A luta por um bosque no meio do
concreto e asfalto.
Por Vagner Luis Camilotti*
Pense em um dia quente de verão, de
sol de rachar a cabeça, o corpo quente, aquela sensação
desconfortável do sol e do calor no corpo que se esgota fisicamente
e você ainda tem que andar quadras e quadras até o teu destino.
Agora lembre da sensação de quanto chegas numa rua arborizada, com
aquela sombra que refresca o corpo – a diferença de temperatura
pode chegar a cinco graus –, na qual o corpo se sente revigorado e
que quer evitar o sol a todo custo agora ao sentir o frescor da
sombra e sem também aquele brilho ofuscante da rua e da calçada.
Esse é um exercício simples que tenho certeza ter sido vivenciado
por qualquer pessoa.
Com isso em mente, às vezes soa
inimaginável para alguns que se precise de argumentos para se
preservar pedaços de uma natureza já em frangalhos. Para outros,
ainda mais desconcertante é a ideia de que as únicas áreas verdes
urbanas ainda passíveis de contribuir para a qualidade de vida
estejam sob o risco de serem transformadas em estacionamentos, indo
na direção oposta de movimentos de redução do uso de carros e
combustíveis fósseis e da recomendação da FAO (Organização das
Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) para o plantio de
bosques urbanos com o fim de tornar as cidades mais sustentáveis,
agradáveis e resilientes às mudanças climáticas. Surge a questão
de quando o interesse privado deve superar o interesse coletivo, uma
vez que estamos falando de uma área privada que já até ganhou de
seus vizinhos o nome carinhoso de Bosque Betânia, em São José dos
Campos (SP).
A visão da importância do
bosque, uma área de 8,496 m2, tem sido resumida na discussão
burocrática do corte de 430 árvores, sendo 274 de espécies nativas
e 156 de espécies exóticas e de que todos os requisitos legais
foram atendidos, como o plantio de 2,7 mil mudas em uma área de 16
mil m2 de fazenda da própria empresa. Toda a complexidade das
relações sociais e ambientais envolvidas na causa assim são
analisadas pela empresa e pelos órgãos licenciadores do município
e do Estado.
Nisso, ignoram-se fatos como a
saúde e bem-estar humano e da fauna que lá reside e utiliza para se
perpetuar em um ecossistema duramente impactado como é o ambiente
urbano. Áreas como essa em questão servem como amortecedores do
impacto da urbanização sobre a biodiversidade e mesmo para a saúde
das próprias pessoas. Tornam-se refúgios em meio à adversidade
para ambos, fauna e humanos, sem esquecer, lógico, das próprias
espécies vegetais reduzidas na discussão a “430 indivíduos”.
Deixa-se de fora desse debate todas as demais espécies e indivíduos
menores que não entram no que se chama de medida de diâmetro à
altura do peito (DAP) que se considera nesses inventariamentos, que
em geral é 5 cm de diâmetro. Tudo o que não tiver esse diâmetro
não entra na contagem. Se não for espécie lenhosa também, como
bromélias, orquídeas, outras epífitas, herbáceas etc. não entram
na contagem. No fim, acabam sendo muito mais do que as 432 árvores
que serão suprimidas, talvez sejam mais de mil indivíduos e tantas
outras espécies subvalorizadas meramente por uma questão legal.
Fauna
No tocante à fauna, também não se
sabe quem por lá anda. Vê-se comentários nas redes sociais de
jacus, gambás, esquilos, espécies mais simbólicas e mais
facilmente observáveis. Porém, as menores espécies, principalmente
de aves, acabam passando despercebidas até em função do pequeno
conhecimento popular sobre a existência de muitas dessas. Por
exemplo, em um estudo que venho realizando no Parque Vicentina
Aranha, o número de espécies chegou a 80. Oitenta espécies que
usam o parque para se alimentar, reproduzir ou mesmo como um ponto de
parada no movimento que fazem pela área urbana. O mesmo deve ocorrer
com o bosque da Betânia. É uma área considerável com um dossel
bem formado quando vista por imagens aéreas e que aparenta, por
fotos, ter uma estrutura vertical muito funcional para a reprodução
e permanência das espécies de aves. Essa área provavelmente está
servindo para manutenção de muitas espécies animais no ambiente
urbano circundante e, num processo conhecido como metapopulações,
indivíduos de uma espécie podem usar o local para se reproduzir e
depois vagar pela área urbana colonizando outras áreas verdes e
mesmo recolonizando a área em questão. Assim, indivíduos do bosque
da Betânia podem acabar por enriquecer o Vicentina Aranha, por
exemplo, e vice-versa, já que o corredor de árvores das vias
urbanas cria essa conectividade para muitas espécies que consigam se
movimentar nesses ambientes.
Isso, no entanto, diz respeito
ao que ocorre para os processos ligados à biodiversidade. E o que
diz respeito à nós, seres humanos? Se o poder público tem
interesse em vários aspectos do bem-estar social, deve saber que
áreas verdes urbanas são essenciais para a qualidade de vida de uma
cidade.
