilimitados.
A consequência desses desmandos nos usos
das águas do Velho Chico é traduzida na atual situação de penúria hídrica,
vivenciada em toda sua bacia hidrográfica. As tentativas de não se permitir que
a represa de Sobradinho alcance o volume morto, em novembro próximo, vem
provocando muitos transtornos na vida do cidadão residente tanto no Submédio
quanto no Baixo São Francisco, limitando suas possibilidades de irrigar terras,
de beber água de boa qualidade, de gerar energia e, mais recentemente, de
abastecer a região do Setentrional com as águas
provenientes do projeto da Transposição. A represa de Sobradinho
vem defluindo, atualmente, cerca de 600 m³/s, e já se comenta a possibilidade
desse valor ser reduzido para 500 m³/s. O desastre está se configurando!
Apesar desse preocupante cenário, no
início do mês de maio, para surpresa de muitos, as autoridades iniciaram uma
manobra, na represa de Xingó, aparentemente sem propósito,
abrindo suas comportas e deixando verter um significativo volume de água, num
momento de grave crise no agravamento das questões hídricas em toda a bacia do
São Francisco, deixando boquiabertos muitos cidadãos. Afinal, como seria
possível uma decisão daquelas, quando a economia de água seria mais sensata e
de mais valia? Que sentido haveria na abertura das comportas da hidrelétrica
com o consequente desperdício de um grande volume de água? Em tal caso, o desperdício,
puro e simples, do precioso líquido, parecia prevalecer! Além disso, houve o
desligamento de uma máquina com potência equivalente a 500 MW, certamente
desfalcando a oferta geradora do País, de um significativo pacote de energia,
em um momento no qual os reservatórios
das hidrelétricas do Sudeste, os mais importantes da nação
brasileira em termos de geração de energia, se encontram com menos da metade de
suas capacidades (junho/2017).
Com o passar do tempo, as informações
foram circulando na academia e passou-se a entender melhor o porquê daquele
vertimento, aparentemente fora de propósito. Na verdade, a abertura das
comportas de Xingó deveu-se a uma necessidade de ajustes do setor de geração de
energia elétrica da região.
Para operar com duas, das suas seis máquinas, a
hidrelétrica de Xingó, necessitava de um aporte de água de cerca de 700 m³/s,
provenientes de Sobradinho, e de outros volumes provenientes do complexo
hidrelétrico de Paulo Afonso. Cada turbina de Xingó tem potência instalada de
cerca de 500 MW e uma vazão de engolimento, de cerca de 500 m³/s. Ocorre que o
atual período de estiagem na bacia, juntamente com a falta de gestão dos
recursos hídricos da região, obrigaram as autoridades a diminuírem, ainda mais,
a defluência de Sobradinho, para cerca de 500 m³/s, visando livrar a represa do
fantasma do volume morto, a partir de novembro. Essa nova defluência da represa
de Sobradinho inviabilizou a operação simultânea das duas máquinas de Xingó,
com o consequente desligamento de uma delas. Essa nova realidade na
hidrelétrica, operando com apenas uma máquina, resultou em sobras volumétricas
da máquina desligada, fazendo com que o saldo desses volumes, agora sem função
aparente, fosse liberado pelas comportas da hidrelétrica. Essa foi o nosso
entendimento para a razão do vertimento da hidrelétrica de Xingó, em período de
grave escassez hídrica na bacia do Rio São Francisco.
Após esse relato, dá para perceber o
tamanho do problema que as autoridades do setor hídrico do nosso País vão ter
que enfrentar e resolver. Nesse sentido é importante insistir na necessidade,
para aqueles que têm o poder decisório nas mãos, de considerarem, doravante, os
recursos hídricos, como uma questão de segurança
nacional!
João
Suassuna – Eng° Agrônomo e Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco
Fonte: EcoDebate
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