O incerto destino da conversão de multas ambientais.
A institucionalização de regras
consistentes para disciplinar a conversão de multas em serviços
ambientais foi com certeza um dos maiores avanços na política
ambiental nos últimos anos. Prevista desde 1998 em um parágrafo da
Lei de Crimes Ambientais (LCA), a conversão de multas foi aplicada
esparsamente pelo Ibama, sem uma base normativa sólida, até 2012. A
autarquia decidiu então pela suspensão da aplicação da ferramenta
devido à ausência de critérios quanto aos serviços a serem
abrangidos e pela dificuldade de monitoramento de projetos pequenos
espalhados pelo país. Assim que Sarney Filho assumiu em 2016 o
Ministério do Meio Ambiente (MMA) pela segunda vez, houve decisão
de se retomar o debate do tema, em busca de uma nova conformação
para a conversão de multas. Esse esforço levou à edição do
Decreto nº 9.179 em outubro de 2017, que alterou o regulamento da
LCA.
O novo quadro normativo trouxe como
principal aperfeiçoamento a previsão da conversão indireta de
multas. A ideia nessa modalidade é viabilizar que recursos de vários
autuados possam ser direcionados a um mesmo projeto, potencializando
a realização de serviços ambientais estruturantes, com escala
significativa, que possam reverter a situação de degradação
ambiental de regiões importantes, ou efetivamente contribuir para
alterar situações críticas da política ambiental. A conversão
direta de multas, com serviços prestados diretamente pelo autuado,
foi mantida, mas o decreto assume a prioridade para a modalidade
indireta, quando prevê um desconto maior para quem adere a esta. Na
complementação do decreto mediante normativos internos, o Ibama
acresceu exigências técnicas e estabeleceu que um programa com
periodicidade bienal definirá diretrizes técnicas e locacionais
tanto para a conversão indireta quanto para a direta, a partir de
subsídios dados por Câmara Consultiva Nacional que conta com
participação de representantes de órgãos públicos, de setores
produtivos e da sociedade civil.
A aplicação desse quadro normativo
gerou importante chamamento público para seleção de projetos no
âmbito da conversão indireta, com apoio em dois eixos. O primeiro
visa a recuperação de matas ciliares, nascentes e áreas de recarga
de aquífero em dez sub-bacias que contribuem com mais de 70% da
vazão hídrica do Velho Chico: Carinhanha (MG/BA), Urucuia,
Paracatu, Abaeté, Indaiá, Alto São Francisco, Pará, Paraopeba,
das Velhas e Jequitaí, no território de Minas Gerais. O segundo
prevê beneficiar cerca de 5 mil famílias de baixa renda em áreas
rurais no médio e baixo Parnaíba, com serviços voltados à
implantação de tecnologias sociais de captação, armazenamento e
gestão de água, unidades de produção agroecológica e práticas
de recuperação e conservação de solo, água e biodiversidade,
entre outras ações socioambientais.
O primeiro chamamento público
selecionou 34 projetos desenvolvidos por associações sem fins
lucrativos, e se encontra nos trâmites finais. Não se incluíram
projetos de órgãos públicos nesse chamamento porque ainda está
sendo discutida a maneira de repassar esses recursos para entes
públicos se não há previsão orçamentária. Até dezembro de
2018, as manifestações formais de interesse dos autuados pela
conversão agregavam R$ 2,8 bilhões em multas. Com o desconto de
60%, a autarquia já tem R$ 1,1 bilhão disponíveis, o que é
suficiente para todos esses projetos. Esse dinheiro, de natureza
privada, não é internalizado de forma alguma no caixa do Ibama ou
da União, sai do autuado diretamente para conta garantidora de cada
projeto que será administrada pela Caixa Econômica Federal. Apenas
com os recursos da fase inicial, a conversão tem potencial de
aplicar montantes maiores do que os que foram investidos em
recuperação florestal em toda a existência do programa de
revitalização do São Francisco. O potencial da conversão vai
muito além disso, pois o Ibama possui grande passivo de multas não
pagas.
Matéria da Folha de São Paulo do
dia 26 de fevereiro traz notícia de mudanças estruturais na
conversão de multas em serviços ambientais. Minuta de decreto
preparada pelo MMA revoga os dispositivos que dispõem sobre a
conversão indireta de multas. Provavelmente, a proposta vem da
notória rejeição do governo atual a parcerias com a sociedade
civil. Se resta alguma dúvida sobre o que ocorrerá com o primeiro e
o segundo chamamento público do Ibama atualmente em curso, parece
certo que se implodirá o planejamento bienal da conversão aprovado
pelo Ibama para o biênio 2019/2020.
Se isso se confirmar, perdem o meio
ambiente e o Brasil, que deixará de ter recursos para ações
ambientais estruturantes, que jamais serão realizadas com o restrito
orçamento do governo. Nunca houve instrumento com tamanho poder de
alavancar recursos para ações de proteção e recuperação
ambiental. A opção pela conversão direta implica uma pulverização
de atuação de gerenciamento bastante complicado. Por outro lado, a
opção por afastar parcerias com organizações sem fins lucrativos
implica trazer para o colo do Estado demandas que ele não conseguirá
atender. Esperamos realmente que o bom senso prevaleça e que não se
alterem as regras que regulam a conversão de multas em serviços
ambientais.
*[1]
Suely Araújo, Urbanista e advogada, doutora em ciência política,
presidente do Ibama no governo Michel Temer (2016-2018).
*[2]
Fabio Feldmann , Ambientalista e advogado, foi deputado federal
constituinte, deputado federal por três mandatos (1986-1998) e
secretário de meio ambiente do Estado de São Paulo.
Fonte:
ENVOLVERDE
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