O que falta para o Acordo de Paris funcionar?
por Caroline Prolo
Adotado por
aclamação em dezembro de 2015, o Acordo de Paris entrou
efetivamente em vigor menos de um ano depois, em 4 de novembro de
2016, quando 55 países responsáveis por mais de 55% das emissões
de gases de efeito estufa do mundo comunicaram à ONU que
“ratificaram” o acordo, ou seja, deram a ele o status de lei
doméstica. Isso aconteceu em tempo recorde para um acordo
internacional — o Protocolo de Kyoto, antecessor do acordo do
clima, levou oito anos para atingir o mínimo de ratificações
necessárias. Tão rápido que não deu tempo de “organizar a casa”
para o acordo começar a funcionar. Em outras palavras, não deu
tempo de regulamentar os processos, fluxos de informações,
composição e competência dos órgãos e até a substância de
algumas obrigações, como, por exemplo, que tipo de informação
precisa ser apresentada pelos países em sua Contribuição
Nacionalmente Determinada (NDC, na sigla em inglês).
Negociadores tentam resolver
diferenças na plenária da conferência do clima de Marrakesh, em
2016 (Foto: Claudio Angelo/OC).
Por essa razão,
desde novembro de 2016 as negociações de mudanças climáticas da
ONU estão voltadas para a implementação do chamado “livro de
regras”, sem o qual o acordo não consegue efetivamente funcionar.
O objetivo era que o processo de elaboração desse manual de
instruções levasse três anos — ou seja, até o final deste
ano de 2018, durante a 24ª Conferência das Partes da Convenção da
ONU sobre Mudanças do Clima (COP24), momento em que elas seriam
aprovadas pelo órgão de tomada de decisão do Acordo de Paris, a
chamada CMA. Faltando poucas semanas para a COP24, em Katowice, na
Polônia, como estamos na elaboração dessas regras? Bem, podíamos
estar melhor.
Na data em que
este artigo foi escrito, 181 países haviam ratificado o Acordo de
Paris. Com esta abrangência, o acordo está muito perto de ser
universal e, portanto, inclui uma diversidade imensa de países: há
ricos e pobres; muito ricos e muito pobres; países cujas economias
dependem predominantemente da exploração do petróleo ou da queima
do carvão; e, dentre os pobres, há ainda aqueles que estão à
beira da extinção em virtude dos efeitos nefastos do aquecimento
global, como as nações insulares do Pacífico, que já perdem
território por causa do crescente aumento do nível dos oceanos.
Todos esses
países estão sentados à mesma mesa de negociações, tentando
fazer o Acordo de Paris funcionar. E todos precisam concordar em
consensopara que as decisões do acordo sejam aprovadas,
inclusive as decisões relativas ao tal livro de regras. Agora
considere que todas essas decisões são tomadas dentro de um
processo diplomático, em que cada país deve ter assegurado o
direito de manifestar sua opinião, mesmo que ela não seja
construtiva (como tem sido mais recentemente a postura dos Estados
Unidos após a decisão da saída do Acordo de Paris pelo governo
Trump). Isso significa que são necessárias muitas e muitas rodadas
de negociações para que todos esses países com realidades tão
heterogêneas concordem com um mínimo de tomada de ação. Sendo
assim, se três anos para criar o livro de regras do Acordo de Paris
parece muito tempo, dentro da lógica do regime da UNFCCC (sigla
em inglês para a Convenção-Quadro da ONU sobre Mudança do Clima)
esse longo percurso até que faz sentido. E faz mais sentido
principalmente porque é a primeira vez que se tem um acordo tão
universal em termos de obrigações de combate ao aquecimento global:
diferentemente do Protocolo de Kyoto, o Acordo de Paris não exclui o
comprometimento de países em desenvolvimento; todos os países sem
exceção são obrigados a contribuir de alguma forma.
Dentre os
aspectos mais conturbados do livro de regras estão os instrumentos
que vão garantir a transparência no cumprimento
das obrigações do Acordo de Paris. O artigo 13 do Acordo prevê que
os países deverão reportar: (i) seus inventários de emissões de
gases de efeito estufa; e (ii) como estão implementando suas NDCs.
