E se os
Estados Unidos abandonarem o Acordo de Paris?
Carlos Nobre* –
“Facts are stubborn
things”. Frase de
John Adams (1735-1826), segundo presidente dos Estados Unidos, estampada em
cartaz durante protesto contra as posições anticiência de Donald Trump em
fevereiro, na cidade de Boston.
Um candidato à presidência de um país nega, durante
campanha eleitoral, consenso científico amplamente estabelecido em décadas de
pesquisas sérias sobre fatos de grande impacto global. Após ser eleito, mantém
posição ambígua e nomeia negacionistas como altos dirigentes de seu governo.
Esses dão visibilidade a uma minoria de “cientistas” negacionistas e suspendem
– ou atrasam – a implementação de políticas públicas de mitigação.
Carlos Nobre
A descrição caberia nas palavras, ações e intenções
do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, mas refere-se, na
verdade, ao que aconteceu entre 1999 e 2008 na África do Sul, durante a
presidência de Thabo Mbeki. O dirigente sul-africano negou obstinadamente que o
vírus HIV fosse a causa da AIDS e, com isso, atrasou em uma década o uso de antirretrovirais
no sistema público de saúde do país.
Alguém poderia atribuir tamanho obscurantismo
científico a um baixo grau de desenvolvimento de um país, com diminuta
capacidade de apropriação da melhor ciência para benefício da população. Ou
poderia dizer que tal postura seria típica de regimes totalitários, em que a
ciência deve conformar-se à ideologia. Esse teria sido o caso, por exemplo, de
Trofim Lysenko, presidente da Academia de Ciências Agrícolas da União
Soviética, negando a genética mendeliana e atrasando o avanço da agricultura
local entre 1920 e 1964.
Entretanto, um exemplo de obscurantismo científico
no que toca à política e às mudanças climáticas acontece hoje nos Estados
Unidos, país que é a grande potência científica mundial, cuja comunidade de
pesquisadores é a que mais contribui para o avanço do conhecimento sobre o
aquecimento global antropogênico e as mudanças do clima no planeta.
Contraponha o cenário atual ao legado do
ex-presidente americano Barack Obama. Em 2015, na construção de consensos meses
antes da Conferência do Clima da ONU, em Paris, os Estados Unidos firmaram
vários acordos bilaterais. Um deles com o Brasil. Em junho daquele ano, os
presidentes dos dois países assinaram acordo de cooperação para reduzir as
emissões de gases do efeito estufa. O documento estabelece, por exemplo, as
metas de 33% de energias renováveis na matriz energética brasileira e de 20% de
renováveis na matriz elétrica – além da contribuição da hidroeletricidade em
ambas metas – até 2030. O acordo prevê também parcerias para tornar a
agricultura de ambos os países mais produtiva e com menos emissões.
Se a administração Trump der as costas ao histórico
Acordo de Paris, de 2015, as consequências diplomáticas serão imensas e
negativas para os Estados Unidos em todas as dimensões – e numa escala muito
maior do que foram as repercussões diplomáticas desfavoráveis quando George W.
Bush retirou o país do Protocolo de Kyoto, em 2001, como admitido pelo próprio
ex-secretário de Estado, Collin Powell. O ex-presidente chegou a dizer meses
depois do ocorrido que um dos motivos para ter rejeitado Kyoto era que o
protocolo prejudicava a economia americana.
Dezesseis anos mais tarde, Donald Trump volta a
usar um discurso semelhante como justificativa. Mas o estilo imprevisível do
atual presidente americano não permite antever se sua administração chegará ao
extremo de retirar os Estados Unidos do Acordo de Paris. Inegável é que, desde
que assumiu a Casa Branca, o republicano escolheu negacionistas do aquecimento
global para desempenhar altas funções, um claro sinal de retrocesso no ritmo de
implementação das medidas de redução de emissões necessárias para atingir as
metas preconizadas em Paris, de manter o aumento da temperatura global abaixo
de 2°C.
O lado otimista da história é que o movimento
mundial de desinvestimento em termoelétricas a carvão pode ser mesmo um caminho
sem volta – e, então, não caberiam retrocessos. Além disso, está
suficientemente demonstrado por fatos econômicos que as energias renováveis têm
potencial para gerar milhões de empregos nos Estados Unidos e sua adoção em
massa, longe de impedir o crescimento do país, impulsionará o desenvolvimento
da gigantesca economia americana. Centenas de empresas e investidores
americanos chegaram a pedir durante a campanha eleitoral que a Casa Branca não
abandonasse o acordo climático, afirmando que o fracasso dos Estados Unidos em
construir uma economia de baixo carbono ameaçaria a prosperidade nacional.
Mas o risco de os Estados Unidos deixarem o Acordo
de Paris existe. Se isso acontecer – ou se o país colocar o pé no freio de sua
implementação –, outros países já se preparam para ocupar o vácuo,
principalmente China e Alemanha, projetando-se como líderes mundiais em
tecnologias limpas.
Ainda que a cooperação científica e tecnológica com
os Estados Unidos na questão climática, energética e agrícola seja de interesse
estratégico para o Brasil, teremos que seguir adiante o curso do protagonismo
que construímos em ações concretas de mitigação das mudanças climáticas. Não
nos faltam desafios nessa área, como o de reduzir urgentemente o desmatamento
na Amazônia e no Cerrado, e aumentar em muito a presença das novas energias
renováveis em nossa matriz energética.
O obscurantismo do presidente Mbeki custou a vida
de mais de 330 mil sul-africanos, que não tiveram acesso aos antirretrovirais
capazes de lhes prolongar a vida. A irresponsável cegueira do presidente Trump
na questão climática poderá ter um impacto infinitamente maior e por muitas
décadas ou séculos para o planeta Terra e todas as espécies vivas, inclusive
o Homo sapiens, se ultrapassarmos algum limite planetário sem
volta.
* Carlos Nobre é climatologista, membro da Academia
Brasileira de Ciências, membro-estrangeiro da Academia de Ciências dos Estados
Unidos e senior
fellow do WRI Brasil
Fonte: ENVOLVERDE
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