Desastre de Mariana: Cientistas analisam os impactos ambientais, entre os quais os resultantes da devastação de ecossistemas.
Por Tássia Biazon, Jornal
da UNICAMP
Impactos ambientais
Dia 5 de novembro de 2015. Brasil.
Minas Gerais. Mariana.
Bento Rodrigues. Barragem de Fundão. Samarco. Às 15h ocorre
um tsunami de lama. Cerca de 32 milhões de m³
rejeitos são lançados ao meio ambiente.
O primeiro local atingido foi o
córrego de Santarém. Em seguida, o tsunami chegou
ao Rio Gualaxo do Norte, percorrendo 55 quilômetros até seu
afluente, o Rio do Carmo. Depois, mais 22 quilômetros e a lama
encontra o Rio Doce. Pelo curso da Bacia Hidrográfica do Rio Doce,
os rejeitos foram carreados até sua foz, no município de Linhares,
Espírito Santo, atingindo o Oceano Atlântico.
Ao impactar um total de 663,2
quilômetros de recursos hídricos de dois estados – Minas Gerais e
Espírito Santo, passando por 40 municípios -, a lama foi deixando
um rastro de destruição. Além da morte de 19 pessoas, centenas de
hectares de matas nativas, toneladas de peixes e diversos outros
organismos aquáticos deixaram de existir, modificando radicalmente
os ecossistemas da região. A liberação dos rejeitos no meio
ambiente causou danos imensuráveis para o país. Vidas, histórias,
casas, fauna e flora foram destruídas.
Fonte: EPSJV/Fiocruz
O Complexo Minerário de Germano é
integrado por três barragens: Santarém, Germano e Fundão. A
barragem de Fundão foi ativada em 2008. Apenas três anos depois,
sua segurança já era questionada.
Na ocasião do seu rompimento, a
barragem possuía 50 milhões de m³ de rejeitos de mineração de
ferro (resíduo classificado como não perigoso e não inerte para
ferro e manganês, conforme a norma brasileira de Resíduos Sólidos
– Classificação – ABNT NBR 10004).
Mais da metade desse rejeito, 32
milhões de m³, foram derramados no meio ambiente. Mais de um ano
depois, os 18 milhões restantes continuavam sendo carreados, aos
poucos, em direção ao litoral do estado do Espírito Santo.
O trajeto da lama, segundo o laudo
técnico preliminar do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama) de novembro de 2015, provocou:
- mortes de trabalhadores da empresa e moradores das comunidades afetadas;
- desalojamento de populações;
- devastação de localidades e a consequente desagregação dos vínculos sociais das comunidades;
- destruição de estruturas públicas e privadas (edificações, pontes, ruas etc);
- destruição de áreas agrícolas e pastos, com perdas de receitas econômicas;
- interrupção da geração de energia elétrica pelas hidrelétricas atingidas (Candonga, Aimorés e Mascarenhas);
- destruição de áreas de preservação permanente e vegetação nativa de Mata Atlântica;
- mortandade de biodiversidade aquática e fauna terrestre;
- assoreamento de cursos d´água;
- interrupção do abastecimento de água;
- interrupção da pesca por tempo indeterminado;
- interrupção do turismo;
- perda e fragmentação de habitats;
- restrição ou enfraquecimento dos serviços ambientais dos ecossistemas;
- alteração dos padrões de qualidade da água doce, salobra e salgada;
- sensação de perigo e desamparo na população.
O superintendente do Ibama em Minas
Gerais, Marcelo Belisário Campos, em entrevista concedida no dia 23
de junho de 2016, afirma que o despejo da lama chegou a uma densidade
de quatro toneladas por m³.
Campos informa que, depois de 18
horas, a lama atingiu a barragem da Usina Hidrelétrica Risoleta
Neves, também conhecida como Candonga – situada na Bacia
Hidrográfica do Rio Doce –, entre os municípios de Rio Doce e
Santa Cruz do Escalvado no estado de Minas Gerais.
Quando a onda de lama bateu contra a
usina, amortecendo a força da lama, milhões de m³ ficaram contidos
em sua estrutura. Mudaram completamente a morfologia do rio,
alcançando sua calha e margens.
O Superintendente considera que a
tragédia não é quantificável em sua totalidade, pois há aspectos
passíveis de recuperação, e outros que não são mitigáveis,
devendo ser elaboradas medidas compensatórias.
