Direitos
Humanos: Os santos perseguidos.
por Gabriele Roza , da
Agência Pública –
Crimes de ódio contra praticantes de Umbanda
e Candomblé no Rio Janeiro representam 90% dos casos do disque-denúncia
estadual; no país, as denúncias de discriminação por motivo religioso cresceram
4960% em 5 anos.
Os vizinhos, quando perceberam as chamas,
chamaram o irmão de Mãe Merinha, que mora perto, para ajudar a apagar o fogo. O
incêndio foi controlado a tempo de não afetar a edificação principal, mas,
no dia seguinte, Mãe Merinha percebeu que colocaram fogo bem na casa do meio,
onde ficavam os donativos, roupas de santo e os orixás. Os criminosos furtaram
também uma TV, celular e rádio. O Registro de Ocorrência foi feito uma semana
depois, já na segunda tentativa: ‘‘A delegacia estava muito cheia, fiquei
umas três horas lá, tava muito enfraquecida, chocada com tudo, fui buscando
força, aí retornei na quinta-feira’’.
Mãe Merinha segura uma das fotos
que sobrou do incêndio (Foto: Dado Gadieri e Pilar Olivares/Hilaea Media)
Mãe Merinha é uma das vítimas mais recentes da
violência contra adeptos das religiões de matriz africana no Estado do Rio de
Janeiro. De acordo com os dados do Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e
Direitos Humanos (Ceplir), das 52 denúncias de intolerância religiosa ao Ceplir
– de dezembro de 2016 a agosto de 2017-, 34 foram de pessoas do
Candomblé, Umbanda e outras denominações de religiões de matriz africana no
Estado do Rio.
Em cinco anos, as denúncias de discriminação por
motivo religioso no Brasil cresceram 4960%.
Foram de 15, em 2011,
para 759, em 2016, de acordo com os dados do Disque 100, da Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República (SDH). Em 2016, 69 eram
candomblecistas (9,09%), 74 eram umbandistas (9,75%) e 33 são descritas como
“religião de matriz africana” (4,35%), totalizando 23,19%.
Segundo relatório da Pew Foundation, o país deixou de ser um
dos países mais populosos com menor taxa de Hostilidade Social por motivações
religiosas, em 2007, para um dos países com alta taxa em 2014, passando da
2ª posição para a 9ª neste período.
Em agosto e setembro deste ano, uma nova onda de
ataques a terreiros de Candomblé e Umbanda na Baixada Fluminense comprovou que
os crimes de ódio por motivo religioso estão crescendo no estado que tem, pela
primeira vez, um bispo evangélico governando a sua capital – em janeiro,
Marcelo Crivella (PRB), bispo de Igreja Universal do Reino de Deus, assumiu a
prefeitura do Rio de Janeiro.
Em resposta à violência, a Secretaria de Estado
de Direitos Humanos (SEDHMI) lançou o Disque Combate ao Preconceito para
facilitar as denúncias.
Nos meses de agosto e outubro foram feitas 43
denúncias: uma de um espírita kardecista, uma de um evangélico, dois islâmicos
e 39 umbandistas e candomblecistas, representando 90% do total. Foram seis
tipos de violações identificadas, entre eles invasão/atentado a instituições
religiosas (11), discriminação/difamação (10), agressão física (6), incitação
ao ódio (6), agressão verbal (6), ameaça (4).
Inquisição do
tráfico na Baixada
Dentre as denúncias contra religiosos de matriz
africana, 12 ocorreram na Baixada Fluminense. A região reúne 13
municípios do Rio de Janeiro e abriga ao menos 274 terreiros, do total de
847 no Estado, de acordo com a pesquisa Mapeamento das Casas de Religiões de Matrizes Africanas, realizada
pela PUC-Rio com o apoio da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial (SEPPIR/PR), entre 2008 e 2011.
A SEDHMI recebeu quatro denúncias de ataques a
terreiros realizados por traficantes de agosto a outubro, três delas de
ocorrências na Baixada Fluminense – duas em Nova Iguaçu e uma em Itaguaí.
Segundo a secretaria, as quatro vítimas informaram que por ordem da facção
criminosa é proibida a prática de religiões de matriz africana na área dominada
pela facção. Todas as pessoas que denunciam casos de intolerância religiosa são
orientadas a fazer o registro na delegacia da região, mas algumas vítimas não o
fazem por medo.