Numa simples pesquisa no Google aparecem milhares de estudos
científicos sobre o tema e cidades mais avançadas em termos de
gestão urbana e qualidade de vida já possuem projetos para
enriquecer o espaço urbano com verde ao invés do cinza.
Serviços ambientais
Quando se ignora os processos
ecológicos locais na tomada de decisão e se segue cegamente uma lei
que ignora tais processos e permite que uma área seja suprimida e
compensada por outra localizada em certos casos até a dezenas de
quilômetros de distância, perde-se fatores que são responsáveis
por condições de ambiência locais e que não poderão ser
compensados de outra forma.
A falta de visão de empresários e
políticos – e mesmo da população em geral – do que se conhece
por sistemas complexos (um ambiente urbano é um sistema complexo) é
que mostra que não há uma compreensão desses atores sociais das
condições que temos hoje no planeta, condições que permitem a
vida e que são dependentes dos elementos nele existente no presente
e mesmo em função de elementos que existiram no passado. Ou seja,
temperatura, padrão de chuvas, ventos, por exemplo, são dependentes
da existência de todo o complexo de interação entre os elementos
vivos (plantas, animais, bactérias, fungos) e o ambiente físico
(águas, rochas, atmosfera etc.). Essa relação é sintetizada na
famosa Teoria de Gaia. Dessa maneira, quando se mexe em qualquer um
desses elementos, todo o sistema é afetado e nele há o que se chama
de limiares de mudança – ou até em que ponto se pode mexer sem
que ocorram mudanças drásticas no sistema e que resulte em
condições diferentes das que vivenciamos hoje (ver o caso da
Amazônia). As florestas, por exemplo, são essências na regulação
climática e do ciclo hidrológico. Nesse sentido, pode-se pensar que
suprimir uma pequena área como essa do bosque da Tívoli pode não
ter efeitos consideráveis no todo, mas terá sim num contexto de
microescala, ou melhor, no microclima local do bairro e em outros
fatores que discorro abaixo.
Quando se fala em ambiente
urbano, alguns conceitos – se exótica ou nativa – podem e talvez
precisam deixar de ser importantes quando analisadas as funções
sistêmicas que desempenham no ambiente. Se a espécie em questão é
exótica ou nativa na hora de decidir pelo corte ou não, num
contexto urbano essa questão não deveria ser tão relevante para se
decidir o fim da árvore (especialmente se não for uma espécie
exótica considerada invasora), mas sim a função que aquele
indivíduo está desempenhando no ambiente. Essa é uma opinião
pessoal baseada no conhecimento de processos ecológicos e de
conservação de espécies da biodiversidade e que deveria entrar na
pauta de discussão sobre a legislação dos ecossistemas urbanos. No
bosque da Tívoli, uma proporção considerável é exótica
(eucalipto) e isso tem sido usado como argumento a favor do corte na
área. No entanto, o papel que esses eucaliptos desempenham na
ambiência da área acaba sendo negligenciado pelo simples fato de
ser um eucalipto. Em termos de serviços prestados, nesse caso em
particular, os eucaliptos estão prestando tanto quanto as nativas.
No contexto geral, o bosque com
suas diferentes espécies e indivíduos, contadas nas suas 432
previstas para corte e mais as não contatas, podem estar
contribuindo para reduzir a temperatura em seu entorno em até quatro
graus se comparado com bairros desprovidos de vegetação pela
liberação de vapor de água, sombra provida e pela absorção de
raios solares (70-80%), além de contribuírem no controle de águas
pluviais. Contribuem da mesma forma exóticas e nativas para a
filtragem de material particulado emitido nas vias públicas pelos
veículos – a área está junto ao anel viário e próxima à Dutra
– e também para abafar o som dos carros. Além disso, estima-se
que são necessárias 130 árvores com 30 anos para fixar os 4.500 kg
de CO2 que produziu apenas um carro que percorreu seus 200.000 km e
que quanto mais velha a árvore, mais ela absorve CO2. Embora os
efeitos possam ser meramente locais, os ganhos são sociais e
abrangentes. Basta ver a relevância do Parque Vicentina Aranha e do
Santos Dumont, que além de servirem de refúgio para a população
Joseense, também embeleza a cidade e o bairro onde se encontram e,
de uma forma que pode ser positiva ou negativa, contribuem para a
valorização dos imóveis da região (de 10 a 15% de acréscimo no
valor do imóvel).
Saúde
Uma área verde vai além de
benefícios ambientais. Morar a uma distância de 300 m de áreas
verdes parece ter benefícios significativos para as pessoas. Estudos
apontam que a presença de árvores nas vias urbanas e áreas verdes
diminuem a obesidade (já que as pessoas se sentem estimuladas a
praticarem exercícios físicos) e também o uso de antidepressivos;
mulheres grávidas tendem a ter uma pressão sanguínea menor e
crianças a ter menores chances de alergias e problemas
comportamentais. A simples presença de árvores próximas de escolas
e hospitais e vistas de suas janelas faz com que os alunos aumentem o
seu rendimento escolar e que pacientes se recuperem mais rapidamente
de cirurgias.
