Óleo de
maconha vira “farmácia clandestina”.
por Tarso
Araújo, da Agência Pública –
Com aumento da demanda e falta de
regulamentação, cresce no Brasil o mercado clandestino do óleo, usado no
tratamento de diversas doenças; pacientes e produtores vivem na insegurança.
Numa cidade em Santa Catarina, uma mulher e um
homem na casa dos 50 anos conversam despreocupadamente em frente a uma escola
em junho. A reportagem da Agência Pública veio encontrar Leonardo*, que escuta
atentamente Joana contar a história de sua filha. Ela tem paralisia cerebral. A
mãe já tentou de tudo para controlar as convulsões da moça de 22 anos. E agora
quer tentar a maconha. Ele tem um pequeno frasco âmbar na mão e explica: “Você
vai dar três gotas para ela, três vezes ao dia. E observa. Se ela não melhorar,
você aumenta para cinco gotas”, diz. “Mas você tem que ir ao médico para ele
acompanhar o quadro dela.” A dupla ainda fala sobre reportagens do Fantástico,
plantas e os efeitos do CBD e do THC, moléculas responsáveis por suas
propriedades terapêuticas. No final, a mulher tira discretamente do bolso
algumas notas amarrotadas e as entrega.
É o único momento da conversa que
transparece alguma tensão. “São aqueles R$ 150 que te falei. É tudo que consigo
agora, tá, Leonardo?”, diz. “Claro, não se preocupa”, responde o homem.
Professora da escola municipal em frente, Joana conta que desde 2014 quer
testar a planta no tratamento da filha. “Só que o óleo importado é caro demais,
não dá pra mim. Então, assim que eu soube que você estava fazendo, eu falei:
‘Agora vai’.”
Cenas como essa estão se tornando cada vez mais
comuns, com o aumento da oferta de óleos de maconha feitos no Brasil de modo
artesanal – e clandestino. Produtores e pacientes relatam um número cada vez
maior de usuários. Alguns deles se organizam para produzir seus próprios óleos.
“Todo dia recebo e-mail de alguém querendo abrir associação ou ter autorização
para cultivo coletivo”, diz Emílio Figueiredo, advogado que desde 2015 trabalha
para regularizar essas iniciativas na Justiça. Uma delas, a associação de
pacientes Abrace Esperança, em João Pessoa, ganhou uma liminar de uma juíza
federal para fornecer óleo para cerca de 400 pacientes. “Temos que fazer um
contraponto aos óleos importados”, diz Figueiredo, um dos líderes do Reforma,
grupo de advogados que defende a revisão das políticas de drogas no Brasil.
Hoje em dia, os óleos importados são a primeira
opção para quem decide fazer o tratamento com cannabis. E um dos maiores
incentivos ao crescimento do mercado clandestino é a dificuldade para obter
esses produtos, que depende de um processo burocrático e caro. Os produtos mais
baratos custam US$ 200. Somando frete de cerca de R$ 150 e impostos, o custo
mensal do tratamento não sai por menos de R$ 1.000. E pode chegar a R$ 7 mil
para pacientes adultos, que precisam de maiores quantidades.
Plantas de Cannabis do tipo sativa
em estufa de cultivo para uso medicinal (Foto: Tarso Araújo/Agência Pública)
Além disso, a importação depende de autorização
da ANVISA, concedida diretamente pelo presidente da agência. “Muitos pacientes
saem daqui com laudo, receita e termo de responsabilidade assinado por mim, mas
voltam na próxima consulta sem ter começado o tratamento porque não conseguiram
resolver tanta papelada”, diz o neurologista de Recife Pedro Mello, que trata
cerca de 80 pacientes consumidores de óleo de maconha.