Em setembro, o terreiro da mãe de santo
Carmen de Oxum foi atacado em Nova Iguaçu. O traficante, que
ainda registrou o crime com a câmera de um celular, dá ordens para destruir os
objetos sacralizados: ‘‘quebra tudo, apaga as velas, pelo sangue de Jesus tem
poder… Todo mal tem que ser desfeito em nome de Jesus’’. Segundo o
diretor-Geral da Polícia da Baixada Fluminense, Sérgio Caldas, o caso está
sendo investigado pela 58ª DP e já foram identificados, como
executores, dois traficantes do Terceiro Comando Puro, facção criminosa
conhecida por ameaçar candomblecistas e umbandistas. ‘‘Essa pessoa veio de uma
outra comunidade para pressionar os terreiros de candomblé’’, disse Caldas
à Pública, acrescentando que as condições “não são favoráveis”
para a investigação. “Quando ocorre em comunidade conflagrada, a vítima fica
com medo de se expor’’.
Os indiciados deste caso serão penalizados pela
Lei 7.716, de 1989, conhecida como “Lei Caó’’, que determina a punição para os
crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia,
religião ou procedência nacional, como crime inafiançável e
imprescritível. A pena é de dois a cinco anos de reclusão.
O babalaô Ivanir dos Santos, fundador
da Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa e porta-voz da Comissão
de Combate à Intolerância Religiosa, diz que as primeiras ações
de destruição de terreiros por traficantes aconteceram na
década de 1990, no Morro do Urubu, em Pilares, Zona Norte do Rio. Depois,
outros casos ocorreram no Morro do Dendê (localizado na Ilha do Governador), no
Lins de Vasconcelos e na Cidade Alta. “É um fenômeno compreensível. Toda
religião que cresce vai influenciar algumas esferas sociais’’, diz. Ivanir acredita
que a presença de igrejas evangélicas nos presídios do Rio é um fator de
influência para o surgimento do que chama de “tráfico evangelizado’’.
‘‘O cara
tá lá preso, vira evangélico e vai sair por bom comportamento, isso diminui a
pena do sujeito… Quando sai da prisão, nem todo mundo muda de vida”, diz.
As igrejas evangélicas devem se tornar ainda mais
presentes nos presídios fluminenses. Em fevereiro, a Igreja Universal do
Reino de Deus firmou acordo com o Governo do Estado para a construção de templos
em unidades penitenciárias, custeados pela instituição religiosa. O
acordo permite que a Universal construa ou reforme templos ecumênicos
nas 51 unidades prisionais do Estado, dependendo de autorização do
diretor da unidade. Até o momento, graças ao convênio, 15 templos foram
inaugurados ou reformados, nos Complexos de Gericinó, Campos, Resende e Água
Santa.
A Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva do
Sistema Prisional e Direitos Humanos do Rio de Janeirovisitou as unidades
prisionais onde foram construídos os templos religiosos para apurar a validade
do acordo. Segundo o promotor de Justiça Murilo Nunes de
Bustamante, os espaços não deveriam ser vinculados à religião específica,
mas o padrão arquitetônico encontrado por eles se assemelha ao usado pela
Igreja Universal. ‘‘Apesar da previsão de ser ecumênico de ter o livre uso pra
qualquer um, os próprios internos só admitiriam que algumas religiões
realizarem seus cultos no local’’. A investigação
da Promotoria ainda não foi concluída. “Os indicativos são no sentido
da identidade arquitetônica dos espaços, o que será debatido com as igrejas
atuantes no sistema prisional’’, esclareceu.
Em resposta à Pública, a Igreja
Universal do Reino de Deus informou que o programa social Universal nos
Presídios (UNP) atende 80% da população carcerária do Brasil, aproximadamente
500 mil pessoas, do total de 622 mil detentos, segundo o Infopen de 2014,‘‘oferecendo cursos e apoio aos detentos e
seus familiares, realizando um trabalho de ressocialização que é reconhecido
pelas autoridades em todos os estados da Federação, inclusive no estado do Rio
de Janeiro’’.
Oito homicídios
por intolerância religiosa
Os dados disponíveis no Relatório de Intolerância e Violência Religiosa, da
Secretaria Especial de Direitos Humanos,detalha o que ativistas pela liberdade
religiosa chamam de ‘‘Guerra Santa’’. O Relatório mostra que, entre 2011 e
2015, 27% das denúncias feitas nas ouvidorias do país eram de pessoas da
religião de matrizes africana, 16% de evangélicos, 8% de católicos e a 7% de
espíritas. Em relação à religião dos agressores, informada pela vítima, as
informações indicam que 17% eram evangélicos. Católicos aparecem em segunda
posição, porém muito distantes, com 3%, seguidos de Testemunhas de Jeová
(1%) e Espíritas(1%), Matriz Africana (1%). Em 73% dos casos não foram
registradas informações sobre a religião do agressor.
