Amazônia:
À espera de Belo Sun.
por Ciro
Barros, Iuri
Barcelos especial para a Agência Pública –
Indígenas Juruna veem o peixe rarear em seu
território enquanto o maior projeto de ouro a céu aberto do Brasil se aproxima;
documento dos Juruna exige o direito à consulta prévia, previsto em tratado internacional
em vigor no país desde 2003.
Na área de influência direta da Usina
Hidrelétrica de Belo Monte, na Volta Grande do Xingu, os índios Juruna juntam
os cacos. “Nós não sabemos se no futuro a gente vai ter condições de continuar
vivendo aqui”, conta o professor Natanael Juruna, morador da aldeia Müratu, uma
das três da Terra Indígena (TI) Paquiçamba. A jusante da barragem, eles veem
sua principal fonte de renda e subsistência, o peixe, rarear. Um monitoramento
independente feito pelos indígenas em parceria com a Universidade Federal do
Pará (UFPA) e o Instituto Socioambiental (ISA) revela que a produção pesqueira
caiu praticamente pela metade entre os meses de janeiro de 2015 e 2016, período
no qual houve o barramento do rio. Os dados da própria Norte Energia apontam
para a questão da mortandade de peixes: segundo o 11º Relatório de
Monitoramento Socioambiental Independente, entre novembro de 2015 e junho de
2016, mais de 19 toneladas de peixes morreram – o dobro do que os Juruna
pescaram em três anos.
Diante da escassez de peixe, os Juruna exigem o
cumprimento de uma das várias condicionantes ainda não atendidas: a destinação
de uma área acima do muro da barragem que lhes dê acesso ao reservatório da
usina, onde há mais condições de pesca. “O peixe é de onde a gente tirava a
nossa geração de renda. Principalmente o peixe ornamental, que hoje acabou”,
explica o cacique da aldeia, Giliarde Juruna. “Estamos batalhando para ver se a
gente consegue essa terra que dê acesso ao lago.
Hoje nós somos uma das terras
mais impactadas do Brasil inteiro. A maior barragem do Brasil tá aqui do nosso
lado e a maior mineradora a céu aberto também vai ser aqui do nosso lado. Como
a gente vai sobreviver nessa região?”, indaga.
O cacique se refere à chegada de Volta Grande, o
maior projeto de extração de ouro a céu aberto do país, que pretende se
instalar a cerca de 10 quilômetros de Belo Monte e, consequentemente, à beira
do quintal dos Juruna. Desde abril, a licença de instalação, obtida em
fevereiro, está suspensa, mas a mineradora canadense Belo Sun, está longe de
desistir do projeto, como constatou a reportagem da Pública.
60 toneladas de ouro em 12 anos
No rio Xingu, a caminho da TI Paquiçamba, dos Juruna, o futuro é de incertezas com Belo Monte e a chegada de Belo Sun (Foto: Iuri Barcelos/Agência Pública).
Os números do projeto Volta Grande, conduzido
pela mineradora canadense Belo Sun, impressionam.
A empresa pretende extrair 60
toneladas de ouro em 12 anos a partir da lavra de milhões de toneladas de
minério. Para tanto, já possui 18 títulos minerários com autorização de
pesquisa junto ao DNPM e tenta licenciar a extração em outros quatro títulos
que, somados, ocupam uma área de mais de 2.300 hectares – correspondentes à
extração de ouro dos depósitos Ouro Verde e Grota Seca, parte deles já explorados
por garimpeiros.
As duas pilhas de estéril depois do projeto
completo em operação, somadas, terão altura de 255 m. Uma das empresas que o
formularam – a Vogbr – esteve envolvida no desastre de Mariana (MG).
“Belo Sun é o que mais assusta em Belo Monte. A
hidrelétrica abre o caminho para esse tipo de exploração mineral”, afirma a
procuradora Thaís Santi, do Ministério Público Federal (MPF) em Altamira. O
órgão move uma ação civil pública desde 2014 contra a mineradora, o Ibama e o
governo do estado do Pará: à beira de um rio federal – o Xingu – e de duas TIs
(áreas da União), ainda assim o licenciamento foi feito pela Secretaria de Meio
Ambiente e Sustentabilidade (Semas), do governo do Pará. A procuradora preocupa-se
com o fato de a mineradora estar licenciando os títulos de lavra do projeto
Volta Grande, mas ainda reter outros títulos de pesquisa que podem ser
licenciados no futuro.
“Os Estudos de Impacto Ambiental indicam que serão
retirados 3,16 milhões de toneladas de minério por ano, nos 11 primeiros anos,
e, por sua vez, a empresa anuncia aos seus acionistas a possibilidade de
extração de até 7 milhões de toneladas por ano”, afirma a procuradora na ação
civil pública.
