sábado, 23 de março de 2019


Água: os custos econômicos e sociais do desperdício.


por Dal Marcondes, especial para a Envolverde

Quando a colônia brasileira começou a ser ocupada em 1500, e os europeus começaram a fundar cidades, pequenas fontes de água bastavam para abastecer uns poucos cidadãos e animais. Ficar perto de grandes rios não era parte dos planos de José de Anchieta e Manoel da Nóbrega. O Colégio dos Jesuí-tas fincou pé num outeiro, lugar apropriado para se defender dos possíveis ataques de índios, mas com muito pouca água. Contudo, dessa vila nasceu São Paulo, metrópole de quase 20 milhões de habitantes que precisam de cerca de 80 litros de água tratada por pessoa, ao dia, para suas necessidades domésticas. Um volume que já não consegue mais ser atendido pelos mananciais próximos, que, pelos critérios da ONU, têm sete vezes menos a capacidade necessária à população que atendem. É preciso ir buscar o líquido cada vez mais longe e tratar águas cada vez mais poluídas, a fim de torná-las próprias para o consumo.

Um levantamento recém-divulgado pela Agência Nacional de Água (ANA) aponta que o problema do abastecimento é generalizado pelo País. Dos 5.565 municípios brasileiros, mais da metade terão problemas de abastecimento até 2015. E para tentar adiar o problema por ao menos uma década será preciso desembolsar 22 bilhões de reais em obras de infraestrutura, construção de sistemas de distribuição, novas estações de tratamento e manutenção de redes muito antigas, que perdem mais de 30% da água tratada antes de chegar à casa dos clientes. E nesse valor não estão incluídos os recursos necessários para resolver o problema do saneamento básico, com a construção de sistemas de coleta de esgoto e estações de tratamento, de forma a proteger os mananciais onde se faz a captação para consumo humano. Para isso, segundo a ANA, serão necessários outros 47,8 bilhões de reais.

Os investimentos não são necessários apenas porque 13% dos brasileiros não têm um banheiro em casa, ou porque mais de 700 mil pessoas entopem os serviços de saúde a cada ano em virtude de doenças provocadas pelo contato com água contaminada por esgotos, ou ainda porque sete crianças morrem por dia vítimas de diarreia, engrossando a estatística de mortes por problemas gastrointestinais (em 2009, elas somaram 2.101 casos). Acredita-se que mais da metade poderiam ter retornado com saúde para suas famílias, ou mesmo nem ter ficado doentes, caso o Brasil estivesse entre as nações que oferecem saneamento básico universal à população.

Para tornar a situação ainda mais dramática, um pesquisador da Universidade do México, Christopher Eppig, concluiu: crianças que enfrentam doenças, principalmente ligadas a diarreia e desidratação, podem ser afetadas em seu desenvolvimento intelectual. Segundo ele, a explicação é simples. Alguns parasitas alimentam-se de partes do corpo humano e a reposição desse dano tem alto custo energético. 

“Em um recém-nascido, 87% das calorias absorvidas na alimentação vão para o cérebro, porcentagem que cai para 23% na fase adulta. Daí a preocupação em se saber se doenças que “roubam” energia das crianças podem afetar seu desenvolvimento intelectual.”

Especialistas apontam que a questão da água, ao menos no caso brasileiro, está mais ligada a problemas relacionados à gestão do que à escassez propriamente dita. Com 12% da água doce superficial do planeta, grande parte dela na Bacia Amazônica, o País deveria estar tranquilo em relação ao futuro do abastecimento. Mas a distribuição da água pelo território é desigual, principalmente quando comparada à concentração da população. A Região Norte tem 68% da água e apenas 7% da população. O Nordeste e o Sudeste concentram 72% dos habitantes e menos de 10% da água. O cientista José Galizia Tundisi, autor do livro “Água no Século XXI” e especialista nas dinâmicas de rios, lagos e outros mananciais, acredita que uma das primeiras providências a serem tomadas para melhorar a gestão dos recursos hídricos é “realizar a avaliação econômica dos serviços prestados pelos recursos dos ecossistemas aquáticos”. Para ele, instituir um valor para esses serviços é a base para uma governança adequada, essencial para o controle de clima, o abastecimento e a produção de energia e alimentos, entre outras atividades humanas.

Muitas empresas compreenderam o desafio e estão adiantadas na gestão dos usos de água em seus processos produtivos. A indústria de celulose, por exemplo, reduziu em quase 50% suas necessidades de água por tonelada de produto desde a década de 1970. Segundo a associação do setor, a média era de 100 metros cúbicos de água por tonelada de celulose e caiu para apenas 47 metros cúbicos atualmente. Outros setores seguiram a mesma linha, não apenas ao reduzir a quantidade de água necessária por unidade de produto, mas ao implantar sistemas de tratamento de águas industriais que permitem fechar o ciclo entre o uso e o reúso, como é o caso da germânica Basf em suas unidades do ABC Paulista e Guaratinguetá. Nos últimos dez anos, a companhia conseguiu reduzir em 78% o consumo de água por tonelada produzida e em 62% a geração de efluentes de seus processos industriais. São exemplos que poderiam ser difundidos por diferentes setores, pois a água é um insumo fundamental à agricultura e à indústria. Sua gestão não tem relação apenas com o bem-estar da população, mas com a saúde da economia.
Quase tudo que é produzido no País tem sua cota de água embutida. Os especialistas denominam de “água virtual”. Como exemplo, para se produzir 1 quilo de arroz são necessários 3 mil litros de água, e 1 quilo de carne bovina precisa de 15,5 mil litros. Uma simples xícara de café não gasta menos do que 140 litros de água. Não é que essa água desapareça depois de servido o cafezinho, mas para se chegar aos produtos tão necessários nas mesas das pessoas é preciso que ela esteja não apenas disponível, mas limpa, isenta de contaminações por esgotos ou produtos químicos. E há mais. Para um automóvel chegar à garagem dos brasileiros, o consumo de recursos hídricos chega a 150 mil litros. Ou seja, a economia precisa, e muito, de água de boa qualidade. Isso sem mencionar o fato de que 18% das faltas de trabalhadores ao serviço poderiam ser evitadas com uma gestão mais eficaz dos recursos hídricos.