Também foram identificados no Relatório oito
homicídios por motivo religioso, segundo investigações da polícia civil ou do
Ministério Público. Quatro mortes envolveram lideranças de candomblé, em
Londrina (PR) e em Manaus (AM), e quatro foram mortes de uma mesma família de
evangélicos, em Itapecerica da Serra (SP). Todos os assassinatos foram
realizados por uso de facas, e os agressores e vítimas eram próximos.
O professor Jayro de Jesus, coordenador da Escola
Livre Ubuntu de Filosofia e Teologia Afrocentrada, explica que os
neopentecostais entendem que a fé traz saúde, bem estar e prosperidade
material. Já as doenças, desemprego e pobreza resultam do ‘‘mal’’ e de uma vida
em pecado. ‘‘É o mal que prejudica a vida alheia. E o mal é tipificado nas
religiões afro’’, explica. ‘‘Os neopentecostais, hoje, contam com a ajuda da
própria população que encontra justificativa para acabar com o mal que é o seu
vizinho, o seu entorno.’’
Jayro, figura histórica na luta contra a
violência às religiões de matriz africana, coordenou nos anos 80 o Projeto
Tradição dos Orixás, que visitava os terreiros na Baixada para ouvir
relatos de intolerância, e encaminhava para as delegacias. ‘‘Eram 20 jovens que
saiam por toda a Baixada. Levantamos 3 mil terreiros com queixa de invasão,
xingamentos, apedrejamentos, surras de bíblia’’, relembra. “A perseguição vinha
essencialmente da Igreja Universal’’, diz.
Os relatos ao grupo foram reunidos no Dossiê ‘‘A
Guerra Santa Fabricada’’, primeiro entregue ao Governo Federal sobre o assunto,
protocolado na Procuradoria-Geral da República em 1989. Mas nada foi feito,
garante Uilian Portella, advogado do grupo. ‘‘O dossiê denunciou reiteradas atitudes
agressivas das igrejas evangélicas neopentecostais, notadamente a denominada
Universal do Reino de Deus… Os adeptos dos cultos de Matriz Africana vinham
sendo apedrejados, espancados e surrados com Bíblias ‘para expulsar capetas’”.
Em 2015, as emissoras de televisão Rede Record e
a Rede Mulher (comprada pela Record), de Edir Macedo, fundador e líder da
Igreja Universal, foram condenadas pela Justiça Federal a exibir quatro
programas de televisão como direito de resposta às religiões de matriz africana
por ofensas contra elas no programa “Mistérios” e no quadro “Sessão de
Descarrego”.
Procurada pela reportagem, a Universal
afirmou que a acusação de que seus membros perseguiam outros cultos na década
de 80 é “mentirosa”. “A Igreja Universal do Reino de Deus defende, de modo
intransigente, a liberdade de pensamento, de crença e de culto, conforme
assegurado por nossa Constituição Federal”. A Igreja diz que prega o contrário.
“Orientamos nossos adeptos a respeitarem as convicções das outras pessoas, pois
são exatamente os bispos, pastores e milhões de simpatizantes da Universal as
maiores vítimas do preconceito religioso no Brasil”, afirmou, por nota.
‘‘É como se
tivessem arrancado um filho”
Às 22h do dia 4 de outubro deste ano, Mãe Vivian de
Souza estava em casa, em Nova Sepetiba, quando recebeu a ligação de um vizinho
do seu terreiro, em Seropédica, na Baixada. Por telefone, ele disse que
entraram na casa dela e, até aquela hora, muitas imagens e objetos já deveriam
estar quebrados. O vizinho repassou a ameaça de que se ela não retirasse
os pertences o mais rápido possível, iriam destruir tudo. Mãe Vivian
entrou em desespero. Sua casa fica a uma hora de distância de carro.