Segundo mapas da Fundação Nacional do Índio
(Funai), a lavra está a 700 metros a mais de 10 quilômetros das TIs mais
próximas – a Paquiçamba e a Arara da Volta Grande –, o que eximiria o Ibama de
fazer o licenciamento, segundo uma
portaria interministerial de 2011. “Pelo jeito que eles formularam, a TI
Paquiçamba ficou a 10,7 quilômetros de distância do projeto. Só que há uma
contradição entre o que está sendo licenciado e o que está sendo vendido aos
investidores. Eles têm uma área enorme de extração e de pesquisa, eles
organizam onde querem a área do projeto e calculam a partir dessa área a
distância para as áreas indígenas”, critica a procuradora. “A empresa fala desde
2012 que o empreendimento não tem impacto sobre os indígenas. Para você
concluir isso, você presume que eles tenham feito os estudos, o que eles deram
a entender. Mas não.”
A Justiça Federal suspendeu
a licença de instalação justamente pela ausência de estudos na questão
indígena, apontada pelo MPF. A Belo Sun defende-se dizendo que “concordou em
realizar o Estudo do Componente Indígena (ECI), não por uma obrigação legal ou
regulamentar, mas por um exercício de cooperação com a Funai”. Na ação
judicial, que discute a questão dos estudos de impacto do empreendimento sobre
os índios, a mineradora afirma que o MPF falta com a verdade ao afirmar que não
foram feitos estudos – segundo ela, entregues à Funai em abril do ano passado.
De acordo com o MPF, porém, “a FUNAI, em outubro de 2016, encaminhou ofício à
SEMAS comunicando que os estudos apresentados pela mineradora Belo Sun foram
considerados inaptos”. Em abril deste ano, o desembargador Jirair Meguerian deu
ganho de causa ao MPF e determinou a suspensão da licença emitida.
“Considerando que a própria FUNAI, que possui atribuição para tanto, afirmou
que o ECI [Estudo de Componente Indígena] apresentado por Belo Sun Mineração
LTDA. é inapto, conclui-se que a licença de instalação não poderia ter sido
emitida pela SEMAS/PA”, afirmou o magistrado em sua decisão.
Em nota à Pública, a Belo Sun afirmou que
“pretende complementar o ECI de forma a coletar dados primários das TIs
Paquiçamba e Arara da Volta Grande” e que a “decisão temporária do TRF1 foi
dada sem que o Estado do Pará e a empresa apresentassem seus argumentos sobre o
caso. A mineradora confia que após ouvida e, apresentando os fatos referentes
ao caso de forma aprofundada, a decisão temporária poderá ser revista, o que
deverá acontecer ainda este ano de 2017”.
Protocolo de Consulta Juruna
Natanael Juruna, da aldeia Müratu: “o que Belo Monte não destruiu, Belo Sun vai acabar de destruir” (Foto: Iuri Barcelos / Agência Pública).
Enquanto a batalha se arrasta na Justiça, os
Juruna reagiram e lançaram, em agosto deste ano, o Protocolo
de Consulta Juruna, baseado na Convenção 169, da Organização Internacional
do Trabalho (OIT), que determina a consulta prévia, livre e informada às
populações indígenas afetadas por quaisquer empreendimentos. O Brasil é
signatário da convenção, que entrou em vigor no país em 2003.
O Protocolo de Consulta põe no papel a forma como
os indígenas pretendem ser consultados para quaisquer empreendimentos futuros
que venham a se instalar em áreas próximas às suas terras. “Não aceitaremos
qualquer projeto que nos afaste do rio Xingu ou inviabilize nossa permanência
no rio.
Nós não fomos consultados para a construção da Hidrelétrica de Belo
Monte, que desviou o rio Xingu de nossa terra para usar sua água na produção de
energia. Com a construção da usina, perdemos nossa principal fonte de
alimentação e renda, que era a pesca artesanal e de peixes ornamentais. Não
sabemos como ficarão o rio, os bichos, a floresta e nem a gente daqui para
frente”, diz o documento.
Apesar do esforço de resistência, muitos Juruna
demonstram pessimismo com a questão. “A gente sofreu muito o impacto de Belo
Monte e agora temos que lidar com Belo Sun. Parece, pra gente, que o que Belo
Monte não destruiu, Belo Sun vai acabar de destruir”, sentencia o professor
Natanael Juruna.
Sobreposição em áreas federais e de reassentamento
A Vila da Ressaca, no município de Senador José Porfírio, Pará, é uma das regiões afetadas pelo projeto de mineração Belo Sun (Foto: Iuri Barcelos/Agência Pública).
Se entre os índios a sensação predominante é de
temor pela chegada de Belo Sun, nas comunidades da área de instalação do
empreendimento – Ilha da Fazenda, Vila da Ressaca, Galo e Ouro Verde –, a
Pública encontrou mais gente favorável do que contrária à mineradora. “Não tem
outra solução aqui, tem muita gente aqui na região passando fome”, relata o
padeiro Rômulo Amaral, morador da Vila da Ressaca. “Tem que vir o progresso
aqui para essa região. Claro que tem que cumprir com as condicionantes, mas
ninguém tá conseguindo viver mais do garimpo, não. Aqui no garimpo manual
ninguém tira mais nada, não. É só com máquina. E quem vai ter dinheiro pra pôr
máquina?” Ele conta que muitas famílias estão sobrevivendo de cestas básicas
oferecidas pela Belo Sun. Em outra comunidade, o garimpo do Galo, o cenário é
paupérrimo. A vila parece fantasma: muitas casas vazias e comércios fechados.