Para a compreensão dos impactos
ambientais da tragédia é necessário o conhecimento do conteúdo da
lama proveniente de Fundão. A Samarco, em entrevista realizada no
dia 13 de junho de 2016, garante que a lama é composta de rejeitos
de minério de ferro e manganês, misturados basicamente com água e
areia, e afirma que o material é inerte, não causando danos ao
ambiente ou à saúde.
No entanto, o levantamento
ambiental da Marinha do Brasilconstatou a presença de metais pesados
na foz do Rio Doce(arsênio, manganês, chumbo e selênio), com
prejuízos potenciais ao meio ambiente. Portanto, mesmo considerando
que a lama não tenha metais pesados, ela está longe de ser
inofensiva.
Conforme o laudo técnico preliminar
do Ibama, as alterações físico-químicas provocadas pela lama
impactaram a cadeia trófica como um todo, envolvendo comunidade
planctônica (pequenos organismos), invertebrados aquáticos, peixes,
anfíbios, répteis e mamíferos que se beneficiam dos recursos do
Rio Doce. Essas mudanças podem aumentar a possibilidade de extinção
das espécies ameaçadas, bem como colocar outras em risco.
Os impactos descritos pelo laudo não
esgotam todas as possibilidades de danos causados à fauna na região.
As equipes em campo do Ibama observaram animais domésticos ou
silvestres que não conseguiram acessar o curso d´água, devido à
grande quantidade de rejeitos depositadas nas margens.
O professor André Cordeiro Alves
dos Santos do Departamento de Biologia do Centro de Ciências Humanas
e Biológicas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), em
entrevista concedida no dia 24 de junho de 2016, destaca as
alterações dos impactos, conforme o curso da lama.
Próximo ao
vazamento, o incidente foi destrutivo, arrasando cidades e o ambiente
de forma quase irreversível. No trecho médio e baixo do rio, o
impacto além de ambiental é social, e muitas vezes indireto, com a
dificuldade de captação de água, afetando a pesca, a agricultura,
a extração de areia do leito do Rio Doce e até mesmo o turismo no
litoral do Espírito Santo. A resposta da sociedade, dos governos e
da academia só demonstra como estamos despreparados para incidentes
desta natureza, apesar de serem previsíveis.
O professor Sérvio Pontes Ribeiro
do Departamento de Biodiversidade, Evolução e Meio Ambiente da
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), em entrevista no dia 31 de
julho do mesmo ano, afirma que ocorreram modificações nos
ecossistemas locais, provocando perdas à biodiversidade e que
provavelmente não serão totalmente recuperados.
Sem dúvida,
a Bacia Hidrográfica do Rio Doce estará para sempre empobrecida,
comparada ao que era antes. Por outro lado, esta pode ser a porta
para se tentar uma política nunca antes realizada, de se criar
unidades de conservação da bacia inteira, e impor um uso mais
consciente do que serão estes ambientes.
A partir da polêmica dos rejeitos
carreados serem ou não tóxicos, foi criado um coletivo
científico-cidadão chamado Grupo
Independente de Avaliação do Impacto Ambiental (GIAIA). A
proposta é analisar colaborativamente, incluindo pesquisadores de
diversas instituições, os impactos ambientais do desastre.
Publicado em maio de 2016,
o Relatório Técnico do
GIAIA aponta que, por mais que a qualidade da água estivesse melhor,
considerando os metais avaliados, outros impactos secundários
deveriam ser observados, tais como: “contaminação de lençóis
freáticos (águas subterrâneas), promoção de resistência
bacteriana, extermínio de espécies aquáticas endêmicas, tanto da
biota quanto da microbiota”. Aponta, também, a “destruição de
mata ciliar e consequente assoreamento do Rio Doce e afluentes”.
O Relatório também diz que “não
se deve subestimar o potencial de elementos químicos que não são
classificados como metais pesados (por exemplo, ferro e manganês),
no que tange suas capacidades de desencadear efeitos indesejados no
ambiente ou na população humana. Por mais que estes metais
desempenhem atividades benéficas no organismo quando em níveis
adequados, em excesso, podem causar diversos efeitos tóxicos,
principalmente em exposições crônicas”. Cabe ressaltar que
contaminantes orgânicos podem ter sido utilizados durante a extração
dos minerais, impactando fortemente na qualidade da água.
Considerando que a lama em si não é
tóxica, a existência de metais pesados nos cursos d’água
percorridos pela lama, como arsênio e manganês, trouxe à tona
outro problema: as atividades de mineração estariam agindo em
desacordo com a lei, ou estes metais são encontrados naturalmente
nessas regiões? Sobre isso, o professor André Santos faz uma
avaliação.
