Partículas da fumaça de queimadas
na Amazônia induzem inflamação e danos genéticos em células de pulmão.
Por Karina Toledo | Agência FAPESP
Quando são expostas em laboratório a
concentrações comparáveis de poluentes encontrada na atmosfera amazônica em
época de queimadas, células do pulmão humano sofrem severos danos em seu DNA e
param de se dividir. Após 72 horas de exposição, mais de 30% das células em
cultura já estão mortas.
O principal responsável pelo estrago? Ao que tudo
indica é o reteno, um composto químico pertencente à classe dos hidrocarbonetos
policíclicos aromáticos (HPAs).
As conclusões são de um estudo publicado no dia 7
de setembro na revista Scientific Reports por um grupo de pesquisadores
brasileiros.
“Não encontramos na literatura científica
informações sobre a toxicidade do reteno. Espero que nossos achados sirvam como
incentivo para que esse composto seja melhor estudado e para que suas
concentrações ambientais passem a ser reguladas pelas organizações de saúde”,
disse Nilmara de Oliveira Alves Brito, primeira autora do artigo e bolsista
de pós-doutorado da FAPESP.
A pesquisa foi conduzida sob a supervisão do
professor Carlos Menck, do Instituto de Ciências Biomédicas
(ICB-USP), e Silvia Regina Batistuzzo, da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN). Contou com a participação de Paulo Saldiva,
professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), e
de Paulo
Artaxo, do Instituto de Física (IF-USP), além de pesquisadores da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz) e da Washington University em Saint Louis, nos Estados Unidos.
“Ainda durante meu mestrado, na UFRN, observei que
a exposição das células do pulmão a esse material particulado emitido pela
queima de biomassa induzia mutação no DNA de células de pulmão. O objetivo
neste estudo mais recente foi investigar os mecanismos pelos quais isso
acontece”, disse Alves Brito.
De acordo com a pesquisadora, o primeiro passo
foi determinar a concentração de poluentes a ser usada nos testes in vitro
para mimetizar a exposição sofrida por pessoas que moram no chamado “arco do
desmatamento” – 500 mil km² de terras que vão do leste e sul do Pará em direção
oeste, passando por Mato Grosso, Rondônia e Acre.
Por meio de modelos matemáticos, os pesquisadores
calcularam a capacidade de inalação de material particulado pelo pulmão humano
no auge do período de queimadas, bem como a porcentagem de poluentes que de
fato se deposita no órgão. “A partir dessa massa teórica, determinamos as
concentrações que seriam testadas nas culturas celulares”, disse Alves Brito.
Os poluentes usados in vitro foram
coletados em uma área natural próxima a Porto Velho (RO) durante a estação de
queimadas, cujo pico ocorre entre os meses de setembro e outubro.
“Fizemos a coleta com equipamentos que aspiram o
ar e depositam o material particulado fino – com diâmetro menor que 10
micrômetros – em um filtro. Nosso interesse era estudar as partículas pequenas,
pois são as que conseguem chegar nos alvéolos pulmonares”, disse Alves Brito.
Como explicou Artaxo, os filtros foram congelados
logo após a coleta do material particulado, uma vez que os compostos orgânicos
encontrados na pluma de poluição são extremamente voláteis.
“Esse material foi levado para São Paulo e
diluído em uma solução nutritiva, que depois foi aplicada nas culturas. Foi
usada a mesma proporção de poluentes presente no ar respirado pela população em
Porto Velho”, disse Artaxo.
As culturas tratadas com a solução foram
comparadas com um grupo de células-controle, que recebeu apenas o solvente
usado para extrair os poluentes do filtro. O objetivo era confirmar que os
eventuais efeitos adversos observados eram causados pelo material particulado e
não pelo solvente.
Efeito imediato
Logo nos primeiros momentos de exposição, as
células pulmonares passavam a produzir grandes quantidade de moléculas
pró-inflamatórias. A inflamação era seguida pelo aumento na liberação de
espécies reativas de oxigênio (ROS) – substâncias que provocam o chamado
estresse oxidativo e que, em grandes quantidades, danificam as estruturas
celulares.
“Para entender os caminhos que estavam levando a
essa condição de estresse, analisamos o ciclo celular e notamos que ele estava
prejudicado pelo aumento na expressão de proteínas como a P53 e P21. As células
tinham parado de se replicar, o que sugeria que danos no DNA estavam
ocorrendo”, disse Alves Brito.