A redução da poluição
atmosférica – responsável por mortes que ultrapassam aquelas por
água contaminada e doenças infecciosas – pela retenção de
material particulado nas folhas, ramos e troncos das árvores pode
resultar numa economia de US$ 60 milhões em custos de saúde
pública. A lista de doenças que podem ter seus desenvolvimentos
amenizados pela presença de áreas verdes é enorme. Os efeitos
positivos vão além e podem fazer com que as pessoas tenham uma
resposta positiva equiparável a se sentir sete anos mais jovem ou
mesmo ter a percepção de bem-estar equiparável a um aumento de 10
mil dólares no rendimento anual – elas se sentem mais felizes
apenas vivendo em uma rua arborizada. Como disse Marcos Buckeridge
(USP), “se uma pessoa viver em uma região arborizada,
provavelmente terá o tempo de vida prolongado”. Isso leva à
conclusão de que plantar árvores no meio urbano é uma medida
básica de saúde pública e há argumentos de que parte dos fundos
necessários para arborização urbana poderiam vir do setor da saúde
como um investimento de médio a longo prazo em prevenção dessas
doenças.
Segregação urbana
A SOS Mata Atlântica aponta que 72%
da população brasileira (~145 milhões de pessoas) vivem nas
cidades da Mata Atlântica e que em torno de 90% dessas pessoas
residem na área urbana. No entanto, há uma relação perversa no
ambiente urbano (não exclusivo apenas no Brasil): pessoas com menor
renda e geralmente negras residem em áreas com menor arborização
nas ruas e tem menos acesso às áreas verdes urbanas. Tanto é um
fato global que a presença de áreas verdes e ruas arborizadas pode
ser considerada como uma proxy de riqueza ao se avaliar a qualidade
de vida nos bairros de uma cidade. Assim, além das periferias
sofrerem com a falta de acesso a um sistema de saúde de qualidade,
ainda sofrem os efeitos físicos e psicológicos de um ambiente
insalubre.
Esse é um assunto sério e que
é deixado sempre em segundo ou terceiro plano no planejamento
urbano. É sério quando se observam os dados referidos ao longo
desse texto. Como escreveram Marcia Hirota e Evangelina Vormittag,
“uma política bem feita na área ambiental combate a poluição e
ajuda a promover estilos de vida mais saudáveis nos nossos centros
urbanos”. O uso de bicicletas, por exemplo, é limitado no verão
pelo calor excessivo das vias urbanas associado à limitada malha
ciclo-viária das cidades. Uma cidade mais verde e mais conectada à
natureza tende a prosperar mais por todos os benefícios listados e
muitos ainda nem compreendidos e que parecem levar a uma melhor
integração e redução nas inequidades sociais e de saúde.
No fim, todo esse movimento em
relação ao Bosque da Vila Betânia não está questionando apenas
ou mesmo a legalidade da ação. A princípio, sendo proprietários e
apresentando todos os documentos e exigências necessárias,
legalmente a empresa pode fazer o que bem entender com a área. O que
está sendo discutido é a ética e a moral do ato e o papel que o
poder público tem em mediar tais intervenções no meio urbano
quando ele deveria primeiro pensar nas questões sociais de bem-estar
da população como um todo antes dos interesses privados, como bem
deixou claro Flávio de Leão Bastos Pereira ao dizer que o
“interesse particular não pode prejudicar o coletivo”.
É necessário que desse
movimento social em prol do bosque nasça e permaneça um engajamento
social na busca de melhorias das condições da arborização urbana.
Há iniciativas já na cidade de grupos que se reúnem no final de
semana para plantarem árvores em parques e vias urbanas, inclusive
com o aval da prefeitura. Há nisso uma oportunidade latente nos
próprios cidadãos para que o poder público possa e deve aproveitar
para engajar e envolver as pessoas na governança do espaço comum e
descentralizar o encargo de manutenção do verde urbano e ir ao
passo de cidades como Paris com o seu projeto de cidadão-jardineiro.
Oportunidades e modelos para isso existem.
No momento, o poder público
municipal parece ser incapaz de gerir adequadamente e valorizar a
questão da arborização urbana, possuindo uma legislação
criticada e desatualizada, um manejo de podas inadequado e que põe
em risco a segurança dos próprios cidadãos, sem contar o déficit
estimado de mais de 400 mil árvores na cidade. Uma cidade mais
florida e verde é uma necessidade, não um luxo, e cabe ao poder
público alavancar essa mudança e levar São José dos Campos para a
vanguarda das cidades que investem em qualidade de vida, tendo em
vista a se preparar para as possíveis mudanças previstas para o
clima (com pesquisas sobre o tema geradas no próprio município pelo
INPE). O que é necessário para e o como construir essas iniciativas
são perguntas que vêm depois da principal: Quando é que o poder
público colocará a arborização urbana também no primeiro plano
de decisões para a habitabilidade da cidade?
* Médico Veterinário, Me. em
Ecologia, Dr. em Ciência do Sistema Terrestre (INPE).