Mesmo a lama
não sendo considerada tóxica – o que não tenho certeza em função
da sua altíssima concentração de ferro, o derrame varreu o fundo
do rio em uma grande extensão. Assim, materiais que poderiam estar
no sedimento e indisponíveis para a comunidade, foram
disponibilizados e carreados. Então, apesar de alguns destes metais
não comporem o rejeito, eles podem ter sido disponibilizados no
ambiente pelo desastre, que resulta no mesmo efeito nos ambientes se
a lama fosse tóxica.
Santos reconhece que estas regiões
de mineração já são voltadas para a atividade em função da sua
disponibilidade de minério. Portanto, é comum que tenham
concentrações mais elevadas de metais tóxicos, se comparadas com
regiões de geologia diferente. Porém, afirma que isso não exclui a
possibilidade de atuação em desacordo com a lei.
No Brasil,
apesar de leis avançadas, falta muita fiscalização, pois os órgãos
de controle estão sucateados, sem pessoal, condições materiais e
políticas de fazer o trabalho. O Estado controlado pelo capital
sempre vai evitar a fiscalização, ainda mais em atividades
sabidamente impactantes (mineração), que muitas vezes geram lucros
exorbitantes e o aumento da segurança pode reduzir o lucro final.
No laudo técnico preliminar do
Ibama consta que, além da presença de garimpos de ouro, outras
atividades degradadoras do meio ambiente são desencadeadas na
região, como a pecuária, a agricultura de subsistência e a
dragagem no rio.
Mesmo que a presença de metais não
esteja vinculada diretamente à lama da barragem de Fundão, a força
do rejeito lançado, provavelmente, revirou e colocou em suspensão
os sedimentos de fundo dos cursos d’água afetados, que
naturalmente contêm metais pesados devido às características
geológicas da região.
A atividade extrativista de
mineração retira estes metais de seus depósitos naturais e
inertes. Conforme o relatório do GIAIA, o simples fato de extraí-los
gera grande impacto ambiental. Por mais controlado que seja o
processo de mineração, quantidades destes metais se distribuirão
no ambiente, podendo causar, no futuro, efeitos tóxicos na fauna e
flora, e mesmo no homem.
O mesmo relatório apontou que o
arsênio foi quantificado em concentração acima do limite em
afluentes muito próximos ao canal principal do Rio Doce, mas em
nenhum momento tiveram contato com a lama da Samarco. O documento diz
que a alta concentração do arsênio possa ser resultado de uma
característica geológica própria do local, ou até mesmo da
atividade mineradora histórica da região.
Desta forma, independentemente do
desastre de Mariana, o próprio processo extrativista é uma
atividade poluidora. Sabe-se que o estado de Minas Gerais há séculos
vem sendo impactado. O docente Ricardo Perobelli Borba, do
Departamento de Geologia e Recursos Naturais da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp), em entrevista no dia 17 de junho de 2016,
afirma:
Toda e
qualquer atividade humana causa impacto ambiental. A mineração só
existe em função das demandas de matérias- primas da nossa
sociedade e seu modo de vida. As transformações ambientais
promovidas pela mineração estão relacionadas aos grandes volumes
de rochas, solos e água que precisam ser mobilizados em suas
operações. Nas minerações superficiais, frequentemente há a
alteração da paisagem, a construção de barragens e a disposição
de rejeitos. Ao transformar o seu entorno, a mineração também
acaba afetando a biota local, os rios e a atmosfera em diferentes
graus, a depender do tipo de minério que está sendo lavrado.
A mineração é fundamental para a
economia do estado de Minas Gerais, bem como para o Brasil. Sem
dúvida, há um custo-benefício a ser contrabalanceado. Só em Minas
Gerais há mais de 700 barragens, muitas delas sem a fiscalização
adequada. O rompimento da barragem de Fundão expõe diversas
irregularidades que necessitam ser corrigidas para que outras
barragens, em situações piores, não se rompam.
A negligência ao meio
ambiente
As primeiras impressões sobre o
rompimento da barragem de Fundão indicavam a ocorrência de um grave
desastre, mas sua real proporção ainda não era conhecida.
Inicialmente, houve a preocupação quanto aos feridos, desabrigados
e mortos. Entretanto, o cenário revelou-se um desastre ambiental sem
precedentes no país, cujos impactos na fauna e flora são
imensuráveis.
O professor Fábio Augusto Rodrigues
e Silva do Departamento de Biodiversidade, Evolução e Meio Ambiente
da UFOP, em entrevista no dia 27 de junho de 2016, identifica um
discurso de neutralidade na mídia.
