Água: os custos econômicos e sociais do desperdício.
por Dal Marcondes, especial
para a Envolverde
Quando a colônia brasileira começou
a ser ocupada em 1500, e os europeus começaram a fundar cidades,
pequenas fontes de água bastavam para abastecer uns poucos cidadãos
e animais. Ficar perto de grandes rios não era parte dos planos de
José de Anchieta e Manoel da Nóbrega. O Colégio dos Jesuí-tas
fincou pé num outeiro, lugar apropriado para se defender dos
possíveis ataques de índios, mas com muito pouca água. Contudo,
dessa vila nasceu São Paulo, metrópole de quase 20 milhões de
habitantes que precisam de cerca de 80 litros de água tratada por
pessoa, ao dia, para suas necessidades domésticas. Um volume que já
não consegue mais ser atendido pelos mananciais próximos, que,
pelos critérios da ONU, têm sete vezes menos a capacidade
necessária à população que atendem. É preciso ir buscar o
líquido cada vez mais longe e tratar águas cada vez mais poluídas,
a fim de torná-las próprias para o consumo.
Um levantamento recém-divulgado
pela Agência Nacional de Água (ANA) aponta
que o problema do abastecimento é generalizado pelo País. Dos 5.565
municípios brasileiros, mais da metade terão problemas de
abastecimento até 2015. E para tentar adiar o problema por ao menos
uma década será preciso desembolsar 22 bilhões de reais em obras
de infraestrutura, construção de sistemas de distribuição, novas
estações de tratamento e manutenção de redes muito antigas, que
perdem mais de 30% da água tratada antes de chegar à casa dos
clientes. E nesse valor não estão incluídos os recursos
necessários para resolver o problema do saneamento básico, com a
construção de sistemas de coleta de esgoto e estações de
tratamento, de forma a proteger os mananciais onde se faz a captação
para consumo humano. Para isso, segundo a ANA,
serão necessários outros 47,8 bilhões de reais.
Os investimentos não são
necessários apenas porque 13% dos brasileiros não têm um banheiro
em casa, ou porque mais de 700 mil pessoas entopem os serviços de
saúde a cada ano em virtude de doenças provocadas pelo contato com
água contaminada por esgotos, ou ainda porque sete crianças morrem
por dia vítimas de diarreia, engrossando a estatística de mortes
por problemas gastrointestinais (em 2009, elas somaram 2.101 casos).
Acredita-se que mais da metade poderiam ter retornado com saúde para
suas famílias, ou mesmo nem ter ficado doentes, caso o Brasil
estivesse entre as nações que oferecem saneamento básico universal
à população.
Para tornar a situação ainda mais
dramática, um pesquisador da Universidade do México, Christopher
Eppig, concluiu: crianças que enfrentam doenças, principalmente
ligadas a diarreia e desidratação, podem ser afetadas em seu
desenvolvimento intelectual. Segundo ele, a explicação é simples.
Alguns parasitas alimentam-se de partes do corpo humano e a reposição
desse dano tem alto custo energético.
“Em um recém-nascido, 87%
das calorias absorvidas na alimentação vão para o cérebro,
porcentagem que cai para 23% na fase adulta. Daí a preocupação em
se saber se doenças que “roubam” energia das crianças podem
afetar seu desenvolvimento intelectual.”
Especialistas apontam que a questão
da água, ao menos no caso brasileiro, está mais ligada a problemas
relacionados à gestão do que à escassez propriamente dita. Com 12%
da água doce superficial do planeta, grande parte dela na Bacia
Amazônica, o País deveria estar tranquilo em relação ao futuro do
abastecimento. Mas a distribuição da água pelo território é
desigual, principalmente quando comparada à concentração da
população. A Região Norte tem 68% da água e apenas 7% da
população. O Nordeste e o Sudeste concentram 72% dos habitantes e
menos de 10% da água. O cientista José Galizia Tundisi, autor do
livro “Água no Século XXI” e especialista nas dinâmicas de
rios, lagos e outros mananciais, acredita que uma das primeiras
providências a serem tomadas para melhorar a gestão dos recursos
hídricos é “realizar a avaliação econômica dos serviços
prestados pelos recursos dos ecossistemas aquáticos”. Para ele,
instituir um valor para esses serviços é a base para uma governança
adequada, essencial para o controle de clima, o abastecimento e a
produção de energia e alimentos, entre outras atividades humanas.
Muitas empresas compreenderam o
desafio e estão adiantadas na gestão dos usos de água em seus
processos produtivos. A indústria de celulose, por exemplo, reduziu
em quase 50% suas necessidades de água por tonelada de produto desde
a década de 1970. Segundo a associação do setor, a média era de
100 metros cúbicos de água por tonelada de celulose e caiu para
apenas 47 metros cúbicos atualmente. Outros setores seguiram a mesma
linha, não apenas ao reduzir a quantidade de água necessária por
unidade de produto, mas ao implantar sistemas de tratamento de águas
industriais que permitem fechar o ciclo entre o uso e o reúso, como
é o caso da germânica Basf em suas unidades do ABC Paulista e
Guaratinguetá. Nos últimos dez anos, a companhia conseguiu reduzir
em 78% o consumo de água por tonelada produzida e em 62% a geração
de efluentes de seus processos industriais. São exemplos que
poderiam ser difundidos por diferentes setores, pois a água é um
insumo fundamental à agricultura e à indústria. Sua gestão não
tem relação apenas com o bem-estar da população, mas com a saúde
da economia.