Além disso, (iii) países desenvolvidos devem reportar como estão
ajudando financeiramente os países vulneráveis que precisam de
auxílio para concretizar ações de mitigação à mudança do
clima. Questões como formato, conteúdo e periodicidade desses
relatórios ainda estão em aberto, bem como o processo para revisão
dos relatórios pelo grupo de especialistas técnicos da convenção,
o chamado SBSTA.
Esta é questão das mais críticas, pois é o processo de
transparência que permitirá identificar de forma concreta o
desempenho dos países na redução das emissões de gases de efeito
estufa dentro do Acordo de Paris. De outro lado, o acordo reconhece
que países com problemas de capacidade para produzir tais relatórios
deverão receber recursos dos países desenvolvidos para cumprir as
obrigações de reportar, mas a forma como estas obrigações estarão
atreladas ainda não está clara.
Outro mecanismo
que ainda precisará ser regulamentado é o chamado comitê “para
facilitar a implementação e promover compliance” (cumprimento)
das disposições do Acordo de Paris. Seria mais fácil chamar logo
de “comitê de compliance”, mas isso não é visto com
bons olhos nas negociações, pois soa como se fosse um comitê de
investigação e punição dos países que não estiverem em
compliance com o Acordo de Paris. Segundo o artigo 15, o
comitê deve funcionar de forma facilitadora, “não-adversarial”
e “não-punitiva”. Isto significa que o comitê não vai ter
poderes para exigir qualquer ação por parte dos países, tampouco
poderá aplicar sanções, mas eventualmente poderá propor um plano
de ação para sanar problemas individuais de não-compliance e
reportar o caso, inclusive para a CMA. Nada disso está decidido
tampouco. Nas negociações, alguns países (inclusive o Brasil) têm
adotado o entendimento de que este comitê só pode ser acionado com
o consentimento prévio do país que vai ser “investigado”. Se
essa visão prevalecer, dificilmente o comitê terá alguma demanda
de trabalho para fazer.
Completando os
mecanismos de “revisão” da implementação do Acordo de Paris, o
global stocktake é mais uma medida inovadora do acordo para
medir o desempenho coletivo dos países no cumprimento do Acordo de
Paris. Especificamente, o global stocktake a cada cinco anos
fará um balanço de onde estamos na trajetória de descarbonização
mundial, tendo em vista a meta de manter o aumento de temperatura bem
abaixo de 2°C com esforços para não superar 1,5°C. O problema é
como estruturar a forma com que esse “balanço” vai ser
conduzido: será simplesmente mais uma rodada de discussões entre os
países? Haverá algum órgão constituído para gerenciar o
processo? De quais instituições virão as informações a serem
consideradas? ONG também pode fornecer dados? Uma pergunta
especialmente polêmica é: nesse balanço vão ser também
contabilizadas as perdas e danos causados pela mudança do clima?
Por fim, outro
aspecto que precisa evoluir nas negociações do livro de regras é o
dos mecanismos de mercado de carbono. O Acordo de
Paris admite que os países possam trabalhar de forma cooperativa na
redução de suas emissões, inclusive por meio de mercados de
emissões pelos quais possam trocar entre si “excedentes” de
permissões para emitir gases de efeito estufa. Essas trocas podem
inclusive acontecer por meio da implantação de projetos de baixo
carbono em um determinado país, cujos créditos sejam usados para
contabilizar positivamente na NDC de um outro país, que financie
estes projetos. Este último modelo é semelhante ao do famoso
Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) do Protocolo de Kyoto, que
permitia que países em desenvolvimento hospedassem projetos para
geração de créditos de carbono que seriam abatidos dos
compromissos dos países desenvolvidos junto ao Protocolo. A
diferença do MDL para o novo mecanismo é que agora tanto países
desenvolvidos quanto países em desenvolvimento podem indistintamente
hospedar ou financiar projetos.