Fabricar o óleo não é tão complexo. A Cannabis
sativa pode ser cultivada em qualquer região do país, até mesmo em
apartamentos. E o método mais comum de preparação do óleo está disponível em
dezenas de tutoriais na internet. A matéria-prima – flores da planta fêmea – é
colocada de molho em álcool, que absorve canabinoides como o THC e o CBD. Em
seguida, a solução alcoólica esverdeada vai para uma panela, com temperatura
controlada. Aos poucos, o álcool evapora e deixa no fundo uma pasta escura.
Essa pasta é um óleo caseiro que, segundo os pacientes, é capaz de controlar
sintomas de diversas doenças, como epilepsia, dores crônicas, Parkinson,
esclerose múltipla e enjoos causados por quimioterapia.
A lei de drogas brasileira – a Lei 11.343, de 11
de outubro de 2006 – diz que a União pode autorizar “o plantio, a cultura e a
colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins
medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante
fiscalização”. Entre eles, a cannabis.
Estufa do Leonardo*, que atende cem pessoas em um
espaço relativamente pequeno (Foto: Tarso Araújo/Agência Pública)
Como a lei não está regulamentada, os pacientes e
os produtores que os abastecem ficam em situação delicada. Se fossem flagrados,
Joana e Leonardo poderiam ser levados para a delegacia. Ele responderia ao
artigo 33, sobre tráfico de drogas, que prevê pena de 5 a 15 anos de prisão.
Além da cadeia, se fosse condenado, ele teria todos os seus bens confiscados
pelo Estado, inclusive casa e carro. A mãe da paciente poderia ser enquadrada
no mesmo artigo ou no 28, que trata dos usuários.
“Interpretações jurídicas
mais conservadoras podem acontecer e os pais serem indiciados. Isso é
preocupante”, diz José Roberto Godoy, procurador do Ministério Público Federal
da Paraíba.
Os pioneiros
Leonardo rejeita o rótulo de traficante, que poderia levá-lo à cadeia. “Eu não vou atrás de ninguém. Só atendo pessoas que me procuram e me pedem ajuda”, explica. “E como vou negar, se sei que o óleo pode melhorar radicalmente a saúde de uma pessoa?”
Os pioneiros
Leonardo rejeita o rótulo de traficante, que poderia levá-lo à cadeia. “Eu não vou atrás de ninguém. Só atendo pessoas que me procuram e me pedem ajuda”, explica. “E como vou negar, se sei que o óleo pode melhorar radicalmente a saúde de uma pessoa?”
Jardineiro rega plantas de Cannabis
cultivadas para produção de óleo para uso medicinal (Foto: Tarso Araújo/Agência
Pública)
Ele vende cada frasco de 30 ml por R$ 350, mas
diz que o preço é apenas uma referência. “Prefiro às vezes dar ou vender mais
barato, em vez de deixar o paciente com uma dívida. Porque, se no mês seguinte
ele não tiver dinheiro de novo, ele vai se sentir na dívida e parar de tomar o
remédio.” Jardineiro de profissão, Leonardo é um pioneiro na produção e
distribuição de óleo de cannabis para fins medicinais no Brasil.
Ele conta que cultiva a erva há mais de 20 anos,
para consumo próprio. Em 2011, aprendeu com um médico a fazer óleos e pomadas
com a planta e passou a fornecer o produto para amigos e vizinhos cuidarem de
sintomas diversos como enjoos, dores e problemas articulares. Em 2014, com a
repercussão da história de Anny Fischer, menina de 5 anos portadora de epilepsia
que se tornou a primeira pessoa do Brasil com autorização judicial para usar
Cannabis para o controle de convulsões, começou a receber pedidos de pais de
crianças com a doença. De lá para cá, ele parou de fazer outros trabalhos de
jardinagem para se dedicar exclusivamente ao cultivo de maconha para fins
medicinais. “Tem sido difícil dar conta da demanda. A procura não para de
aumentar.”
Ele atende regularmente cerca de cem pacientes.