Por meio de testes específicos, os pesquisadores
confirmaram os danos genéticos. Graças ao aumento na expressão da proteína LC3
e de outros marcadores específicos, notaram também que as células estavam
entrando em um processo de autofagia, ou seja, estavam autodegradando suas
estruturas internas.
“Todos esses danos foram observados em apenas 24
horas de exposição. À medida que o tempo passava, o dano genético aumentava e
as células entravam em processo de apoptose [uma espécie de morte celular não
inflamatória] e de necrose [tipo de morte em que a célula libera seu conteúdo
interno, induzindo inflamação no local]”, disse Alves Brito.
Enquanto na cultura controle apenas 2% das
células haviam morrido por necrose após 72 horas, na cultura tratada com os
poluentes o índice chegou a 33%.
“Nem todas as células morrem. Porém, as que
sobrevivem continuam sofrendo danos em seu DNA, o que pode predispor ao
desenvolvimento de câncer no futuro”, comentou a pesquisadora.
Antes mesmo de iniciar o experimento com as
culturas celulares, Alves Brito e colaboradores concluíram uma análise das
substâncias presentes no material particulado coletado na Amazônia. A presença
de diversos compostos da classe dos HPAs foi identificada – muitos deles já são
reconhecidos como carcinogênicos. Os resultados dessa análise foram divulgados
em 2015 na revista Atmospheric Environment.
“Observamos que o composto em maior quantidade
era o reteno. Decidimos, então, repetir o experimento com as células usando
essa substância de forma isolada, mas na mesma concentração encontrada no
material particulado. Observamos que o reteno sozinho também induzia danos no
DNA e morte celular”, disse Alves Brito.
Segundo Artaxo, caso o número de células
pulmonares mortas seja grande in vivo, podem surgir dificuldades
respiratórias e até mesmo doenças graves como enfisema pulmonar.
“Em um estudo anterior, mostramos que a queda no
desmatamento – que era de 27 mil km2 em 2004 e passou para 4 mil km2 em 2012 –
evitou a morte de pelo menos 1.700 pessoas por doenças associadas à poluição. O
curioso é que a maioria dessas mortes não teria ocorrido na Amazônia, mas no
Sul do Brasil, por causa do transporte a longa distância dos poluentes e também
porque aqui a densidade populacional é muito maior”, disse.
Alcance mundial
Embora o reteno não seja emitido pela queima de
combustíveis fósseis – principal fonte de poluição em regiões urbanas no Brasil
–, os pesquisadores destacam que esse composto pode ser encontrado na atmosfera
de cidades como São Paulo, em decorrência provavelmente da queima de cana e de
outros tipos de biomassa nas proximidades.
No artigo, os pesquisadores ressaltam que a
maioria das pesquisas realizadas teve como foco o papel dos combustíveis
fósseis na poluição atmosférica. No entanto, aproximadamente 3 bilhões de
pessoas em todo o mundo estão expostas a poluentes oriundos da queima de
biomassa – decorrente de práticas agrícolas, desmatamento, queima de madeira ou
carvão para uso como combustível, em fogões ou aquecimento residencial.
Um relatório da Organização Mundial da Saúde
(OMS) divulgado em 2012 apontou que aproximadamente 7 milhões de mortes – uma
em cada oito ocorridas no mundo – era resultado de exposição à poluição
atmosférica.
“A combinação de incêndio florestal e ocupação
humana transformou a queima de biomassa em uma séria ameaça à saúde pública. A
maioria dos incêndios florestais ocorre no arco do desmatamento, impactando
diretamente mais de 10 milhões de pessoas na região. Muitos estudos
identificaram severos efeitos na saúde humana, como aumento na incidência de
asma e elevação na morbidade e mortalidade principalmente na população mais
vulnerável, composta por crianças e idosos”, apontam os autores.
O artigo Biomass burning in the Amazon region
causes DNA damage and cell death in human lung cells (DOI: https://doi.org/10.1016/j.atmosenv.2015.08.059),
de Nilmara de Oliveira Alves, Joel Brito, Sofia Caumo, Andrea Arana, Sandra de
Souza Hacon, Paulo Artaxo, Risto Hillamo, Kimmo Teinilä, Silvia Regina
Batistuzzo de Medeiros e Pérola de Castro Vasconcellos, pode ser lido em: www.nature.com/articles/s41598-017-11024-3.
Fonte: EcoDebate
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