A Floresta Amazônica vai se tornar uma commodity?
Por Marcos Colón (*)
Construção de
megaempreendimento para exportação de soja na Amazônia coloca em
perigo comunidades, povos tradicionais e meio ambiente.
Há quase dois séculos, os
naturalistas e exploradores britânicos Henry
Walter Bates e Alfred
Russel Wallace passaram cerca de três anos estudando animais e
insetos na região do Lago do Maicá, no município de Santarém, em
plena Amazônia Legal. Apesar das dificuldades, a dupla celebrou o
que chamaram de “floresta gloriosa”. Estima-se que ao final da
empreitada de três anos, eles tenham coletado mais de 14.000
espécies, que fizeram parte de um amplo estudo, que serviu de base
para The Naturalist on the River Amazon, considerado um
clássico de Bates.
Assim, o que diriam os naturalistas
da decisão da Câmara de Vereadores de Santarém que possibilita a
transformação de parte do lago em um porto privado para escoamento
de soja?
Hoje podemos apenas imaginar.
Contudo, durante a última sessão da Câmara de Vereadores do
município de Santarém, em 11 de dezembro, os representantes do
legislativo alteraram, de forma secreta e apressada, a revisão final
do Plano Diretor Participativo (PDP), documento jurídico regido pelo
Estatuto da Cidade e aprovado pela sociedade civil santarena de forma
participativa em novembro de 2017. A decisão relâmpago visa
facilitar a construção de complexos portuários para o transporte
do grão através do Lago do Maicá.
A decisão invalida meses de
discussões em grupos de trabalho e audiências com representantes
dos mais diferentes setores — empresariais, acadêmicos,
entes públicos e organizações sociais. Viola a Convenção
169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A reunião
do plenário que alterou do Plano Diretor Participativo pegou
populações tradicionais, moradores e movimentos sociais em Santarém
e da Amazônia de surpresa.
[PICTURE 02] Lago do Maicá 2018 /
Photo by Marcos ColónA construção desse grande porto será na
região do Lago do Maicá, área de elevada complexidade ambiental e
lar de comunidades tradicionais, pescadores e cerca de 400
famílias quilombolas, totalizando aproximadamente 1.500 famílias
na região. Maicá é um santuário ecológico, berçário natural de
espécies únicas da fauna aquática e aves amazônicas. Além de ser
um polo de visitação turística, é fonte de renda para as famílias
que vivem primariamente da pesca, responsáveis por 30%
do abastecimento de peixe da cidade.
Para a arqueóloga Anne Rapp
Py-Daniel da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), “o
Lago do Maicá é um ecossistema extremamente rico, mas também muito
frágil e com uma grande dinâmica de formação (terras caídas,
terras em formação, aberturas de furos, etc.). A presença de
grandes navios provocará importantes deslocamentos de água,
alterando a dinâmica das correntes fluviais, com risco de destruição
acelerada das várzeas mais baixas, onde moram muitas comunidades
tradicionais. Acompanhamentos já foram realizados no rio Madeira,
outra região de várzea, mostrando o impacto das balsas e navios.
Além disso, a região do Maicá é extremamente importante
para a arqueologia, pois abriga o sítio arqueológico mais antigo
conhecido do município, o Sambaqui de Taperinha, de 8 mil anos.
Também temos um grande número de sítios mais recentes (que possuem
entre 500 e 2 mil anos) que ainda estão sendo mapeados, muitos deles
identificados pelas manchas de Terra Preta. Na área mais alta ainda
temos presença de comunidades indígenas. A história dessa região
não para por aí, ocupações quilombolas estão presentes desde o
século XIX, com a adição de nove territórios reconhecidos pela
Fundação Cultural Palmares na margem do Maicá/Ituqui”.
[PICTURE 03] Bacia hidrográfica do
Lago do MaicáSéculos de história
Santarém é uma das cidades mais
antigas do interior da Amazônia. Localizada diante do encontro das
águas dos rios Tapajós e Amazonas, foi fundada pelos padres
jesuítas, em 1661, durante o processo de colonização portuguesa na
região. Desde então, Santarém tem sido um polo estratégico,
começando pela produção do cacau, pecuária, extrativismo,
borracha, juta e atualmente a monocultura da soja. Localizada a 475
milhas do Oceano Atlântico, sua posição geográfica é estratégica
para o escoamento da produção de soja, seja pela rodovia BR-163,
pela hidrovia do Tapajós ou pelo Rio Amazonas chegando ao Atlântico.
A construção da zona portuária na
região do Lago do Maicá faz parte da estratégia das empresas e
produtores de soja da região para o escoamento do grão oriundo do
Mato Grosso pela região Norte do país, precisamente através do
eixo Tapajós-Teles Pires.
