Refugiados: os diversos contextos das fronteiras humanitárias.
Por Sucena Shkrada Resk*,
especial para Envolverde –
As relações humanas trafegam em
linhas tênues que reúnem processos culturais centenários, questões
socioeconômicas, religiosas e limites geográficos, que integram a
geopolítica, que ora se fundem, e ora segregam. Historicamente é
isto que vimos em diferentes partes do mundo e começamos a ter
exemplos mais cotidianos aqui no Brasil, com os episódios envolvendo
grupos de brasileiros e venezuelanos, na fronteira dos dois países,
em Roraima. Compreender a situação de “refúgio” é algo que
exige se despir de “pré-conceitos” e o exercício de se colocar
no lugar do outro. Tarefa fácil, longe disso, mas extremamente
necessária para que sejam evitados conflitos civis, que mutilam
qualquer regime democrático.
Segundo a Organização das Nações
Unidas (ONU), mais de 2,3 milhões de venezuelanos partiram para
destino incerto de seu país, ao longo dos últimos anos, sob regime
do presidente Nicolás Maduro, onde vivem cerca de 30 milhões de
habitantes. É um número bem maior de refugiados do que na Europa.
O país vive sob uma inflação, que
deve chegar à casa dos 2.350%, de acordo com o Fundo Monetário
Internacional (FMI), sofre embargo dos EUA e de outros países e
apesar de ser rico em combustível fóssil (petróleo), a carestia
chegou de forma avassaladora à população. A violência também
permeia a população de diferentes formas. O Observatório
Venezuelano da Violência (OVV) registrou que 28.479 pessoas foram
mortas em 2016 no país, que representa na ampliação da taxa de
homicídios de 91,8 por cem mil habitantes. No ano de 2017, houve
manifestações contra a crise humanitária.
Segundo relatório das
ONGs Human Rights Watch (HRW) e Fórum Penal, neste episódio
ocorreram violações de direitos humanos cometidas pelas Forças
Armadas venezuelanas.
Trata-se, sem dúvida, de uma crise
humanitária. Além do Brasil, para onde já vieram mais de 58 mil
(registrados), os principais destinos na América do Sul, são a
Colômbia, o Equador e o Peru, como também o Chile e a Argentina.
Hoje a pergunta que permanece – O
quanto nós e nossas nações estamos preparados para este fluxo de
pessoas que estão vindo em diversas situações, desde quadros de
miserabilidade aos de capacidade de formação e trabalho oriundas de
suas trajetórias? No caso brasileiro, esta complexidade se soma
também à situação da crise interna do país, que reflete diversos
Brasis, que tem seus próprios “refugiados” internos e uma
situação macro de 13 milhões de desempregados.
O Equador e o Peru já começaram a
exigir passaportes dos venezuelanos. No caso do Equador, a Justiça
do país deu um prazo de 45 dias de suspensão das medidas. O
controle das fronteiras começa a ser mais severo. Já o Chile, por
exemplo, está pedindo certificado de antecedentes criminais emitido
na Venezuela, além de passaporte que não expire nos 18 meses após
a entrada do refugiado.
No contexto das negociações
regionais, a Organização dos Estados Americanos (OEA) não
conseguiu encontrar uma via de solução para esta crise, que
extrapola a autonomia governamental venezuelana. É um problema que
vai muito além de polarizações entre “Direita” e “Esquerda”
e se revela uma agenda de direitos humanos internacional.
No Brasil, as fronteiras ainda estão
abertas aos refugiados, mas sob esse contexto de pressão e
incertezas do encaminhamento das políticas a respeito, nesta fase de
processo eleitoral. Fazendo parênteses, há outros componentes que
devem ser observados. O próprio estado de Roraima é refém de uma
situação que poucos sabem: 65% de sua energia são provenientes da
Venezuela e o Brasil deve cerca de R$ 120 milhões à empresa de
energia venezuelana, que estão sendo cobrados, com iminência de
corte. A Eletrobras alegou que conseguirá cobrir esse corte caso
ocorra, em 15 municípios, e detalhe – com termoelétricas, já que
o estado não integra o Sistema Interligado Nacional (SIN) de
energia. São panos de fundo a serem considerados nesta complexidade.
