Sem um ‘choque de gestão’ e ‘uma ação conjunta entre entes públicos e privados’ será impossível eliminar o desmatamento ilegal.
Sem choque de gestão é impossível eliminar o desmatamento ilegal. Entrevista especial com Ana Paula Valdiones
IHU
Sem um “choque de gestão” e
“uma ação conjunta entre entes públicos e privados” será
impossível eliminar o desmatamento ilegal em Mato Grosso, meta que
deveria ser cumprida até 2020 segundo o acordo firmado na COP-21,
adverte Ana Paula Valdiones, analista de Gestão
Ambiental do Instituto Centro de Vida, na entrevista
a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.
Segundo ela, o aumento do
desmatamento no estado entre 2014 e 2017 evidencia que “as ações
que estão sendo realizadas até o momento para conter o desmatamento
não estão sendo suficientes”. Ela informa que, do total
de vegetação derrubada em 2017, “98% não detinha autorização
do órgão ambiental estadual para desmatar” e que “46% da área
do Cerrado desmatada estava coberta por pastagem, 44% por agricultura
e 10% é um mosaico de agricultura e pastagem”.
Para reforçar o quadro de
desmatamento, afirma, “o governo do estado
sancionou uma lei (Lei Estadual nº 10.713/2018) que
permite novos desmatamentos na Área de
Proteção Ambiental das Cabeceiras do Rio Cuiabá”.
Embora a legislação esteja suspensa pelo Ministério
Público, essa é mais uma medida que dificulta o alcance
das metas assumidas na COP-21 e é uma sinalização positiva para
aqueles que desmataram ilegalmente. “Essa medida também diminui o
grau de proteção de uma das poucas Unidades de Conservação
– UC de Mato Grosso no Cerrado. As Ucs
no estado protegem apenas 6% da área original do bioma
Cerrado. Excetuando-se as Áreas de Proteção
Ambiental – APA, categoria que conta com menor proteção
e permite na maioria das unidades a exploração agropecuária, Mato
Grosso possui menos de 2% do Cerrado protegido por Unidades
de Conservação”, pontua.
Na avaliação de Ana Paula,
o desmatamento ilegal em Mato Grosso é
facilitado pela não implementação de acordos como a moratória da
soja e os TACs da pecuária no estado. “Os acordos de cadeias para
combater o desmatamento como a moratória da soja e
os TACs da pecuária ainda não abrangem o bioma Cerrado, e se mantêm
olhando exclusivamente para Amazônia. (…) É necessário que
outras bases de dados chaves, como a Guia de Trânsito
Animal, que registra a movimentação comercial do gado
entre fazendas, também sejam disponibilizadas na íntegra para
possibilitar o monitoramento de toda a cadeia, por meio do cruzamento
entre diferentes bases de dados”.
Ana Paula Valdiones é
graduada em Gestão Ambiental pela Universidade de São Paulo – USP
e mestra em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Mudança
Social e Participação Política da USP. Atualmente, é analista de
Gestão Ambiental do Instituto Centro de Vida.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Segundo
monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – Inpe,
entre agosto de 2016 e julho de 2017, o desmatamento no Cerrado foi
de 7,4 mil km². E entre 2014 e 2017, o desmatamento subiu 24%
somente em Mato Grosso. Qual é o significado do aumento do
desmatamento na região, considerando a atual situação do Cerrado?
Ana Paula Valdiones –
Nossa análise foi apenas de Mato Grosso e a comparação
com o bioma Cerrado como um todo, que envolve 11 estados e o DF.
Mas não analisamos a dinâmica de desmate nos outros estados
individualmente. Assim, sabemos que em Mato Grosso o
desmatamento aumentou entre 2014 e 2017, enquanto o desmatamento
total no bioma diminuiu nesse mesmo período. O aumento no estado
demonstra que as ações que estão sendo realizadas até o momento
para conter o desmatamento não estão sendo
suficientes. Os órgãos ambientais responsáveis pelo combate ao
desmatamento não estão conseguindo ser efetivos na dissuasão da
derrubada ilegal da vegetaçãonatural, bem como os
mercados ainda não estão cumprindo seus compromissos de eliminar o
desmatamento de sua cadeia de fornecimento (notadamente soja e
pecuária) evitando compras de produtos oriundos do desmatamento
ilegal que ameaça esse bioma.