Quase tudo que é produzido no País
tem sua cota de água embutida. Os especialistas denominam de “água
virtual”. Como exemplo, para se produzir 1 quilo de arroz são
necessários 3 mil litros de água, e 1 quilo de carne bovina precisa
de 15,5 mil litros. Uma simples xícara de café não gasta menos do
que 140 litros de água. Não é que essa água desapareça depois de
servido o cafezinho, mas para se chegar aos produtos tão necessários
nas mesas das pessoas é preciso que ela esteja não apenas
disponível, mas limpa, isenta de contaminações por esgotos ou
produtos químicos. E há mais. Para um automóvel chegar à garagem
dos brasileiros, o consumo de recursos hídricos chega a 150 mil
litros. Ou seja, a economia precisa, e muito, de água de boa
qualidade. Isso sem mencionar o fato de que 18% das faltas de
trabalhadores ao serviço poderiam ser evitadas com uma gestão mais
eficaz dos recursos hídricos.
O estudo lançado pela ANA é
um primeiro passo para um importante debate sobre como o estresse
hídrico dos mananciais afeta o abastecimento das principais regiões
metropolitanas e piora a situação da água em todos os municípios
brasileiros. Para ela, é necessário encarar o fato de que a
segurança no abastecimento de água é estratégica e que o recurso
é escasso. “Precisamos investir na infraestrutura, mas também
mudar a forma de usar esse recurso e coibir os desperdícios”,
disse na terça-feira 22, escolhido para ser o Dia Mundial da Água.
Segundo a ministra, os investimentos necessários para minimizar os
problemas com água, estimados pela ANA em 22
bilhões de reais, já estão sendo feitos em diversas esferas de
governo, nas obras do PAC, do governo federal, e por estados e
municípios. Ela lembra, porém, que existem fatores que dependem de
mudanças de comportamento da sociedade.
A questão da gestão dos recursos
hídricos passou por uma grande transformação no Brasil no fim do
século passado, quando as empresas estaduais de água e saneamento
perderam o monopólio do mercado. Muitas foram municipalizadas e
outras privatizadas, além de terem continuado a existir companhias
estaduais, como o caso da Sabesp, em São Paulo, uma referência para
o setor. A Sabesp é a única empresa de saneamento a fazer parte do
Índice Dow Jones Sustainability, e do Índice de Sustentabilidade
Empresarial (ISE) da BM&F-Bovespa, a Bolsa de Valores de São
Paulo. Mas o período de mudanças no País não foi tranquilo nem a
gestão privada se mostrou um bom negócio em todos os casos. A
cidade de Manaus, por exemplo, foi a primeira capital a privatizar os
serviços. O abastecimento não deveria, aliás, ser problema para um
município que tem quase 10% da água doce do planeta a escorrer à
sua porta pelos rios Negro, Solimões e Amazonas. Mas não é bem
assim. Em 2000, a gestão foi transferida para a francesa Suez, a
mesma que, por sua administração desastrada, quase provocou um
golpe de Estado na Bolívia.
Para os franceses, parecia fácil.
Havia muita água disponível e uma população de quase 2 milhões
de habitantes que deveria pagar por ela. Tradicionalmente, o serviço
público de água da cidade era muito ruim, portanto, “bastaria
oferecer um bom serviço” para a conta fechar. Ledo engano. Como o
serviço público nunca funcionou, a elite urbana da cidade nunca
dependeu dele. A maior parte das casas e condomínios abastados tem
seu abastecimento garantido por poços artesianos, um serviço que,
depois de implementado, é de graça, sem conta mensal. A empresa
francesa ficou apenas com a gestão do consumo da população pobre e
com a obrigação de recolher o esgoto da cidade, pelo qual também
não se pagava, uma vez que a taxa de esgoto está embutida na conta
de água. Em 2007, a Suez saiu da sociedade com o grupo brasileiro
Solvi e a Águas do Amazonas continua privatizada, mas agora sob a
gestão de um grupo nacional que teve de renegociar as condições do
contrato de concessão com a prefeitura.
O esgoto não tratado tem impacto
sobre outro setor estratégico da economia, o turismo.
Principalmente
no Nordeste, a presença de “línguas negras” a cruzar praias que
deveriam ser refúgios ambientais assusta os operadores turísticos e
preocupa o setor hoteleiro. Mas mesmo regiões do “Sul Maravilha”,
como Santa Catarina, muito buscada por turistas sul-americanos,
padece da falta de infraestrutura. Florianópolis tem apenas 67% de
acesso à rede de esgotos, enquanto o badalado município de
Canavieiras tem pouco mais de 40% do esgoto coletado. As duas cidades
têm as melhores redes estaduais. A quinta colocada não chega a
tratar 3% dos dejetos.
Um dos indicadores fundamentais de
desenvolvimento é o acesso à água de boa qualidade e a coleta e
tratamento universal de esgotos, setores em que o País ainda tem
muito a caminhar. Dados de 2007 do IBGE mostravam que 90% dos
domicílios têm acesso a redes de água tratada. Na área rural, o
número não passa de 50%, enquanto no caso da coleta e tratamento de
esgotos os dados são completamente díspares. Vão de 40% a 77% de
esgotos coletados. Mas apenas 36% passam efetivamente por uma estação
de tratamento antes de serem devolvidos aos cursos dӇgua.
Colaborou Naná Prado
Dal Marcondes é jornalista,
diretor da Envolverde, recebeu por duas vezes o Prêmio Ethos de
Jornalismo e é reconhecido como um “Jornalista Amigo da Infância”
pela agência ANDI.
Fonte: ENVOLVERDE
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