Pedro Martins, da organização de
direitos humanos Terra de Direitos, observa que “os proprietários
de soja começam a aparecer num processo de usurpação das terras
dos camponeses. Esses proprietários, geralmente vindos de outros
estados, iniciam cultivos extensos na região do Planalto de
Santarém. A Embraps surge nesse contexto, a partir de proprietários
de soja na região do Mato Grosso que tem como interesse o escoamento
da soja produzida em Santarém, mas que também vê um potencial
lucrativo enorme na construção de portos”, afirma Pedro Martins à
Terra de Direitos.
[PICTURE 04] Rota de escoamento do
agronegócio / by Marcos ColónPara o padre e ativista amazônico,
Edilberto Sena, o processo tem início quando a Cargill, uma
multinacional, empreendeu esforços na construção de um terminal
portuário em 1999.
“A companhia viu que Santarém era
um local estratégico para baratear a exportação da soja do
Centro-Oeste brasileiro. Políticos locais e até parte da sociedade
acreditaram que o porto da multinacional traria emprego, renda e
desenvolvimento. Mas foi uma armadilha, com impactos negativos para a
população. Os moradores dos bairros periféricos – Pérola do
Maicá, Área Verde, Jaderlândia, Jutaí e mais cinco outros –
precisarão lidar com uma grande avenida. Com capacidade de tráfego
de 800 carretas por dia, pode-se imaginar os acidentes e outros
problemas diários. Se essas populações não se organizarem, se nós
não estivermos junto com elas na resistência, a destruição de
nossa cidade vai se agravar, porque as autoridades não estão nem aí
para o respeito às vidas humanas.
Esse porto da Embraps na Área de
Proteção Ambiental (APA) do Lago do Maicá pode ser útil para os
empresários, mas trará graves prejuízos para o ambiente e para os
moradores de Santarém, como já acontece com o porto da Cargill”,
sinaliza o ativista.
Três empresas visam construir
empreendimentos portuários no município: o Grupo
Cevital, da Argélia, a empresa CEAGRO
e a Embraps. O caso da empresa Embraps
é significativo, pois seu licenciamento ambiental foi suspenso pela
Secretaria
de Meio Ambiente do Estado do Pará após ação judicial. A
petição partiu dos povos e comunidades tradicionais que vivem na
região do Lago do Maicá junto ao Ministério Público Federal (MPF)
e ao Ministério Público Estadual (MPE), que ajuizaram uma Ação
Civil Pública contra as ações da Embraps. Na ação foi concedida
liminar suspendendo o processo de licenciamento ambiental do Terminal
de Uso Privado da Embraps até que fosse realizada a consulta prévia,
livre e informada às comunidades quilombolas e demais povos e
comunidades tradicionais que serão atingidos pelo empreendimento. A
empresa recorreu da decisão no Tribunal Regional Federal da 1ª
Região (TRF1) a liminar foi mantida e o licenciamento ambiental do
porto permanece suspenso.
A Universidade Federal do Oeste do
Pará (UFOPA) produziu um Relatório
Técnico a partir das fragilidades detectadas no Estudo de
Impacto Ambiental (EIA) da Estação de Transbordo do Lago do Maicá,
apresentado pela Empresa Brasileira de Portos (Embraps). Contrariando
o estudo da Embraps a equipe multidisciplinar da UFOPA demonstra
os danos ambientais, arqueológicos e humanos, que, se não forem
sanados, colocarão em risco as populações de peixes e
fitoplânctons do Lago do Maicá, com danos irreversíveis à vida
dos humanos e não humanos da região.
Para o professor do Instituto de
Biodiversidade e Floresta (Ibef/Ufopa), Jackson Rêgo Matos, “nossa
grande preocupação com a construção do porto não é só com o
Lago Maicá, mas com toda a cidade de Santarém e região do Rio
Tapajós. Essas áreas, incluindo a praia de Alter do Chão, terão
suas paisagens afetadas, tanto pela passagem de caminhões circulando
por toda a cidade quanto pelo tráfego de comboios de balsas. Essa
logística, certamente, acarretará em mais poluição atmosférica,
visual, sonora, além da perda do patrimônio arqueológico, sendo
Santarém a cidade mais antiga pré-colonial do Brasil, a qual abriga
um dos mais expressivos sítios arqueológicos das Américas.
Ressalta-se que a bacia
do Tapajós é a quinta maior bacia tributária da Amazônia e
abrange aproximadamente 492.000 km2, o que, por si só,
justificam políticas públicas que garantam a manutenção desse
patrimônio para usufruto de suas populações, e não somente dar
segurança jurídica aos empreendedores, como alega o prefeito, Nélio
Aguiar, para justificar o desrespeito dos vereadores aos trâmites
constitucionais do plano diretor construído com a participação
popular” explica Rêgo Matos.