Temos mais
uma situação em que o acesso às informações é controlado para
atender interesses dos poderes econômicos. Atualmente, com as
investigações policiais revelando as negligências, omissões e
violações de direitos humanos por parte das empresas responsáveis
por este crime, percebe-se um tom mais crítico. Outra impressão é
que não ouvimos as vozes dos atingidos.
Em entrevista no dia 29 de junho do
mesmo ano, o docente do Departamento de Botânica do Instituto de
Biologia da Unicamp, Carlos Alfredo Joly, salienta que, pelo tamanho
do desastre, a abordagem na mídia foi superficial.
A maior parte
dos veículos, por exemplo, os grandes jornais de São Paulo, há
muito tempo não têm um profissional dedicado à área de ciência.
A gente tem bons jornalistas, mas eles não estão de forma integral
nesta temática. A superficialidade se associa a uma falta de
conhecimento de quais são os impactos do ponto de vista biológico –
da amplitude e das consequências do desastre na biodiversidade, no
funcionamento dos ecossistemas.
O superintendente do Ibama, Marcelo
Campos, chama a atenção para as questões ambientais, que na sua
opinião são de grande complexidade, com suas transversalidades.
Quando se
fala em questões ambientais, as pessoas perguntam: ‘Quantas
toneladas de peixes morreram?’ Temos números dos peixes que foram
retirados e quantificados. Mas esses números são totalmente
subdimensionados. Há muitos outros que foram retirados, por exemplo,
sem o conhecimento do Ibama ou de qualquer outro órgão ambiental,
além de outros tantos que ficaram soterrados pela lama. A maioria da
fauna aquática da Bacia Hidrográfica do Rio Doce é constituída
por espécies de pequeno porte – uma grande diversidade que não
chama atenção da população. Já na região estuarina, as pessoas
sentiram mais porque lá têm recursos pesqueiros – uma visão de
uso econômico.
Considerando que diversos estudos
ainda precisam ser elaborados para dimensionar o que poderá ser
recuperado ao longo do tempo, Sérvio Ribeiro, pesquisador da UFOP,
avalia como foi o envolvimento da universidade com o desastre. “Nós,
ecólogos, estamos nos forçando ao debate a fim de contribuir, seja
por meio de publicações de opiniões e análises prévias em
revistas científicas, seja por buscar diálogo com os atores do
desastre”.
O docente enfatiza a necessidade de
ser estabelecido um plano de longa duração, não apenas de medidas
emergenciais, a fim de desenvolver nas universidades e instituições
de pesquisa um trabalho para entender a dinâmica do desastre. O
professor Fábio Silva, da UFOP, acredita que este e outros
rompimentos de barragem no Brasil evidenciam que esta forma de
exploração minerária é insustentável e tem causado muitos
prejuízos. “Não estamos falando apenas de um desastre, estamos
falando, vivenciando e refletindo sobre um crime socioambiental. Um
crime que tem responsáveis, no caso os principais são
Samarco/VALE/BHP Billiton e a cúpula que a dirige”.
Silva ressalta que a região dos
Inconfidentes construiu sua história em uma relação muito
intrínseca com os processos minerários, com “empregos”, “renda”
e outras “benesses”, na visão dos moradores. Informa que escolas
fazem excursões às minas, pessoas são empregadas pelas mineradoras
e terceirizadas – vistas como trabalhadoras que venceram na vida e
se orgulham de fazer parte dessas empresas. Desconhecer estes fatores
é se distanciar da realidade em que a população está inserida.
Aponta também, que em mesas
redondas promovidas pela Escola de Minas sobre o desastre da Samarco,
com especialistas da área de mineração, não houve questionamentos
dos modelos de produção e dos usos dos saberes científicos e
tecnológicos na exploração do ambiente e das comunidades
atingidas. Em sua visão, o discurso da neutralidade permeou as falas
dos especialistas, naturalizando a tragédia, e eximindo a Samarco
das responsabilidades. O docente acredita que há necessidade de se
repensar as práticas de formação de profissionais.
Sempre me
questiono quando alguns cursos voltados para o desenvolvimento
científico e tecnológico irão incorporar em suas práticas de
formação pelo menos um olhar sobre os contextos culturais,
ambientais e sociais. Quando os seres humanos, animais, plantas e
nascentes deixarão de ser apenas números, dados de gráficos e
serão considerados como sujeitos afetados por essas práticas e
tecnologias.