Para isso, mantém uma pequena estufa de 6 metros quadrados, com cerca de 16 pés
em vasos de 60 litros. Cada um deles rende 500 a 800 gramas, e cada 10 gramas
de planta rendem 1 mililitro de óleo concentrado. Nivaldo*, outro produtor de
Santa Catarina, arrenda o cultivo de famílias de diferentes estados para sua
produção. “Compro o cultivo dessas famílias, faço o óleo, coloco nas seringas e
volto para casa. Depois despacho as encomendas pelo correio”, diz o
ex-marinheiro, que largou a vida de embarcado para se dedicar ao fornecimento
de óleo e diz que atende pelo menos 200 pessoas por mês.
“O fato de esses produtores estarem na
ilegalidade é uma injustiça. O direito à saúde, à vida e ao bem-estar deveria
estar acima de qualquer proibição de drogas”, diz o advogado Figueiredo.
Cassiano Teixeira fundou a Abrace
Esperança, única associação de pacientes com liminar que protege seu cultivo de
Cannabis para produção de óleo medicinal (Foto: Tarso Araújo/Agência Pública)
A Abrace, de João Pessoa, é a pioneira no modelo
de produção por associativismo. Cassiano Teixeira, diretor-executivo da
associação, confessa que aprendeu a fazer óleo no YouTube para dar à mãe, que
atravessava uma depressão. “Minha tia morreu, e ela não comia, não fazia nada.
Então entrei com o óleo”, diz. “Misturei no azeite e ela passou a tomar sem
saber. Aí recuperou cinco quilos e voltou à sua rotina normal. Aquilo me
convenceu de que o óleo é mesmo benéfico.” Logo depois, a história de Anny
Fischer se tornou nacionalmente famosa. Em maio de 2014, Cassiano foi ao 3º Simpósio Internacional de Cannabis Medicinal, na Unifesp, em São Paulo. Durante
os intervalos, abordava pacientes para oferecer seu óleo. Alguns, incapazes de
comprar o óleo importado, começaram testar o produto em seus filhos com
epilepsia. E a vida de Cassiano começou a mudar.
“As mães me mandavam vídeos agradecendo e
relatando o efeito do óleo. Eu postava na internet e isso começou a ter
visibilidade.” Para atender à demanda, ele tratou de baratear a matéria-prima.
Em vez de comprar maconha numa boca de fumo qualquer de João Pessoa, foi a uma
região produtora em Solânia, no sertão da Paraíba. Comprou um quilo da erva por
R$ 1 mil e voltou com ela no porta-malas do seu Corsa preto, ano 1990. Na
volta, foi parado numa blitz. “Minha sorte é que fui de terno, já com medo de
isso acontecer, e chovia muito. Aí o policial olhou pra mim e deixou passar.” Depois
disso, passou a receber a encomenda em casa, entregue pelo “anjo” – como se
refere ao produtor camponês, que abastece o tráfico com a mesma planta.
Então, Cassiano teve uma ideia que hoje é
referência para outros grupos que querem cultivar cannabispara uso medicinal.
Desde que começou a fornecer óleo, ele já bancava a produção com doações, em
vez de vendas. “Cada família contribuía como podia. Quem tinha mais dava mais,
quem tinha menos dava menos”, diz. Então, em setembro de 2015, ele decidiu
formalizar essa relação constituindo uma associação de pacientes. Para ter o
remédio, as famílias precisam se associar, enviar prescrição e laudo médico.
Além disso, ele criou uma marca para seu extrato, batizado de “Óleo Esperança”.
Em alguns meses, dezenas de mães começaram a
mudar seus nomes no Facebook para incluir o nome do remédio artesanal que
mudava a vida de seus filhos. Tornaram-se Joseane “Esperança” dos Santos, Lúcia
Almeida “Esperança” e assim por diante.
Mudas da Abrace da variedade de
Cannabis CBD God, que produz 6 vezes mais CBD que THC (Foto: Abrace)
Do importado ao nacional
O caso de João Pessoa é emblemático também de
como as famílias gradativamente adotam os óleos nacionais – e de como a falta
de regulamentação as afeta.