Há quase dois anos, Mãe Vivian se mudou com a
família para Nova Sepetiba e transformou a sua casa em Seropédica em Casa de
Candomblé. Não visitava o terreiro com regularidade, mas podia ficar uma ali
uma semana inteira ou apenas um fim de semana, ‘‘o tempo que a obrigação
religiosa exigir’’. Quando chegou à casa, próximo da meia noite, viu o portão
arrombado, o Orixá Bará no chão, os Exus quebrados. Conseguiu um caminhão para
tirar o que sobrou. No dia seguinte, alugou uma casa em Sepetiba para começar a
construção de um novo espaço dedicado aos orixás. Para o anterior, não quer
voltar mais: ‘‘É como se tivessem arrancado um filho meu’’. Além dos orixás,
destruíram a própria estrutura da casa e outros objetos, ‘‘coisa que pra gente
tem muito valor. Um búzio, uma moeda pra gente vale, pra outras pessoas talvez
não, mas é muito ruim’’, contou.
Mãe Vivian mudou o terreiro para
uma casa mais isolada em Sepetiba (Foto: Dado Gadieri e Pilar Olivares/Hilaea
Media)
Mãe Vivian foi até a Delegacia em Sepetiba para
fazer a denúncia, mas foi orientada a fazer o Registro de Ocorrência online ou
ir à delegacia de Seropédica. “A forma que eles agem é como se você fosse
culpado por aquilo que tá acontecendo, ‘porque a senhora não tava lá na hora?’.
Não sou eu que tenho que saber quem foi.’’ Para ela, não há interesse da
polícia em realizar uma investigação de fato.
Com a crise, o
fim do Centro de Promoção da Liberdade Religiosa
Mãe Vivian buscou ajuda no Centro de
Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos (Ceplir) que, de 2012 até
este ano, atendeu às vítimas de intolerância no Estado Rio com
acompanhamento psicológico, jurídico e assistência social.
Porém, Flávia Pinto, que era diretora da
instituição até esta semana, explicou à Pública que o Centro
deixou de receber recursos do Governo do Estado em 2016. ‘‘Com a
crise do Estado, o Ceplir ficou sucateado. Conseguimos recurso com a Fundação
Cultural Palmares [do Governo Federal] e colocamos o Ceplir pra funcionar por
mais um ano na UFF [Universidade Federal Fluminense], mas esse recurso
acabou’’, informou. ‘Estamos conscientizando as pessoas de que
intolerância religiosa é crime. A política de liberdade religiosa ainda é
embrionária no país. As pessoas ainda não têm o entendimento de que ser
discriminado pela sua religiosidade é crime’’.
O secretário estadual de Direitos Humanos, Átila
Alexandre Nunes, rebate as críticas. Segundo ele, a Secretaria estadual de
Proteção e Apoio à Mulher e ao Idoso passou a ser Secretaria de Estado de
Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos (SEDHMI) e, com a mudança,
a secretaria vai incorporar os técnicos do Ceplir já em novembro ‘‘pra
que seja uma estrutura permanente, consolidada e que não dependa de recurso de
terceiros’’. Mesmo assim, a Ceplir não terá atendimento em novembro, mês da Consciência
Negra, segundo Flávia. Ela agora vai trabalhar na Secretaria Municipal de
Direitos Humanos da capital.
Em agosto, o secretário anunciou que o Estado vai
criar uma delegacia policial especializada em combate a crimes raciais e
delitos de intolerância, a DECRADI, com um grupo capacitado para realizar as
investigações e os atendimentos com as vítimas de crimes de ódio.
Mãe Vivian na porta da casa em
Sepetiba com parte da estrutura da casa de Seropédica em mãos (Foto: Dado
Gadieri e Pilar Olivares/Hilaea Media)
Sobre o problema orçamentário, o secretário
acredita que a ação pode desafogar as delegacias regionais que vão poder
encaminhar para a especializada a investigação. ‘‘Estamos falando de uma
estrutura mais enxuta, a Secretaria de Direitos Humanos disponibilizaria os
técnicos de psicossocial pra fazer o atendimento e ajudar nesse acolhimento das
vítimas’’.
‘‘Infelizmente, estamos vivendo um outro momento
que traficantes estão perseguindo os terreiros, a lógica agora é uma lógica
territorial por conta desses traficantes’’, diz o secretário. A violência por
parte dos traficantes estimula o aumento do número de casos não notificados e
dificulta o trabalho da polícia. ‘‘No caso da mãe Carmen, foram quase 10
traficantes, segundo o relato dela. A gente até acompanhou ela até a delegacia,
mas ela não quis assinar o depoimento por receio”, conta. Ele diz ainda que há
uma sensação de impunidade por esses casos não serem tratados com seriedade e
notificados como intolerância religiosa.