Ecossistemas devastados
Além de diversos estudos estarem em
andamento, o desastre ainda está em curso, o que impossibilita uma
aferição completa do que aconteceu nos diferentes ecossistemas. Há
impactos indiretos a curto, médio e longo prazo.
Carlos Joly, da Unicamp, levanta
algumas percepções das influências da lama no ambiente terrestre,
alertando que não há nenhuma referência anterior para saber quais
foram suas consequências ou como mitigá-las.
Já tivemos
outros desastres no Brasil, embora nenhum com o porte de Mariana, mas
aparentemente não aprendemos as lições com os anteriores. Este
desastre foi de uma magnitude que a região afetada nunca vai se
recuperar totalmente. Vamos ter cicatrizes permanentes, e em todos os
ambientes: terrestre, água doce e marinho. Em áreas com deposição
de lama no ambiente terrestre, houve alteração da estrutura física
do solo. A lama se depositou nos interstícios dos grãos de areia.
Consequentemente, a vegetação que ocupava a região dificilmente
terá condições de voltar, pois a alteração do solo é
praticamente irreversível. Ou então levará centenas de anos para
haver condições semelhantes ao passado, até que eventualmente
ocorram novas deposições de areia, formando um novo solo sobre o
solo atual.
Assim como Joly, Sérvio Ribeiro, da
UFOP, acredita que os locais afetados não se recuperarão
totalmente. Isso se deve tanto pela perda das características
geomorfológicas do solo e de certas funções ecológicas quanto
pela compactação da lama e posterior desertificação das áreas
afetadas.
A lama,
quando não soterra, impregna a maioria dos micro-habitats onde
pequenas criaturas vivem. Estas são responsáveis pela fotossíntese
que oxigena a água. Ainda, os microrganismos são a base da cadeia
alimentar que chega até os peixes. Embora muito deva ter se perdido
de forma irrecuperável, estudos ainda precisam ser realizados para
entender a extensão dos impactos em toda a cadeia trófica.
Resgate de um cavalo na lama | Fonte: Rodrigo Freitas, El País.
A vegetação próxima aos rios é
extremamente adaptada aos períodos de inundações sazonais. Quando
o solo está encharcado, não há oxigênio para a respiração das
raízes das plantas, que para sobreviverem, utilizam recursos de
adaptação que ajudam na difusão do oxigênio para o sistema
radicular – os pneumatóforos, por exemplo –, ou modificações
metabólicas que permitam manter seu metabolismo sem necessitar de
oxigênio.
Ao comparar a diversidade das áreas
sujeitas a alagamentos às áreas anexas sem alagamento, Joly
enfatiza que estas últimas têm um número de espécies muito maior
do que as alagadas, nas quais as espécies vivem sob forte estresse,
fazendo com que poucas sobrevivam às condições impostas.
A diversidade
de espécies que havia nas margens do Rio Doce deixou de existir. A
onda de lama extravasou para além da área alagada, encharcando
áreas não alagáveis. Após a alteração da estrutura física do
solo, dificilmente essas espécies terão condições de
sobrevivência.
O professor da Unicamp indica ainda
que é muito difícil prever o que acontecerá, pois as margens do
Rio Doce sofreram, além do desmatamento, alterações
físico-químicas do solo. Mesmo que ocorram plantios de mudas,
poucas espécies sobreviverão. Somado a isto, os impactos à flora
refletirão na fauna, por exemplo, com a falta de alimentos e abrigos
para os animais. Outra vez, há uma incógnita sobre o que
acontecerá.
A Bacia Hidrográfica do Rio Doce é
uma região pouco estudada, mas sabe-se que é muito rica em
espécies, composta de 98% do bioma Mata Atlântica, e o restante
pertencente ao bioma Cerrado. Carlos Joly destaca que a vegetação
do local é estruturada por uma enorme quantidade de insetos
polinizadores, bichos dispersores e predadores potenciais. Enfim, uma
complexa cadeia trófica com rios que abrigam uma diversidade de
vida, e não apenas os peixes, comestíveis e comercializáveis.
Na visão de André Santos, da
UFSCar, é impossível ter certeza de que o Rio Doce voltará a ser
como antes. Numa situação como esta, é muito difícil fazer
afirmações categóricas.