Em 2014, um grupo de 16 famílias de crianças
portadoras de epilepsias de difícil controle conseguiu na Justiça o direito de
importar canabidiol (CBD) sem depender da autorização da Anvisa, com o apoio do
Ministério Público Federal da Paraíba (MPF-PB). “Só que alguns meses depois
eles me relataram que estavam com dificuldades financeiras para continuar o
tratamento. Estavam fazendo rifas, vendendo carro, fazendo dívidas para pagar o
óleo importado”, diz José Godoy, procurador que atua na área de direito do
consumidor e foi o autor da ação. “Tentamos que o governo bancasse o custo, mas
não conseguimos.”
A conta não é mesmo barata. Cibele de Oliveira
Fernandes é mãe de João Vitor, 17 anos, e Samuel, 15. Os dois têm epilepsia
refratária, e o mais velho, autismo. “Vitor tinha 18 a 20 convulsões por dia.
Passou a ter uma ou duas. Mas eu vivia aperreada: com os dois meninos, todo meu
dinheiro era para pagar canabidiol.” Funcionária pública, ela conta que gastava
cerca de R$ 1,2 mil com cada seringa, que rendia por 10 dias para cada criança.
Seu custo mensal chegava a R$ 7 mil. “Eu não fazia conta para não enlouquecer.
Não podia parar o tratamento, mas não poderia bancar com aquele custo.”
A saída das famílias foi abandonar o óleo
importado e experimentar o artesanal produzido na própria cidade pela Abrace.
“Estou na melhor fase da minha vida”, diz Cibele sobre os resultados. “Eu tenho
um filho autista que praticamente deixou de ser autista. Me olha nos olhos, dá
gargalhadas, pede carinho… São coisas que ele nunca fazia.”
Cibele Fernandes (à dir.) em evento
da Liga Canábica, associação de João Pessoa que luta pela reforma das políticas
de drogas. Mãe de duas crianças com epilepsia, ela deixou de importar óleo para
usar produto feito artesanalmente (Foto: Tarso Araújo/Agência Pública)
A preocupação dos pais deixou de ser o dinheiro
para ser a segurança da Abrace. “A falta de regulamentação me deixava
angustiada. A gente poderia ficar sem óleo a qualquer momento, se a polícia
batesse lá.”
A Abrace preparou então uma ação judicial
solicitando autorização para cultivar e produzir óleo para seus associados.
“Eles seriam presos e com isso todo o material de laboratório seria apreendido
e as plantas, destruídas. Levaria meses para voltar à produção anterior, e isso
traria um prejuízo imediato, fazendo cessar o fornecimento do óleo para as
famílias”, diz José Godoy, que colaborou na ação com um parecer do Ministério
Público. A associação conseguiu anexar ao processo laudos e prescrições de 151
pacientes, além de pareceres positivos do MPF-PB, de médicos das famílias e
pesquisadores da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Em 30 de abril, a
juíza concedeu liminar dando salvo-conduto para ela continuar fornecendo seus
produtos para aquelas famílias e assinou um termo estendendo o benefício às famílias
que conseguissem completar a documentação. “Você não sabe quantas noites eu
passei sem dormir com medo de ser preso aqui dentro”, diz Cassiano Teixeira,
diretor-executivo da Abrace, em frente ao cultivo que usa para preparar o óleo.
Cassiano Teixeira, diretor-executivo
da Abrace, cuida de plantas na sala em que elas são postas para secar, depois
de colhidas e antes da extração do óleo (Foto: Abrace)
“Legalizada”, a Abrace se popularizou e se
profissionalizou. A notícia da liminar na TV fez o telefone tocar sem parar. De
abril para maio, o número de novos associados saltou de 37 para 123.