IHU On-Line – Como você
avalia, de outro lado, a contestação desses dados do desmatamento
pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso –
Sema-MT, segundo a qual o desmatamento foi de 7,9% entre 2014 e 2017?
90% desse desmatamento recente se
concentrou majoritariamente em grandes e médios imóveis rurais
cadastrados no CAR – Ana Paula Valdiones.
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Ana Paula Valdiones –
Estamos nos referindo a duas informações que são
“medidas” de formas diferentes. O Inpe, que é o
órgão federal responsável, dentre outras atribuições, pelo
monitoramento do desmatamento nos diferentes biomas,
tem uma metodologia diferente daquela empregada pela Sema.
Seria interessante que o próprio órgão ambiental estadual, que é
o responsável pela metodologia e pela produção da informação,
explicitasse as divergências metodológicas ao contestar os dados
federais, deixando mais claras as limitações e pontos fortes de
cada metodologia.
IHU On-Line – Em que
regiões de Mato Grosso o desmatamento do Cerrado é maior?
Ana Paula Valdiones –
Assim como na Amazônia mato-grossense, o desmatamento no
Cerrado também está bastante concentrado. 53% de todo o
desmatamento de 2017 se concentrou em 10 municípios,
dentre eles Nova Nazaré, Ribeirão
Cascalheira e Cocalinho.
IHU On-Line – Quais são
as implicações do desmatamento para o Cerrado como um todo?
Ana Paula Valdiones – O
Cerrado é o segundo maior bioma do país e o mais
rico em biodiversidade. O bioma presta serviços diversos à
sociedade, como a manutenção da quantidade e qualidade de água,
regulação do clima, conservação da biodiversidade e oferta de
alimentos. Além disso, dele dependem diversas populações
tradicionais, que compõem o patrimônio histórico e
cultural brasileiro. Contudo esse desmatamento ameaça a continuidade
da prestação desses serviços ecossistêmicos, inclusive aqueles
essenciais ao agronegócio, que reduzem as
possibilidades de quebras de safras, como a provisão de água e
regulação climática, e coloca em risco a subsistência dos povos e
comunidades tradicionais e tem impactos irreversíveis sobre a
biodiversidade.
IHU On-Line – O
levantamento do Instituto Centro de Vida – ICV também aponta que
46% do Cerrado foi convertido em outros usos. Quais são eles?
Ana Paula Valdiones –
Segundo os dados do Mapbiomas, em 2017, 46% da área do
Cerrado desmatada estava coberta por pastagem, 44%
por agricultura e 10% é um mosaico de agricultura e pastagem.
IHU On-Line – Que fatores
têm contribuído para o desmatamento do Cerrado e para a conversão
do bioma em outros usos? Há um incentivo para a expansão do
agronegócio no estado? Isso tem um impacto no Cerrado?
Ana Paula Valdiones – As
ações de desincentivo (dissuasão) do desmatamento ilegal
ainda são insuficientes. Do total de vegetação derrubada
em 2017, 98% não detinha autorização do órgão ambiental estadual
para desmatar. A capacidade de fiscalização do estado ainda é
limitada perante o desafio de combater o desmatamento ilegal. É
necessário implementar ferramentas mais eficientes e ampliar a
transparência de informações fundamentais para o controle
ambiental, possibilitando que toda a sociedade possa contribuir para
o monitoramento e combate ao desmatamento. Um passo
importante foi dado nesse sentido semana passada (19/09), com o
lançamento do Portal da Transparência da Sema.
Bioma Cerrado (Foto: Todo
Estudo)
Além disso, incentivos econômicos
para se conservar a floresta em pé ainda não foram implementados.
Aqueles produtores com áreas de vegetação superior ao exigido pela
lei não têm hoje mecanismos financeiros que tornem
atrativa a manutenção dessas áreas com vegetação excedente.
IHU On-Line – O estado de
Mato Grosso se comprometeu em eliminar o desmatamento ilegal até
2020 para atender as metas da COP-21. Qual é a possibilidade de essa
meta se concretizar?
Os acordos de cadeias para combater
o desmatamento como a moratória da soja e os TACs da pecuária ainda
não abrangem o bioma Cerrado, e se mantêm olhando exclusivamente
para Amazônia – Ana Paula Valdiones
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Ana Paula Valdiones – A
não ser que ocorra um choque de gestão e uma ação conjunta entre
entes públicos e privados, infelizmente será muito difícil atingir
essa meta no prazo. A ilegalidade na abertura de novas áreas é
muito alta. Em 2017, 98% de tudo que foi aberto no Cerrado e
89% do total desmatado na Amazônia foi ilegal.