O Delegado Henrique Pessoa, da 151º DP de Nova
Friburgo, coordenou o Núcleo de Combate a Intolerância da Polícia Civil que
centralizava as informações de ocorrências recebidas pela Comissão de Combate à
Intolerância Religiosa. “Esse assessoramento nas delegacias. A nossa função era
devolver à polícia a consciência da relevância da investigação. O problema não
pode ser enfrentado de uma forma banal. Mas, lamentavelmente, a polícia
trabalha em condições precárias, de forma inadequada.’’ O núcleo foi extinto em
2012, durante a reestruturação da polícia civil, no governo de Sérgio Cabral
(PMDB).
Mãe Elaine e Pai
Márcio
Mãe Elaine Dias Pereira, mãe Elaine de Oxalá,
mora em Nova Iguaçu há 30 anos – e há 30 anos sofre perseguição pela sua
religião. Ela conta que logo que começou a casa em Santa Rita, bairro de Nova
Iguaçu, já colocaram fogo nas colunas da casa. Ainda hoje, jogam constantemente
pedras nas telhas.
Até dezembro do ano passado, ela nunca tinha feito uma
denúncia ou registro de ocorrência na delegacia. Mas, daquela vez, explodiram
uma bomba no relógio de luz do terreiro enquanto ocorria uma cerimônia
religiosa. ‘‘Tinha muita gente, muitos filhos aqui na casa, tinha criança,
mulher grávida, e a explosão foi assustadora, naquele momento da explosão a
gente não tinha noção do que estava acontecendo’’.
Ela foi à delegacia da Posse (58º) para relatar o
caso. ‘‘Para minha surpresa, fui muito bem atendida e foi registrado como
intolerância religiosa, foi uma vitória, cheguei aqui feliz porque tinha
conseguido fazer isso’’. Um inspetor de polícia visitou a casa no dia seguinte.
‘‘O caso não foi adiante, não houve uma investigação até o fim’’, conta. Depois
do episódio, ela resolveu colocar duas câmeras na frente do terreiro, o que
inibiu as agressões.
Pai Márcio Virginio também precisou colocar uma
câmera no quintal de seu terreiro, na Penha, Zona Norte no Rio de Janeiro, para
identificar os autores das pedradas e restos de lixo que são frequentemente
jogados na Casa de Candomblé. A Casa está aberta há três anos e, a partir do
segundo ano, os ataques começaram em dias certos, segunda-feira e sábado –
sempre em momentos de cerimônia. ‘‘As pedras vêm do prédio do lado, sendo que a
câmera não é tão boa, então vou gastar mais dinheiro pra comprar uma câmera
melhor.’’ Além de quebrar partes do telhado, os agressores já quebraram uma
imagem do Caboclo, orixá cultuado na casa. ‘‘Quando a gente vê uma imagem de
santo quebrada eu fico pra baixo, porque é a casa do nosso sagrado.’’
Foi necessário colocar lona na parte aberta do
quintal para que as pessoas não fossem atingidas pelas pedras no momento das
cerimônias religiosas. ‘‘Minha casa tem muitos idosos, gente que vem com
cadeira de roda. A pessoa já chega com medo’’.
Pai Márcio foi até a delegacia quando as
agressões começaram a ficar mais frequentes. “Na primeira vez não abriram o
boletim de ocorrência. Só na segunda vez’’. Ele conta que foi pelo menos 20
vezes à delegacia para fazer mais denúncias. “Não fizeram nada”, diz.
Os defensores da liberdade religiosa veem uma
ligação entre a inação da polícia e o preconceito.
Ivanir dos Santos argumenta
que um passo ainda pendente seria a instituição do ensino da história e cultura
africana e afro-brasileira nas escolas, segundo a Lei 10639. A culpa é, também,
do desconhecimento. “Não adianta colocar a conta só nos neopentecostais
porque não são só eles. Para a sociedade brasileira nós somos feiticeiros,
macumbeiros e do mal”, resume.
No dia 27 de setembro, o Supremo Tribunal Federal
autorizou ensino religioso confessional nas escolas públicas – ou seja, as
aulas podem seguir os ensinos de religiões específicas. Para Ivanir dos Santos,
o efeito da ação será aumentar a discriminação e a perseguição às religiões
afro-brasileiras.
“Isso é referendar o papel da igreja como elemento do estado,
isso é igualzinho na Colônia e no Império’’, comenta. Jayro concorda que o
ensino religioso reforça a dualidade entre o bem e mal. ‘‘As igrejas se sentem
detentoras do bem, não só da alma, mas da vida social. Então o ensino religioso
nas escolas é um incentivo a essa dualidade’’, comenta.