Temos a
esperança de que se o sistema for acompanhado e monitorado
adequadamente teremos menos incertezas quando um desastre destas
proporções ocorrer novamente. E devido ao nosso modo de produção
atual, outra tragédia desta natureza é provável, até esperada. O
que sei é que problemas ambientais são complexos, e em função de
sua natureza não comportam soluções simples. Num evento destas
dimensões há impactos ambientais, sociais, econômicos e inclusive
culturais, que temos dificuldade de perceber e compreender. Alguns
efeitos só serão visíveis depois de anos e outros talvez nem
consigamos quantificar. Por exemplo, a perda da biodiversidade
aquática nunca será entendida, até porque não havia muita
informação desta biodiversidade anteriormente à tragédia.
Portanto, será impossível avaliar a perda totalmente.
No curso do Rio Doce, muitas cidades
tiveram a qualidade da água afetada pela lama, como a cidade de
Governador Valadares, em Minas Gerais.
Ao percorrer centenas de
quilômetros, o problema chegou ao Oceano Atlântico. O caos se
propagou: praias foram interditadas e a pesca proibida no entorno de
Regência, vila pertencente ao município de Linhares, litoral do
Espírito Santo.
Lama em Governador Valadares | Fonte: Gabriella Billó, Estadão
Conteúdo.
A arquiteta Bárbara Poliana Campos
Sousa, nasceu em Governador Valadares, em 1983. Há 33 anos, ela mora
no município banhado pelo Rio Doce, atingido pela lama da Samarco.
O Rio Doce
sempre foi diversão na infância. Lembro-me de irmos pescar e
contemplar sua paisagem frente ao Pico da Ibituruna, rodeados pelos
paraglaiders e assistindo os canoístas treinarem no rio, como nosso
campeão de coração, Sebastián Cuattrin. Não havia nada melhor do
que correr às margens do rio, fazer exercícios em volta da orla da
IIha dos Araújos, uma prática comum da população. Além de sermos
privilegiados com um vasto rio, fonte de vida para a região.
A valadarense lembra que, antes da
tragédia, o Rio Doce passava por um período de seca muito
preocupante e a população já racionava água. Com o anúncio do
desastre, o cenário foi de medo e correria.
Todos
precisavam estocar água. A ajuda mútua foi importante. Carros com
baldes, canos, tonéis e latas de todos os tamanhos. Filas enormes em
armazéns e lugares que vendiam recipientes. Caixas d’água se
esgotavam em depósitos. Pessoas fazendo poços artesianos, alugando
caminhões-pipa para prédios e condomínios. As escolas e hospitais
tiveram ajuda do município. Quando a situação agravou e pararam a
captação de água do rio, caminhões de água mineral eram enviados
para abastecer o comércio. Passou a ser perigoso, motivo de roubo,
sair com galão de água mineral em carros de carroceria abertos ou
caminhões.
As primeiras semanas foram de muita
tensão. Com o passar dos dias, caminhões da Samarco doavam água
para a população. Com filas quilométricas, milhares de pessoas
ficavam horas para conseguir água.
Vejo esta
tragédia como um retrato da corrupção e falta de fiscalização
das grandes mineradoras. Tudo poderia ser evitado. Até hoje nada foi
feito, a população continua sem água de qualidade, colocando sua
saúde em risco por causa dos metais pesados encontrados na água. Os
laudos apresentam índices acima do ideal para o consumo, apesar da
Prefeitura falar o contrário. Depois da tragédia, o mercado
imobiliário caiu muito. As pessoas estão receosas em investir na
cidade. Acabaram os peixes. A água ficou imprópria para o consumo.
Vivemos com água mineral para fazer tudo. As empresas precisam ser
punidas. As nascentes precisam ser protegidas. A paisagem mudou.
Tristeza em ver o rio de lama. E a dúvida e o medo por não saber
até quando viveremos tudo isso. Fomos diretamente atingidos.
Essas regiões sofreram alterações
socioambientais, além da perda de subsistência pela pesca, de
acordo com o professor Alexander Turra do Instituto Oceanográfico
(IO) da Universidade de São Paulo (USP), em entrevista no dia 11 de
agosto de 2016. Turra desconhece a proporção dos impactos, mas sabe
que será visível durante décadas.
A lama trouxe
turbidez para a água do mar, que passou a receber menos luz. Com
baixa luminosidade, os organismos não realizam fotossíntese,
processo de produção de energia, diminuindo a quantidade de
alimentos no ecossistema. Isto acarretou a queda de sua produção
primária, e indiretamente, afetou outros organismos da cadeia
alimentar.