IHU On-Line – Recentemente
você mencionou que dois decretos não favoreceram a proteção das
Áreas de Proteção Ambiental – APA do Rio Cuiabá e das planícies
do Guaporé e do Araguaia. Pode nos dar algumas informações sobre
que decretos são esses e quais suas finalidades?
Ana Paula Valdiones –
Recentemente o governo do estado sancionou uma lei (Lei
Estadual nº 10.713/2018) que permite novos
desmatamentos na Área de Proteção Ambiental das Cabeceiras do Rio
Cuiabá. A medida, que está suspensa pelo Ministério
Público, significa um retrocesso em relação aos
compromissos firmados na COP-21. Além de ser uma
sinalização positiva para novos desmatamentos e um afrouxamento
para aqueles que já desmataram ilegalmente, essa medida também
diminui o grau de proteção de uma das poucas Unidades de
Conservação – UC de Mato Grosso no Cerrado. As
UCs no estado protegem apenas 6% da área original do bioma
Cerrado.
Excetuando-se as Áreas de Proteção
Ambiental – APA, categoria que conta com menor proteção
e permite na maioria das unidades a exploração agropecuária, Mato
Grosso possui menos de 2% do Cerrado protegido
por Unidades de Conservação.
Outro decreto publicado há poucos
dias (Decreto Estadual 1.647/2018) retira o uso restrito em regiões
do Vale do Araguaia e do Guaporé, que até então tinham restrições
semelhantes às áreas do Pantanal. Essa é novamente uma redução
na proteção de ecossistemas frágeis.
IHU On-Line – Qual é a
situação ambiental das Áreas de Proteção Ambiental do Rio Cuiabá
e das planícies do Guaporé e do Araguaia?
40% da APA Cabeceiras do Rio Cuiabá
já foi desmatada; 1/3 disso ocorreu após a criação da Unidade de
Conservação, ilegalmente – Ana Paula Valdiones
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Ana Paula Valdiones – APA
Cabeceiras do Rio Cuiabá foi criada em 1999 e cobre uma
área de aproximadamente 462 mil hectares. Localiza-se numa região
de extremamente alta prioridade para conservação por estar no
divisor das bacias do Rio Cuiabá, Arinos,
Teles Pires e Manso. 40% da APA
Cabeceiras do Rio Cuiabá já foi desmatada; 1/3 disso
ocorreu após a criação da Unidade de Conservação,
ilegalmente; 90% desse desmatamento recente se concentrou
majoritariamente em grandes e médios imóveis rurais
cadastrados no CAR [Cadastro Ambiental Rural]. A área
destinada à produção agropecuária no entorno está crescendo e
significa uma pressão à manutenção da vegetação remanescente
nesta UC. A Lei que permite novos desmatamentos autorizados pode
afetar quase 100 mil hectares de Cerrado inseridos
na APA e que, até então, estavam sob proteção
legal.
Já as áreas úmidas do Guaporé
e do Araguaia, assim como outros
ecossistemas de interface entre ambientes terrestres e aquáticos,
têm um papel importante para o provimento de água e conservação
da biodiversidade. Assim, quando o decreto determina “Não
se aplicam às planícies alagáveis do Guaporé e
do Araguaia as restrições impostas por lei
específica ao Pantanal mato-grossense e planície pantaneira do Rio
Paraguai”, significa mais uma redução na proteção de
ecossistemas frágeis.
IHU On-Line – Por que, na
sua avaliação, o Cadastro Ambiental Rural não tem sido suficiente
ou efetivo para evitar a compra de produtos oriundos de regiões em
que ocorre o desmatamento ilegal?
Ana Paula Valdiones – Os
acordos de cadeias para combater o desmatamentocomo
a moratória da soja e os TACs [termos de
ajustamento de conduta] da pecuária ainda não abrangem o
bioma Cerrado, e se mantêm olhando exclusivamente
para Amazônia. Recentemente, aumentou
significativamente o nível de transparência que temos do CAR
no estado de Mato Grosso. É necessário
que outras bases de dados chaves, como a Guia de Trânsito
Animal, que registra a movimentação comercial do gado
entre fazendas, também sejam disponibilizadas na íntegra para
possibilitar o monitoramento de toda a cadeia, por meio do cruzamento
entre diferentes bases de dados.
Fonte: IHU
On-line
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