Há quem não
goste, contudo, da utilização do MDL como referencial para o novo
mercado do Acordo de Paris, pois há muitas controvérsias sobre a
integridade de alguns projetos, tais como projetos de geração de
energia hidrelétrica que foram objeto de denúncias de violação de
direitos humanos. O Brasil tem advogado pela permanência do modelo
do MDL, e inclusive que os projetos de MDL já existentes sejam
abatidos das metas dos países em desenvolvimento que hospedaram
esses projetos no passado, o que é bastante polêmico.
Como sói
acontecer na UNFCCC, as decisões importantes são deixadas para o
último minuto, e há outros diversos aspectos críticos que precisam
ser regulamentados pelo livro de regras do Acordo de Paris na COP24.
Por exemplo, as obrigações dos países desenvolvidos de prestar
apoio financeiro aos países em desenvolvimento no
cumprimento das medidas de corte de emissões e adaptação às
mudanças do clima é um ponto ainda muito travado nas negociações.
Os países desenvolvidos estão dificultando o detalhamento dessas
obrigações. Da forma como hoje consta no acordo, a obrigação de
financiamento é coletiva, e não é possível individualizá-la por
país desenvolvido sem um processo detalhado de como o cumprimento
desta obrigação vai ocorrer. Sem isso, a exigência de
financiamento climático coletivo tem pouca ou nenhuma eficácia.
Por fim, as
regras sobre a revisão das NDCs (elas devem ser
revisadas pelo menos a cada cinco anos de maneira que representem um
progresso em relação à contribuição anterior) também ainda
precisam ser decididas em Katowice. Para aderir ao Acordo de Paris,
os países necessariamente precisaram apresentar uma NDC, válida até
2025 ou 2030. Essas NDCs já apresentadas foram elaboradas sem termo
de referência nem critérios mínimos que permitam comparabilidade
entre as contribuições. Por exemplo, algumas contribuições vieram
na forma de meta de redução de emissões absoluta em relação à
toda a economia do país, enquanto outras vieram na forma de ações
específicas que o país vai adotar em relação a determinados
setores carbono-intensivos. Na próxima rodada de apresentação da
NDC progressiva, este problema deverá ser superado ou será inviável
mensurar o progresso das NDCs ou o desempenho coletivo no âmbito
do global stocktake. Também aqui as negociações
travaram na velha discussão sobre o princípio das
responsabilidades comuns porém diferenciadas: os países em
desenvolvimento querem tratamento diferenciado na obrigação de
submeter uma NDC e no tipo e conteúdo das contribuições.
Com todas essas
pendências e dificuldades, contudo, a UNFCCC sempre surpreende pela
capacidade de entregar algum resultado, mesmo que seja um plano de
ações ainda dependente de novas rodadas de negociação. Foi assim
em Paris: até o último dia as negociações estavam tensas e
desesperançadas, com muitos pontos de divergência cruciais ainda
pendentes e parecendo insuperáveis. No final, ficam as decisões
sobre os temas realmente difíceis, e estas são tomadas pelos altos
níveis de governo, mediante trocas e barganhas, tudo no intuito de
garantir a continuidade do processo multilateral internacional de
cooperação para o combate às mudanças do clima. Os dados
alarmantes do novo relatório do IPCC sobre o cenário de aquecimento
global acima de 1,5°C podem reforçar a vontade política dos chefes
de Estado para decisões um pouco mais robustas em Katowice. Ainda
assim, se esse processo vai conseguir entregar em termos de
efetividade na redução dos efeitos do clima, vai depender do que
acontecer fora do Acordo de Paris, nas ações concretas adotadas
domesticamente pelos governos nacionais, regionais, subnacionais, no
engajamento dos mercados e da sociedade civil, para implementação
das NDCs. O objetivo das negociações diplomáticas da UNFCCC cada
vez mais é garantir que “a peteca não vai cair”; o resto é com
a gente.
*Caroline
Prolo é advogada, chefe do departamento de direito
ambiental do escritório Stocche Forbes, consultora do International
Institute for Environment and Development (IIED) e advogada do grupo
dos países menos desenvolvidos nas negociações de mudanças
climáticas da ONU.
Fonte: ENVOLVERDE
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