Atualmente, 378 pacientes são atendidos mensalmente pela associação –
protegidos por uma decisão judicial – e 235 aguardam numa lista de espera. As
pessoas pagam R$ 100 apenas para se cadastrar e entrar na fila. Cada paciente
que já entregou a documentação necessária – prescrição e laudo médico e termo
de responsabilidade – paga R$ 150 por mês, a não ser por 30 famílias de baixa
renda, isentas de mensalidade. A receita de cerca de R$ 50 mil reais mensais é
reinvestida na associação e em salários. Com uma garantia judicial, Cassiano
formalizou a contratação de sete pessoas que já trabalhavam na associação e
ampliou a equipe. Hoje, são dez funcionários – contando ele mesmo, como diretor
executivo. O time inclui equipe administrativa, químico, farmacêutico,
designer, arquivista e atendentes, além de dois estagiários e dois voluntários.
“Eu estou feliz de ter salário e carteira assinada, mas ajudo desde o começo, e
não é por dinheiro. Isso é uma missão na nossa vida”, diz Mizael Cabral,
designer da Abrace.
Cassiano Teixeira,
diretor-executivo da Abrace, tem liminar para cultivo com fins medicinais:
“Passei muitas noites em claro com medo de ser preso.” (Foto: Tarso
Araújo/Agência Pública)
A associação cultiva toda a matéria-prima em uma
estufa de 96 metros quadrados, finalizada em junho. “Depois da liminar, não
tive mais medo, então comecei a usar todo o espaço da associação para cultivo”,
diz Cassiano. A linha de produtos tem agora, além de óleos em gota ricos em THC
e CBD, uma versão em spray oral, que os pacientes usam para situações de emergência
– borrifado no nariz das crianças durante a convulsão, ele produz efeito mais
rápido, segundo a associação. Na área interna, tudo foi reformado para atender
a exigências sanitárias. A ONG já tem autorizações da prefeitura e do Corpo de
Bombeiros para funcionar como farmácia de manipulação e aguarda a visita de
fiscalização da agência municipal de vigilância sanitária.
Um dos principais benefícios vai para os
pacientes: a Abrace está conseguindo destravar acordos com a Universidade
Federal da Paraíba e com o Instituto Nacional do Semiárido para ter seus
produtos analisados e desenvolvidos em colaboração com cientistas e seus
associados são acompanhados oficialmente por pesquisadores.
“Sofri muito no comitê de ética”, diz Katy
Gondim, do Departamento de Farmácia da UFPB e especialista em farmacologia de
produtos naturais. “Quando perguntavam para mim qual é a origem desse óleo e eu
dizia que era clandestina, eles diziam: ‘Então não queremos nem saber’. Agora
está tudo mais fácil, e pesquisadores de outras áreas estão abraçando a causa”,
diz a pesquisadora, que acompanha pacientes da associação desde 2014.
O valor do THC
O debate sobre o uso medicinal da cannabis ganhou
força graças ao uso de óleos ricos em canabidiol (CBD) para o tratamento de
convulsões em pacientes com epilepsia de difícil controle. O primeiro estudo a
comprovar esse potencial terapêutico foi realizado pelo psicofarmacologista
brasileiro Elisaldo Carlini, da Unifesp, em estudo publicado em 1980. Mas a
cannabis medicinal tem sido usada para tratar sintomas de diversas outras
condições – dores crônicas, esclerose múltipla e náuseas causadas por
quimioterapia são as mais bem comprovadas cientificamente – e muitas de suas
propriedades terapêuticas são atribuídas ao THC. O princípio é conhecido pelo
seu uso recreativo e causa os efeitos mais conhecidos – relaxamento, olhos
vermelhos e aumento de apetite – mas também é anticonvulsivante.
É ele o principal componente dos óleos artesanais
produzidos clandestinamente no Brasil, já que as variedades da planta são
geralmente cultivadas para uso recreativo. O THC é o responsável pelo potencial
da maconha para causar dependência, problemas cognitivos e de memória. Por
isso, alguns médicos se recusam a prescrever óleos de maconha.