Voltando ao processo migratório de
venezuelanos, são famílias inteiras, que se veem nos últimos anos,
reféns de um sistema político e econômico conturbado, de condições
insalubres de vida e tentam encontrar guarida nos “países”
hipoteticamente irmãos, no sentido simbólico. É como se houvesse
uma mensagem subliminar – ‘somos sul-americanos, ainda há
esperança’. Já pararam para pensar como a maioria destas pessoas
se sente humilhada e, por muitas vezes, deprimida? Como para qualquer
um de nós, passar fome, ser privado de um emprego, de serviços de
saúde e estar exposto a violências físicas e psicológicas de todo
tipo, é algo que exige extrema resiliência.
História em movimento
No guarda-chuva histórico, mais um
ponto de reflexão é lembrar que o Brasil, como os demais países do
mundo, é formado por povos originários e imigrantes, que aqui
vieram por meio das mais diferentes circunstâncias. Entre elas, na
contemporaneidade, sob a lente de aumento sobre as motivações e
resultados das Primeira e Segunda Guerras Mundiais e de conflitos
presentes entre Israel e Palestina, das situações na Síria, no
Haiti, em países como Somália, Sudão do Sul, Paquistão e
Nicarágua. Todos esses processos históricos não são números e
informes frios quaisquer. O que vivenciamos aqui está no contexto
destas crises humanitárias pelo planeta.
Sempre há a parte do “copo
cheio”, nestas grandes crises humanitárias, com exemplos que
agregam princípios de boa governança, de pacifismo, comunicação
não-violenta, de humanidade e equilíbrio democrático. O Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), a Cruz
Vermelha e a Human Rights Watch (HRW), entre outras organizações
atuam nestas retaguardas mais organizadas internacionalmente, mas não
têm dado conta de um fluxo e periodicidade incerta desses períodos
de refúgio. Especificamente em Roraima, cerca de 40 organizações
que integram o chamado Comitê para Migrações de Roraima chegaram a
fazer uma nota de repúdio à situação de violência que ocorreu em
Pacaraima recentemente
(https://www.conectas.org/wp/wp-content/uploads/2018/08/COMIRR-Nota-01-2018-Final-6.pdf).
São alertas oportunos.
O fantasma da xenofobia
O que vimos na realidade, no
entanto, é que um conjunto de fatores tem revelado que o paradigma
da amplitude do significado de ‘humanidade’ está sendo
fragilizado também por um “medo” por parte de coletivos dos
países fronteiriços aos que estão em crise e inoperância
sistematizada dos governos.
Essa desagregação se transforma em
raízes da formação de estereótipos preconceituosos, pelos quais
se alicerçam guetos, cisões e segregações. O fantasma da palavra
xenofobia aparece nesta atmosfera desequilibrada.
O termômetro de que a desconstrução
da relação humanitária está em vigor aparece quando movimentos em
massa de violência exacerbam o ódio e o ranço pelo fato da
existência próxima de um outro semelhante que fala uma língua
diferente, ter nascido em outro país, seja ele, criança, adulto ou
idoso. De uma hora para outra, esse agrupamento de seres humanos
“refugiados” se torna de forma infundada um “inimigo” e ponto
final. Neste processo conturbado, que integra os diferentes
vértices da psicologia social, todas estas pessoas em estado de
vulnerabilidade acabam sendo rotuladas como personagens que
representam um perigo hipoteticamente iminente à segurança e à
empregabilidade, no lugar de poucos que possam ter praticado algum
ato ilícito.
Enquanto a situação de crise da
Venezuela ou de outro país é simplesmente pauta de noticiários, a
solidariedade remota funciona, mas quando se faz parte da crise, aí
é que o equilíbrio emocional e a racionalidade de se cobrar ações
dos governantes, e de exercitar a solidariedade prática, se tornam
os desafios presentes. É um esforço que exige a participação
multidisciplinar dos governos federal, estadual e municipal, dos
poderes judiciário e legislativo, desde o âmbito das relações
internacionais à retaguarda de vigilância epidemiológica. Nós,
como parte da sociedade civil, somos constituintes desta engrenagem e
fazemos a diferença entre a contribuição para a paz ou para o
conflito.
Sucena Shkrada Resk é
jornalista, formada há 26 anos, pela PUC-SP, com especializações
lato sensu em Meio Ambiente e Sociedade e em Política Internacional,
pela FESPSP, e autora do Blog Cidadãos do Mundo – jornalista
Sucena Shkrada Resk (https://www.cidadaosdomundo.webnode.com),
desde 2007, voltado às áreas de cidadania, socioambientalismo e
sustentabilidade.
Fonte:
ENVOLVERDE
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