ONU pede
fim da austeridade fiscal e ousadia para reequilibrar economia global.
Novo
relatório da Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento
(UNCTAD) descreve uma rota política alternativa para a construção de economias
globais mais inclusivas e solidárias. O documento pede um novo pacto em
que as pessoas tenham prioridade frente aos lucros. Pontos cruciais de tal
transformação seriam o fim da austeridade fiscal, a contenção do “rentismo” das
empresas e o direcionamento das finanças para a criação de empregos, bem como
para o investimento em infraestrutura.
A economia
global parece travada em seu caminho para a recuperação. Um novo relatório da
UNCTAD, “Trade
and Development Report, 2017: Beyond Austerity — Towards a Global New Deal”
(Relatório de Comércio e Desenvolvimento 2017: para além da austeridade – rumo
a um novo pacto global), descreve uma rota política alternativa
e ambiciosa para a construção
de economias mais inclusivas e solidárias.
Família
pede ajuda nas ruas da cidade de Secunda, na província sul-africana de
Mpumalanga. Foto: Jan Truter (CC, Flickr).
No lançamento do relatório, o secretário-geral da
Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), Mukhisa
Kituyi, disse: “uma combinação de endividamento excessivo e demanda global
demasiadamente baixa tem entravado a expansão sustentada da economia mundial”.
O documento pede que o século 21 traga um novo
pacto, em que as pessoas tenham prioridade frente aos lucros. Pontos cruciais
de tal transformação seriam o fim da austeridade fiscal, a contenção do
“rentismo” (rent-seeking) das empresas e o direcionamento das finanças para a
criação de empregos, bem como para o investimento em infraestrutura.
Retomada econômica ainda fraca
A UNCTAD observa que a economia global está
melhorando em 2017, embora sem decolar. O crescimento deve atingir 2,6%, pouco
acima do ano anterior, mas bem abaixo do patamar médio pré-crise financeira, de
3,2%. A maior parte das regiões deve registrar pequenos ganhos. A América
Latina, saindo da recessão, exibe a maior variação entre os dois anos, embora
deva crescer apenas 1,2%. A zona do euro deve ter a maior taxa de crescimento
desde 2010 (1,8%), permanecendo atrás dos Estados Unidos.
O principal obstáculo a uma recuperação robusta
das economias avançadas é a austeridade fiscal, que é ainda a opção
macroeconômica padrão. De acordo com dados da UNCTAD, 13 das 14 principais
economias do mundo adotaram políticas de austeridade entre 2011 e 2015.
Com uma demanda global insuficiente, o comércio
permanece retraído. Espera-se uma pequena melhora neste ano, por conta da
recuperação do comércio Sul-Sul liderado pela China. No entanto, há muita
incerteza, especialmente em relação ao comércio de commodities, no qual uma
leve recuperação dos preços esmoreceu.
Na ausência de uma expansão coordenada sob a
liderança das economias avançadas, a sustentação do limitado crescimento
econômico global depende de melhoras duradouras nas economias emergentes.
Embora as maiores economias emergentes tenham evitado a austeridade entre 2011
e 2015 (com China e Índia mantendo taxas robustas de crescimento), elas
enfrentam agora riscos significativos.
Os níveis de endividamento continuam a se elevar,
sem que haja sinais reais de crescimento econômico robusto; há preocupações com
instabilidade política, preços de commodities em queda, taxas de juros mais
altas nos Estados Unidos e dólar mais forte. Os fluxos de capital para os
países em desenvolvimento permanecem negativos, ainda que menos do que nos anos
recentes.
Desigualdade, endividamento e instabilidade
Nas palavras do principal autor do relatório,
Richard Kozul-Wright, “duas das principais tendências socioeconômicas das
últimas décadas foram a explosão do endividamento e a ascensão das
‘superelites’ — grosso modo, o 1% no topo da pirâmide”. Estas tendências,
segundo o relatório, estão ligadas à desregulação dos mercados financeiros, à
ampliação das desigualdades na propriedade de ativos financeiros e ao foco nos
retornos de curto prazo.
Desigualdade e instabilidade estão conectadas à
hiperglobalização. Decorre disso um mundo com níveis insuficientes de
investimento produtivo, empregos precários e enfraquecimento da proteção
social. Em um círculo vicioso, os rendimentos no topo decolam durante as
trajetórias que culminam nas crises; na esteira dessas, sobrevêm a austeridade
e a estagnação dos rendimentos na base.
Passada uma década da crise global que absorveu
trilhões de dólares dos contribuintes em operações de salvamento, o domínio do
setor financeiro, por ela responsável, praticamente não mudou. De fato, os
níveis de endividamento estão mais altos do que nunca.
O relatório também examina outras fontes de
ansiedade, ligadas à robotização e à discriminação de gênero, que afetam as
perspectivas do emprego nos países desenvolvidos e nos países em
desenvolvimento. Embora a automação e a crescente participação das mulheres
devam ser consideradas bem-vindas, a coincidência com um mundo de austeridade e
competição excessiva — que levam a uma corrida para o abismo nos mercados de
trabalho — faz com que pareçam ameaçadoras.
Resulta uma reação popular contra um sistema que
parece ter passado a privilegiar, de forma injusta, um punhado de grandes
corporações, instituições financeiras e indivíduos ricos. A incapacidade de
corrigir os excessos da hiperglobalização, adverte o relatório, prejudicará a
coesão social; mais que isso, diminuirá a confiança tanto nos mercados como nos
políticos.