“O canabidiol (CBD) é mais aceito por causa da
esperança de um perfil de menos efeitos adversos”, diz o psicofarmacologista
Fabrício Pamplona, diretor científico da Entourage, empresa autorizada pela ANVISA
a pesquisar os fins medicinais da planta. Segundo o cientista, “o THC é um anticonvulsivante
mais potente que o canabidiol, mas, em doses altas, pode ter efeitos adversos.
Em doses muito altas, pode até aumentar as convulsões.”
Com uma dosagem adequada, os efeitos do produto
nacional são tão bons ou melhores do que do importado, segundo a farmacologista
da UFPB Katy Gondim. Ela monitora mais de 50 pacientes que usam extratos
clandestinos. “De modo geral, os benefícios são excelentes no caso das
epilepsias de difícil controle”, diz Katy. “Os pacientes reduzem de forma muito
significativa as crises convulsivas e reduzem o uso de anticonvulsivantes
tradicionais, que são muito tóxicos para os rins e o fígado. Alguns chegam a
abandonar completamente o uso dessas outras drogas.”
O neurologista Eduardo Faveret, chefe do
Departamento de Epilepsia do Instituto do Cérebro, no Rio de Janeiro, também
acompanha pacientes que usam com sucesso óleos ricos em THC. Mas recomenda que
se misture o tratamento com canabidiol. “Existem diversos trabalhos mostrando
que o CBD tem efeitos antipsicóticos e ansiolíticos que equilibram efeitos
adversos que o THC pode causar em altas dosagens”, diz.
Planos de expansão
O sucesso da Abrace motivou diversas novas iniciativas de cultivo.
Planos de expansão
O sucesso da Abrace motivou diversas novas iniciativas de cultivo.
“Tenho notícia de uns dez grupos que estão
organizados, produzindo e distribuindo óleo no Brasil.
Tem gente no Paraná, no
Mato Grosso do Sul, em Goiás, no Rio, em Brasília, Recife, Natal… Então está
bem distribuído”, diz o advogado Emílio Figueiredo que dá apoio jurídico para
alguns desses grupos. “No Mato Grosso do Sul, eles são superorganizados,
preparando para muita gente”, revela.
Procurados, os representantes desses
grupos comerciais se recusam a falar com a imprensa. “O segredo do negócio é o
segredo”, argumentou um deles para recusar a entrevista.
A reportagem detectou 17 associações já formadas
ou em processo de constituição em 13 estados.
Infografia: Bruno Fonseca
Todas as associações consultadas têm planos de
iniciar cultivos. No Rio de Janeiro, a Associação de Apoio à Pesquisa e
Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi) tenta viabilizar dois cultivos em
parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro. Um de 20 pés, para
pesquisa botânica, e outro de 450, para atender seus pacientes. Enquanto o
projeto não sai do papel, a ONG mantém no seu site um pop-up com a mensagem “A
Apepi não vende nem doa óleo”. A diretora da ONG, Margarete Brito, foi a
primeira pessoa a conseguir uma liminar para cultivar em casa e produzir óleo
para sua filha, que tem CDKL 5, doença rara que causa uma epilepsia de difícil
controle.
Cidinha Carvalho, outra mãe com autorização
judicial para cultivar para sua filha e presidente da Cultive, de São Paulo,
tem se dedicado a ensinar outros pacientes a cultivar e a produzir óleo em
casa. “Mas a idéia é ter no futuro um cultivo para suprir as famílias que não
podem ter o próprio cultivo”, diz.
Já a Ama+me, de Belo Horizonte, prepara um
projeto de cultivo para enviar formalmente à Anvisa no mês que vem. Neste mês,
24 associados declararam interesse em receber o óleo, caso o plano seja
aprovado.
Na semana passada, o Laboratório de Análises
Toxicológicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) divulgou as
instruções de um serviço gratuito e inédito no país de análise de óleos
artesanais que deve dar mais segurança aos pacientes que recorrem à produção
clandestina. Agora, eles podem levar seu produto ao laboratório e saberem
exatamente os teores de CBD e THC. “É uma ferramenta para monitoramento
farmacêutico da terapia”, diz a toxicologista Virgínia Carvalho, responsável
pelo projeto de extensão, batizado de Farmacannabis.