Os impactos não cessaram
As feridas abertas pela onda de
rejeitos de milhões de m³ e mais de 15 metros de altura ainda estão
longe de serem fechadas. As vidas perdidas foram muitas, entre elas,
Daniel, pai da Sandra; animais de estimação e criação; plantações
para subsistência; flora e fauna das margens dos rios Gualaxo do
Norte, Carmo e Doce; áreas protegidas – como as dos índios
Krenak, reservas biológicas – como a de Comboios; incontáveis
espécimes aquáticas; perda da biodiversidade, fertilidade do solo e
qualidade da água; contaminação do lençol freático, modificação
da zona estuarina do litoral do Espírito Santo – como locais de
desovas de tartarugas marinhas em risco de extinção. Há tanta
destruição que com o tempo poderá haver alguma melhora, mas
dificilmente, por onde a lama passou, será como era antigamente.
Como se não bastasse enfrentar uma
catástrofe equivalente ao volume de 20 mil piscinas olímpicas de
lama – devastando uma diversidade de ecossistemas, o desastre ainda
continua em curso. A fonte de lama não secou e, embora sem a força,
densidade e volume iniciais, permaneceu vazando.
Então, como falar em recuperação
se o dano foi imensurável? Por que eventos como esse acontecem? E o
que deveria ser feito para serem evitados? Joly, da Unicamp, faz uma
análise sobre o retrocesso do Brasil na questão ambiental,
lembrando que a legislação ambiental brasileira é moderna, mas vem
sofrendo interferências destrutivas.
Hoje há
projetos para serem aprovados pelo Estado querendo acabar com os
estudos de impacto ambiental, porque alegam que isso é um
desperdício de dinheiro. A gente está indo na contramão. É um
contra-senso. A visão que países têm sobre as atitudes tomadas
pelo Brasil em fóruns internacionais é de que somos uma potência
em questões ambientais. Nós, brasileiros, sabemos o quanto a gente
vive um retrocesso, porque tudo é visto como ganho imediato e não a
médio e longo prazo. A gente comete os mesmos erros já cometidos
por países do Velho Mundo, mas piorados. Nós temos problemas de
fiscalização muito acentuados, por exemplo, não se usa o material
adequado, não se realiza o que estava descrito. O que gera situações
problemáticas como na barragem em Fundão.
Rio Gualaxo do Norte, em junho
de 2016 | Foto: Tássia Biazon, arquivo de viagem.
Joly observa que a Samarco tinha
incertezas quanto ao volume e as rachaduras da estrutura da barragem.
Ou seja, era um desastre previsível, uma questão de tempo. Não
sabiam quando iria acontecer, mas que poderia acontecer. Ressalta
que, além da própria mineração, o país vive esse tipo de
situação em muitas outras áreas, como na extração de petróleo.
Em relação às palavras de Joly,
Ribeiro, do Departamento de Biodiversidade da UFOP, afirma que os
políticos brasileiros não priorizam investimentos em meio ambiente
nem sequer cobram a aplicação de leis. Cita o despreparo de
funcionários dos órgãos fiscalizadores, que não efetuam multas
nem impõem medidas de análise e prevenção de desastres.
Portanto, o Estado deveria cumprir
papel fundamental para que esses tipos de desastre, frequentes e de
magnitudes assustadoras, não ocorram no país. Em todos os níveis –
municipal, estadual e federal, não há fiscalização nem prevenção
efetivas dos problemas ambientais. Joly analisa:
A palavra
inoperante talvez seja forte demais, mas o Estado beira ao
inoperante. Em todas as etapas –
e não é apenas no aspecto ambiental –, há uma generalização de problemas como o caso da ciclovia do Rio de Janeiro que ocorreu por erros de cálculos. Mas, a área ambiental é uma das mais carentes, porque o Estado não dá o devido valor ao meio ambiente. O Estado ainda não entendeu que a área ambiental é fundamental.
e não é apenas no aspecto ambiental –, há uma generalização de problemas como o caso da ciclovia do Rio de Janeiro que ocorreu por erros de cálculos. Mas, a área ambiental é uma das mais carentes, porque o Estado não dá o devido valor ao meio ambiente. O Estado ainda não entendeu que a área ambiental é fundamental.
Depois de fatos como o de Mariana, o
que se observa é um “empurra-empurra” para saber de quem é a
culpa. Na realidade, todos são culpados. Empresas e Estado deveriam
estar cumprindo seus papeis. Atualmente, a legislação prevê a
cobrança de multas. Seria esta a solução para o problema?
Há multas
sendo aplicadas pelo governo enquanto as empresas contestam. Mas,
praticamente nenhuma dessas multas às grandes empresas, jamais foram
pagas. Nunca esse dinheiro chegou, ou porque recorreram, ou porque o
Estado é lento, até que aconteça seu esquecimento. Vira manchete e
todo mundo acha que puniram. Mas nada aconteceu.