Todos os entrevistados apoiam a vinda da mineradora. “Acabou todo o serviço que
tinha aí. Só serve pra mineradora, pra nós não serve mais, não. Aqui a gente tá
só pegando rejeito velho por aí. Vale a pena ficar o dia inteiro no sol pra
pegar meio grama de ouro ruim?”, diz o comerciante Jair Alves.
Por outro lado, também há garimpeiros contrários
ao projeto da mineradora, principalmente os que fazem parte da Cooperativa
Mista dos Garimpeiros da Ressaca, Galo, Ouro Verde e Ilha da Fazenda
(Coomgrif). “Aqui a gente tem muita área pra trabalhar ainda”, afirma Divino
Alberto Gomes, garimpeiro membro da Coomgrif. “A gente teria condição de
instalar aqui um moinho de rampa nas rochas. A gente não ia mexer onde a Belo
Sun quer mexer, que é a laje. Só que depois que eles conseguiram a licença de
lavra a gente nunca mais teve a nossa renovada. A gente trabalhava nessas
áreas, essas comunidades aqui tinham uma vida própria, todo mundo tinha
dinheiro no bolso”, protesta.
Também há uma questão fundiária na mesa. As
terras da Belo Sun estão sobre a Gleba Ituna, arrecadada e matriculada em nome
da União em 1982, e sobrepostas a dois projetos de assentamento, um do
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e outro do
Instituto de Terras do Pará (Iterpa). Desde 2013, a Defensoria Pública do Pará
move uma ação contra a Belo Sun questionando a compra dos terrenos que
futuramente serão explorados pela mineradora. Segundo a Defensoria, os títulos
de posse são inválidos, embora a mineradora alegue que a aquisição de posse foi
legítima. Além disso, em 2015 a Secretaria de Patrimônio da União (SPU)
declarou de interesse social as vilas da Ressaca e do Galo e as destinou à
regularização fundiária pelo Incra.
José Pereira Cunha: “A gente se
sente ameaçado” (Foto: Iuri Barcelos/Agência Pública).
Enquanto o imbróglio não se resolve na Justiça,
os garimpeiros lutam para sobreviver e reclamam ter perdido uma antiga
permissão de lavra que estava em vigor. “A gente conseguiu a lavra nessa área
aqui, que vencia em 18 de dezembro de 2014. Quando foi em setembro de 2013, a
gente correu atrás do DNPM [Departamento Nacional de Produção Mineral] de Belém
para renovar. Eles deram, [mas] jogaram nós a 13 quilômetros daqui, num lugar
que só tem caça, mato, e não tem ouro”, reclama o vice-presidente da Coomgrif,
José Pereira da Cunha, o “Pirulito”. “Hoje a gente se sente ameaçado, tá
arriscado a tomar um tiro porque é a gente que tá atrapalhando a empresa”, ele
diz.
Procurada pela Pública, a Belo Sun afirmou que
“possui a informação de que as terras que se sobrepõem ao Projeto Volta Grande
são terras federais, o que não é impeditivo legal para as atividades de
mineração”. Ainda segundo a mineradora, “uma pequena porção destas terras
federais encontra-se afetada, constituindo-se no Projeto de Assentamento
Ressaca do INCRA.
Aproximadamente 5% da área total do PA Ressaca encontra-se
sobreposta ao empreendimento. Por esta razão a Belo Sun e o INCRA firmaram um
documento, onde a Belo Sun realizou o levantamento das benfeitorias existentes
nos lotes sobrepostos, apresentou laudos de avaliação, elaborou relatório de
impactos socioambientais sobre o PA Ressaca e identificou novas áreas para
reforma agrária para futura aquisição e realocação dos assentados dos lotes
sobrepostos, tudo conforme ajustado com o INCRA em dezembro de 2016”. A empresa
afirma também que “indenizou os ocupantes dos lotes e/ou fazendas pelos
direitos de posse e benfeitorias existentes” e que “os contratos de compra e
venda de posse e benfeitorias firmados pela Belo Sun e respectivos posseiros
foram registrados em Cartório, conforme previsão em lei”.
“Após a emissão da Licença de Instalação (LI) do
empreendimento, será iniciado o Programa de Realocação, Negociação e Inclusão
Social em relação às duas vilas próximas ao empreendimento.
Este programa foi
submetido à avaliação do órgão ambiental, e a empresa vem dialogando com as
comunidades locais desde a etapa de levantamento de áreas e de cadastramento de
famílias”, completa a Belo Sun.
Fonte: Agência Pública
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