Procura-se alternativa ao fundamentalismo do mercado
O relatório questiona o exagero na
responsabilização do comércio e da tecnologia pelos problemas de um mundo
hiperglobalizado. Cabe, em lugar disso, uma análise séria acerca do poder de
mercado, do comportamento “rentista” e das regras do jogo em que vencedores
levam (quase) tudo, como responsáveis por resultados excludentes.
A crescente concentração dos mercados — com
consequências potencialmente corrosivas para o sistema político — é uma das
questões centrais do relatório.
Enquanto os governantes continuarem a brandir a
bandeira da austeridade e a avaliar o sucesso das políticas pelo preço dos
ativos e pelos níveis de lucro, com setores vitais sob o domínio do grande
negócio, as já significativas desigualdades poderão se agravar.
Invocando o espírito de 1947
Para passar da hiperglobalização para a
construção de economias inclusivas, não basta aprimorar a operação dos
mercados. É necessário um programa mais rigoroso e abrangente, que enfrente as
assimetrias nacionais e internacionais em termos de conhecimento tecnológico,
poder de mercado e influência política.
Com os Estados Unidos deixando de desempenhar o
papel de consumidor em última instância, a reciclagem dos superávits em
transações correntes torna-se um elemento essencial para reequilibrar a
economia mundial. O documento aborda o caso da zona do euro (especialmente da
Alemanha) que tem agora um alto superávit com o resto do mundo.
A recente proposta alemã para o G20 de um Plano
Marshall para a África é bem-vinda, mas, por enquanto, ainda não tem a envergadura
financeira necessária. A iniciativa chinesa de investimentos “Um Cinturão, Uma
Rota” (One Belt, One Road) é muito mais ousada, a despeito da aguda queda do
superávit do país nos últimos dois anos.
O relatório extrai lições de 1947, quando o Fundo
Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial, o Acordo Geral de Tarifas e
Comércio (GATT) e as Nações Unidas uniram forças para reequilibrar a economia
do pós-guerra e o Plano Marshall foi lançado. Sete décadas depois, um esforço
igualmente ambicioso é necessário para combater as injustiças da
hiperglobalização e construir economias inclusivas e sustentáveis.
Em resposta ao slogan político do passado — “não
há alternativa” — o relatório apresenta os contornos de um novo pacto global
para construir economias mais inclusivas e solidárias. O pacto deveria, com
velocidade e escala suficientes, combinar recuperação econômica, reformas
regulatórias e políticas de redistribuição.
O sucesso do New Deal dos anos 1930 nos EUA muito
se deveu à sua ênfase na redistribuição do poder, dando voz a grupos sociais
mais fracos, incluindo consumidores, organizações de trabalhadores,
agricultores e grupos mais pobres. Isso não é menos necessário hoje em dia.
Na atual economia global integrada, o sucesso de
cada país exige que os governos atuem em conjunto. A UNCTAD pede que os
governos aproveitem a oportunidade oferecida pelos Objetivos do Desenvolvimento
Sustentável (ODS) e construam um novo pacto global para o século 21.
Sim, existe uma alternativa
Medidas-chave discutidas no relatório incluem:
• Pôr fim à austeridade por meio de investimento
público, maior e melhor, com uma forte dimensão assistencial, incluindo
vultosos programas que aprimorem a infraestrutura e gerem emprego. Ajudar a
mitigação das mudanças climáticas, bem como a adaptação a elas; promover as
oportunidades tecnológicas oferecidas pelo Acordo de Paris no quadro da
Convenção das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC). Dar maior
importância às atividades assistenciais.
• Aumentar a receita governamental: um maior
recurso a impostos progressivos (inclusive sobre a propriedade e outras formas
de renda) pode combater a desigualdade de renda. O relatório mostra que mesmo
pequenas mudanças nas taxas marginais incidentes sobre as camadas mais ricas
reduziriam de forma significativa os déficits. Reduzir isenções, brechas
fiscais e o abuso empresarial dos subsídios aumentaria as receitas e a
equidade.
• Estabelecer um novo registro financeiro global,
identificando a propriedade de ativos financeiros, como primeiro passo para a
taxação equitativa.
• Dar mais voz ao trabalho (os salários precisam
subir em linha com a produtividade; a insegurança no emprego precisa ser
corrigida por meio de ações legislativas e medidas ativas no mercado de
trabalho).
• Domar o capital financeiro: regular de forma
apropriada o setor financeiro, desde o private banking até os produtos
financeiros “tóxicos”.
• Melhorar a capitalização dos bancos de
desenvolvimento multilaterais e regionais: as lacunas institucionais no campo
da reestruturação da dívida soberana precisam ser resolvidas no plano
multilateral.
• Manter o controle sobre o “rentismo”
empresarial. Medidas para combater práticas comerciais restritivas devem ser
tomadas conjuntamente com uma aplicação mais rigorosa de normas nacionais de
divulgação de informações. Um observatório da competição global poderia monitorar
as tendências e padrões da concentração de mercado mundial e reunir informação
sobre as diversas diretrizes regulatórias, o que seria um primeiro passo para a
criação de normas e políticas globais coordenadas de melhores práticas e
políticas internacionais.
Fonte; ONUBR
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