Na visão dos pesquisadores, o
Brasil necessita valorizar o meio ambiente, criar projetos mais
rígidos e eficazes, fortalecer os órgãos de responsabilidade
ambiental, garantir o monitoramento de informações, fiscalizar
rigorosamente, ampliar as equipes com profissionais capacitados e
realizar estudos completos antes, durante e pós-aplicação de
determinadas intervenções no meio ambiente.
Santos, da UFSCar, acredita que as
pessoas precisam discutir mais sobre o modelo de sociedade que se
deseja, já que atividades tão impactantes e ao mesmo tempo
estrategicamente importantes como a extração de minério ou
petróleo, não podem ficar a mercê dos mercados internacionais e do
lucro.
Precisamos
pensar se para proteger o lucro de alguns vamos continuar a
distribuir os prejuízos para todos. Devemos discutir o papel do
Estado como protetor dos interesses da população e dos interesses
difusos e não defensor dos interesses do Capital. A crise ambiental
é uma crise do sistema de produção capitalista e tenho a convicção
que um ambiente de qualidade para todos é incompatível com o
acúmulo de riqueza e recursos para poucos. Precisamos repensar o
conceito de desenvolvimento sustentável e nos perguntar
‘desenvolvimento para quem?’, ‘sustentável para o que?’.
Diariamente o homem interfere na
natureza para sua subsistência – embora nela interfira para muito
além de seu sustento. Como encontrar o equilíbrio entre o econômico
e o ambiental? Ribeiro afirma que uma resposta seria o uso saudável
dos ecossistemas.
Uma floresta
em pé, um rio limpo, uma encosta com solos férteis são serviços
que os ecossistemas nos prestam. Práticas destrutivas enriquecem
poucos e deixam um enorme prejuízo econômico coletivo que todos
pagam. Esta é a base do hoje chamado “racismo ambiental”.
Racismo no sentido de que os mais pobres e desfavorecidos pagam mais
que os ricos os custos dos danos. Porém, se pensar em finanças de
uma Nação, quanto custa o atendimento médico de pessoas
contaminadas por agrotóxico, peixes com metais pesados, ar poluído?
Quanto custa estas pessoas não estarem aptas e capazes de
trabalharem? Quanto custará para sempre o tratamento da água do Rio
Doce para uso humano? Só pode haver desenvolvimento econômico de
longo prazo, rentável para a coletividade, com o uso devido,
plenamente manejado e rigorosamente controlado dos recursos naturais.
Mariana foi o maior desastre e crime
ambiental da história do Brasil. O maior desastre de mineração do
mundo. Continua abrindo feridas, expõe outras que há muito tempo já
estavam abertas e que até hoje não se curaram, e faz cicatrizes que
não mais sairão do mapa deste país.
Referências
FREITAS, R. Os
animais no desastre de Mariana. El
País, Nov. 2015. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/10/album/1447191040_817628.html#1447191040_817628_1447191279>.
Acesso em: 06 ago. 2016.
GRUPO
INDEPENDENTE DE AVALIAÇÃO DO IMPACTO AMBIENTAL (GAIA). Disponível
em: <http://giaia.eco.br/>. Acesso em: 16 jun. 2016.
GRUPO
INDEPENDENTE DE AVALIAÇÃO DO IMPACTO AMBIENTAL (GAIA). Relatório
Técnico. Determinação de Metais
na Bacia do Rio Doce (Período: Dezembro-2015 a Abril-2016).
Mai.
2016. Disponível em:
<http://giaia.eco.br/wp-content/uploads/2016/06/
Relatorio-GIAIA_Metais_Vivian_revisto5.pdf>. Acesso em: 16 jun. 2016.
MATHIAS, M;
JÚNIA, R. Cenário de fim do mundo no rastro da lama. EPSJV/Fiocruz,
Rio de Janeiro, Jan. 2016. Disponível em:
<http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/cenario-de-fim-do-mundo-no-rastro-da-lama>.
Acesso em: 06 ago. 2016.
Tássia Oliveira Biazon: é graduada em Ciências Biológicas (bacharelado e licenciatura) pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) – Campus Botucatu, com dupla diplomação pela Universidade de Coimbra (UC) – Portugal e pós-graduada em jornalismo científico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente é professora, jornalista científica e desenvolve projetos na área da Biologia da Conservação. Email: tassiabiazon@gmail.com
Fonte: Jornal
da UNICAMP
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