Após anúncio da ANVISA, usuários se preparam para batalha
Os representantes das associações estão bastante
desanimados quanto à perspectiva de terem cultivos legalizados. O principal
entrave seria a própria ANVISA, que prepara regulamentação sobre o tema e deve
apresentá-la em breve para consulta pública.
Numa entrevista ao programa Fantástico, em 30 de
abril, o presidente da agência, Jarbas Barbosa, garantiu que a regulamentação
daria “muito mais segurança jurídica e do ponto de vista sanitário” às mães.
Mas os representantes de pacientes não acreditam que vá cumprir sua palavra.
Linha de produtos da Abrace, que
tem a linha verde, rica em THC, e a laranja, rica em CBD (Foto: Tarso
Araújo/Agência Pública)
Após uma reunião com Barbosa em agosto, Margarete
Brito, da Apepi, ficou desmotivada. Segundo ela, “a regulamentação vai tratar
apenas de óleos para comercialização” e a autorização para cultivo vai “exigir
o cumprimento de todas as etapas necessárias para o registro de um
medicamento”.
“A gente sabe que isso custa muito dinheiro”, diz
ela. “Ou seja: a regulamentação só vai atender o interesse das indústrias que
vão fazer óleo para vender na farmácia”, avalia.
Na reunião, os representantes da agência
afirmaram que preparam duas regulamentações: uma para estabelecer critérios
para cultivo de plantas proibidas e outra, mais específica, para o plantio de
cannabis para uso medicinal. Procurada para esclarecer dúvidas sobre as
propostas e comentar o receio das associações de serem “barradas” na
regulamentação, a ANVISA recusou os pedidos de entrevista da Agência Pública.
Outra preocupação são as empresas farmacêuticas
estrangeiras. “Elas estão entrando com vontade, promovendo eventos de
divulgação de produtos e eventos de educação médica de qualidade duvidosa, sem
nenhuma fiscalização”, denuncia Juliana Paolinelli, diretora de comunicação da
Ama+me. “Ta uma bagunça geral.”
Óleo artesanal de Cannabis,
produzido clandestinamente no Brasil para fins medicinais (Foto: Tarso
Araújo/Agência Pública)
Segundo Figueiredo, se a ANVISA não contemplar as
associações na regulamentação em debate, terá de enfrentar oposição na Justiça.
“Já estamos nos preparando para uma batalha de mandados de segurança. [a ANVISA]
vai impor limites sanitários, burocráticos, vai fazer exigências absurdas de
segurança que as associações não serão capazes de atender”, diz.
José Godoy, do MPF-PB, lamenta a lentidão da ANVISA.
“Eles têm há três anos um parecer nosso recomendando a regulamentação do
cultivo, sem andamento.” Para ele, a falta de regulamentação fere o direito à
saúde. “As principais vítimas são os pacientes.”
Do seu anonimato, os produtores garantem que não
vão parar. “Fazemos algo que ajuda as pessoas.
Moralmente, não acho que esteja
fazendo nada de errado. Ao contrário, estamos ajudando centenas de pessoas,
como o governo mesmo não trata de fazer”, argumenta Nivaldo.
“O fato de esses produtores estarem na
ilegalidade é uma injustiça”, diz Figueiredo. “E um decálogo do advogado diz:
se alguma coisa é ao mesmo tempo ilegal e injusta, temos que atacar a
injustiça, e não a ilegalidade.”
* Nomes trocados para garantir o sigilo das
fontes da reportagem.
Esse texto é resultado do Concurso de
Microbolsa de Reportagem Maconha, realizado pela Agência Pública e Centro de
Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), da Universidade Candido Mendes.
Fonte: ENVOLVERDE
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