Sem conhecer a religião, é difícil à sociedade
entender a seriedade desses ataques. Na visão de mundo africana, o assentamento
dos orixás é uma espécie de ‘‘extensão do seu eu’’, da própria existência,
explica o professor Jayro. “A violência é muito mais vigorosa do que a gente
imagina’’.
Desrespeitar as lideranças religiosas e os símbolos representativos
de matriz africana, diz ele, é entendido como uma forma de expulsão. Para
muitas pessoas, depois da destruição, é necessário se reconstruir em outro
espaço físico.
Para se reconstruir, Mãe Merinha contou com um
mutirão de voluntários a limpar, fisicamente, a sua casa varrida pelas chamas.
Agora, prepara o ritual de limpeza religiosa, com direito a preces para os
Pretos Velhos. “Passamos por um momento de grande intolerância religiosa em
nosso país, que a cada dia se agrava mais. Não sei se é de conhecimento de
todos, mas o nosso espaço infelizmente também veio a fazer parte dessa
estatística de ódio”, escreveu aos seus filhos.
Mãe Merinha olha as roupas de
santo queimadas (Foto: Dado Gadieri e Pilar Olivares/Hilaea Media)
Um passado que volta
Em vários momentos da história brasileira, as
religiões de matriz africana, cuja essência teológica e filosófica é baseada
nos valores civilizatórios negroafricanos, sofreram repressão e foram tratadas
como práticas primitivas e profanas. Até a Constituição Imperial, promulgada em
1824, que concedeu certa liberdade de culto aos não-católicos, foram alvo de
perseguição do estado e consideradas criminosas. Neste período, os
negros-africanos escravizados só podiam cultuar as divindades secretamente. A
liberdade religiosa só passou a ser considerada um direito fundamental com a
Constituição de 1988.
‘‘Hoje, o que o neopentecostalismo faz com os
terreiros, a Igreja Católica fez na Colônia e no Império. A destruição dos
terreiros tem essa lógica, de um passado que se presentifica’’, comenta o
professor Jayro de Jesus.
Os mais de 130 anos de história do terreiro Ilè
Așé Opò Afonjá, o mais antigo do Rio de Janeiro, revelam a resistência do
Candomblé. Dois anos antes da abolição da escravatura, em 1886, mãe Eugênia Ana
dos Santos, a mãe Aninha, se mudou de Salvador para a região portuária e se
instalou na Pedra do Sal. Após a abolição, a repressão continuava, e polícia
fazia prisões asseguradas pela Lei da Vadiagem.
A Lei punia a manifestações negro-africanas, como
a capoeira, o samba e as práticas religiosas. ‘‘Hoje, eles vão mudando de lugar
para preservar esse culto, assim como lá dentro da senzala’’, explica Sandra
Brandão, 47 anos, pedagoga e Presidente da Sociedade Civil do Ilè Așé Opò
Afonjá do Rio – nome que significa Casa de Força Sustentada por Xangô.
A Casa passou por diversos locais antes de se
instalar em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, para fugir da
intolerância religiosa. ‘‘O objetivo era se afastar dos grandes centros’’,
conta a neta de Edgard Brandão, que veio de Salvador com mãe Aninha. ‘‘E mesmo
nesse endereço que estamos hoje, também existia essa intolerância. Tenho uma
tia biológica de 89 anos que conta que quando criança, as crianças brincavam na
frente da casa pra fazer barulho pro candomblé poder tocar atrás pra polícia
não coibisse essa manifestação.’’ As prevenções continuam. Sandra diz que
principalmente os mais idosos estão amedrontados – e que o medo já causou um
efeito psicológico.
“Quando a gente faz as práticas religiosas, a gente fala,
olha o portão, tem que estar fechado’’, conta.
A maioria das Casas de Candomblé antigas no Rio
de Janeiro continuam na Baixada Fluminense, como o Terreiro Alákétú e a Casa
Branca. Mãe Beata de Iemanjá seguiu o mesmo caminho: foi de Salvador para
o Rio em 1969 e fundou em 1985 o terreiro Ilê Omiojuarô, em Miguel Couto, Nova
Iguaçu. Reconhecida pela militância em diversas causas, entre elas a liberdade
religiosa, Mãe Beata morreu em maio deste ano em Nova Iguaçu, onde ‘‘encontrou
seus laços, suas redes bem tecidas de apoio da população negra de terreiro’’,
conta Pai Adailton, filho biológico de Mãe Beata de Iemanjá.
Fonte: Agência Pública
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