Vozes autônomas
Como bem aponta a reportagem do
jornal Brasil
de Fato, o modo de vida das comunidades do Maicá está em
risco por um desejo alheio às necessidades delas: a busca por um
caminho mais curto para a soja brasileira sair do país. Com a
construção do porto, seria possível diminuir em cerca de 800
quilômetros o trajeto dos grãos que saem do Mato Grosso por
rodovias e, atualmente, necessitam passar pelo Porto de Santos. O
Porto do Maicá, em Santarém, encurtaria em sete dias o tempo que os
navios levam para chegar à Europa. No entanto, a voz das populações
locais precisa ser ouvida, de acordo com Mário Pantoja, liderança
quilombola santarena.
“Os grandes beneficiados com a
construção do porto são exatamente os grandes empresários. Não
estamos impedindo o progresso, estamos ajudando no desenvolvimento de
forma sustentável. Por quê? Porque a gente trabalha com a pesca.
Construído o porto, isso aqui vai acabar” alerta.
Essa dinâmica ultrapassada de
progresso vai na contramão do que o mundo tem discutido, fato muito
bem posicionado pelo ativista ambiental, Padre Guilherme Cardona, ao
afirmar que “esse modelo de desenvolvimento está criando cidades
insustentáveis, e uma dinâmica que se tem hoje em todo o mundo, é
a de como criar cidades sustentáveis para que a população e o
desenvolvimento possam caminhar juntos”.
[PICTURE 05] Até quando vai ter
peixe na rede? / Photo by Marcos ColónApesar de serem defendidos
como obras para desenvolvimento da região, os projetos dos portos
atingem nove bairros da cidade, habitados por comunidades
tradicionais que se estabeleceram forçadamente na área urbana após
uma série de deslocamentos devido à ausência de políticas
públicas. A construção do porto, além de não ser aceita,
compromete a própria sobrevivência das pessoas. Dona
Sebastiana, pescadora no Lago do Maicá, é enfática: “Ninguém
concorda com isso [a criação do porto]. Porque a gente precisa do
Lago. Porque daqui mais uns tempos você não tem mais o peixe pra
pegar, porque isso aqui vai ser aterrado e os peixes vão sumir
daqui”. O mesmo questionamento faz o quilombola João
Lira. “A pergunta é: por que um porto na área do Maicá? Pra
quem vai trazer benefícios? Pro povo da região? Eu creio em nenhum
benefício; benefício zero”.
O padre Edilberto Sena acredita ser
crucial pensar o futuro da Região Amazônica diante do quadro de
ameaças ambientais, sociais e culturais com que a região se
depara em face da pressão virulenta do capital externo.
“A disputa pelo território
(terra, floresta, rios, subsolo e povos) está cada vez mais
agressiva. Nossa região, Oeste do Pará, é um exemplo do que ocorre
em toda a Amazônia. São 70 mil hectares de invasão do plantio de
soja com intenso uso de agrotóxicos; a invasão de portos
graneleiros para exportação de soja do Mato Grosso. Existem 23
portos, construídos e em construção, no rio Tapajós; uma ferrovia
de 930 kms de extensão entre Cuiabá e Miritituba; e sete
hidroelétricas previstas no rio Tapajós. Por fim a cidade de
Santarém, centro de toda essa exploração, está sendo ocupada por
prédios de 20 andares que empurram os moradores do centro para
periferias, inchando uma cidade que hoje tem 300 mil habitantes”,
afirma Sena.
Até quando o poder econômico vai
corromper os poderes executivo e legislativo para burlar leis
internacionais em prol de uma insignificante parcela de acionistas
que não respeita os biomas e povos amazônicos? Até quando a
Floresta amazônica ficará a mercê de vereadores, políticos e
empresários que formulam leis na calada da noite para prejudicar o
social, agredindo comunidades, povos tradicionais e o meio ambiente,
com a devastação em prol da monocultura tóxica da soja, com a
desculpa de equilibrar a balança comercial nacional?
Certamente Bates e Wallace não
aprovariam a decisão tomada pela Câmara de vereadores de Santarém,
como bem disse Henry Bates depois de passar 11 anos documentando a
beleza dos trópicos: “Fui obrigado, por fim, a concluir que a
contemplação da natureza não basta para o coração e mente
humanos”. Ou como diria o escritor Brasileiro Euclides
da Cunha, ao descrever a região durante sua visita em 1905, “A
Amazônia é a última página, ainda a escrever-se, do Gênesis”.
Se depender dos vereadores
santarenos, os últimos redutos da biodiversidade mundial ficarão
escritos nos registros dos livros de ciências naturais de Bates e
Wallace, incorporados nas prateleiras dos livros de história como um
passado que não existe mais.
(*) Marcos Colón é Professor
Assistente (TA) no Departamento de Português e Espanhol e membro do
Center for Culture, History and Environment (CHE) do Nelson Institute
for Environmental Studies, da Universidade de Wisconsin-Madison; é
também diretor e produtor do documentário Beyond Fordlândia:
An Environmental Account of Henry Ford’s Adventure in the Amazon.
Fonte:
ENVOLVERDE
Nenhum comentário:
Postar um comentário