O estudo lançado pela ANA é um primeiro passo para um importante debate sobre como o estresse hídrico dos mananciais afeta o abastecimento das principais regiões metropolitanas e piora a situação da água em todos os municípios brasileiros. Para ela, é necessário encarar o fato de que a segurança no abastecimento de água é estratégica e que o recurso é escasso. “Precisamos investir na infraestrutura, mas também mudar a forma de usar esse recurso e coibir os desperdícios”, disse na terça-feira 22, escolhido para ser o Dia Mundial da Água. Segundo a ministra, os investimentos necessários para minimizar os problemas com água, estimados pela ANA em 22 bilhões de reais, já estão sendo feitos em diversas esferas de governo, nas obras do PAC, do governo federal, e por estados e municípios. Ela lembra, porém, que existem fatores que dependem de mudanças de comportamento da sociedade.

A questão da gestão dos recursos hídricos passou por uma grande transformação no Brasil no fim do século passado, quando as empresas estaduais de água e saneamento perderam o monopólio do mercado. Muitas foram municipalizadas e outras privatizadas, além de terem continuado a existir companhias estaduais, como o caso da Sabesp, em São Paulo, uma referência para o setor. A Sabesp é a única empresa de saneamento a fazer parte do Índice Dow Jones Sustainability, e do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE) da BM&F-Bovespa, a Bolsa de Valores de São Paulo. Mas o período de mudanças no País não foi tranquilo nem a gestão privada se mostrou um bom negócio em todos os casos. A cidade de Manaus, por exemplo, foi a primeira capital a privatizar os serviços. O abastecimento não deveria, aliás, ser problema para um município que tem quase 10% da água doce do planeta a escorrer à sua porta pelos rios Negro, Solimões e Amazonas. Mas não é bem assim. Em 2000, a gestão foi transferida para a francesa Suez, a mesma que, por sua administração desastrada, quase provocou um golpe de Estado na Bolívia.
Para os franceses, parecia fácil. Havia muita água disponível e uma população de quase 2 milhões de habitantes que deveria pagar por ela. Tradicionalmente, o serviço público de água da cidade era muito ruim, portanto, “bastaria oferecer um bom serviço” para a conta fechar. Ledo engano. Como o serviço público nunca funcionou, a elite urbana da cidade nunca dependeu dele. A maior parte das casas e condomínios abastados tem seu abastecimento garantido por poços artesianos, um serviço que, depois de implementado, é de graça, sem conta mensal. A empresa francesa ficou apenas com a gestão do consumo da população pobre e com a obrigação de recolher o esgoto da cidade, pelo qual também não se pagava, uma vez que a taxa de esgoto está embutida na conta de água. Em 2007, a Suez saiu da sociedade com o grupo brasileiro Solvi e a Águas do Amazonas continua privatizada, mas agora sob a gestão de um grupo nacional que teve de renegociar as condições do contrato de concessão com a prefeitura.

O esgoto não tratado tem impacto sobre outro setor estratégico da economia, o turismo. 

Principalmente no Nordeste, a presença de “línguas negras” a cruzar praias que deveriam ser refúgios ambientais assusta os operadores turísticos e preocupa o setor hoteleiro. Mas mesmo regiões do “Sul Maravilha”, como Santa Catarina, muito buscada por turistas sul-americanos, padece da falta de infraestrutura. Florianópolis tem apenas 67% de acesso à rede de esgotos, enquanto o badalado município de Canavieiras tem pouco mais de 40% do esgoto coletado. As duas cidades têm as melhores redes estaduais. A quinta colocada não chega a tratar 3% dos dejetos.

Um dos indicadores fundamentais de desenvolvimento é o acesso à água de boa qualidade e a coleta e tratamento universal de esgotos, setores em que o País ainda tem muito a caminhar. Dados de 2007 do IBGE mostravam que 90% dos domicílios têm acesso a redes de água tratada. Na área rural, o número não passa de 50%, enquanto no caso da coleta e tratamento de esgotos os dados são completamente díspares. Vão de 40% a 77% de esgotos coletados. Mas apenas 36% passam efetivamente por uma estação de tratamento antes de serem devolvidos aos cursos d”água.

Colaborou Naná Prado

Dal Marcondes é jornalista, diretor da Envolverde, recebeu por duas vezes o Prêmio Ethos de Jornalismo e é reconhecido como um “Jornalista Amigo da Infância” pela agência ANDI.

Fonte: ENVOLVERDE

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