Esmagado entre austeridade e
interesse privado, SUS é indispensável.
por Carlos Drummond, da
CartaCapital
Entre os países que contam com
um sistema universal de saúde, o Brasil é o único em que o gasto
privado supera o público.
A combinação de recessão,
desemprego e redução drástica dos gastos públicos nas áreas
social e da saúde desencadeou sofrimento em grande escala nos
últimos anos, ao sujeitar milhões de pessoas fragilizadas pela
piora das condições de vida a um sistema estatal que, além de
padecer de insuficiência financeira crônica, foi submetido também
a cortes de insumos e medicamentos e a péssimas condições de
trabalho dos seus funcionários.
O resultado são o aumento da
mortalidade materna e infantil, esta após 26 anos de queda contínua,
a diminuição da vacinação e o ressurgimento de endemias e
epidemias há décadas suprimidas ou controladas, obras autorais do
governo iniciado em 2016 que é responsável ainda pela aceleração
da drenagem de recursos públicos em benefício do sistema financeiro
e da saúde privada, mostraram os expositores e debatedores do XIII
Encontro Nacional de Economia da Saúde, realizado em Brasília no
mês passado pela Associação Brasileira de Economia da Saúde
(ABrES).
A política de austeridade força os
limites de um sistema submetido a financiamento insuficiente há no
mínimo 30 anos, desde a criação do Sistema Único de Saúde (SUS)
pela Constituição de 1988. A causa principal do desbalanceamento
sistemático é a drenagem ininterrupta e crescente de recursos do
governo para pagamento de juros da dívida pública ao setor
financeiro, chamou atenção Áquilas Mendes, professor de Economia
Política da Saúde da USP e da PUC-SP.
Entre 1995 e 2016, disse, o gasto
anual do Ministério da Saúde não foi alterado, mantendo-se em 1,7%
do PIB, enquanto o desembolso médio com juros da dívida atingiu, em
média, 6,6%. A contrapartida da compressão sistemática das
despesas públicas com saúde nas últimas décadas foi o avanço
significativo do gasto privado no setor, em especial nos governos
FHC. Considerando-se União, estados e municípios os desembolsos
público e o privado como proporções do PIB atingiram 2,8% e 1,4%
em 1993; 3,2% e 3,9% em 2002; 3,9% e 4,2% em 2014, mostrou Mendes.
Entre os países com sistema
universal de saúde o Brasil é o único em que o gasto privado
supera o público, enquanto nos demais o desembolso do Estado
representa cerca de 60% do total. Hoje, quem define o rumo de
políticas para a saúde no Brasil é o setor privado, ao contrário
do que ocorria nos anos 1980. A situação é o avesso daquela dos
países europeus, com estruturas majoritariamente públicas e gastos
governamentais em torno de 80% do total.
Submeter milhões de pessoas
fragilizadas a um sistema assolado pela escassez crônica de recursos
é causar doença e morte.
A penúria do setor deverá aumentar
nos próximos anos. Sob efeito da Emenda Constitucional nº 95
aprovada em 2016 para garantir a contenção radical de gastos, os
recursos federais alocados para o SUS cairão até 2036, de 1,7% para
1,2% do PIB, com graves danos à saúde pública nos estados e
municípios, projetam Francisco Funcia, consultor do Conselho
Nacional de Saúde e da Fundação Getulio Vargas, e Carlos Octávio
Ocké-Reis, economista e técnico de planejamento e pesquisa do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
Outro mecanismo de ampliação da
saúde privada à custa do Estado é o alto volume de renúncia
fiscal. Entre 2003 e 2015, o que o Estado deixou de arrecadar no
setor oscilou entre 11,7% e 22,2% da renúncia total, calculam
Ocké-Reis e Artur Monteiro Prado Fernandes, também do Ipea.
Protagonista da crise generalizada
do País, a judicialização também afeta o setor. “Desde 1990
houve um aumento exponencial das ações judiciais para os usuários
acessarem produtos, tecnologias e medicamentos. O número de
processos judiciais em saúde pública e saúde suplementar nos
estados de São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Mato Grosso do Sul, Rio
Grande do Norte e Acre atingiu 27,3 milhões em 2012”, chamou
atenção Fabíola Sulpino Vieira, especialista em políticas e
gestão governamental do Ipea.
Inúmeras situações envolvem
conflitos de interesses, caso do medicamento Nusinersen para
tratamento de atrofia muscular espinhal, doença degenerativa rara. O
preço de fábrica da ampola é 297 mil reais e cada tratamento
requer ao menos seis ampolas, com custo anual de 1,78 milhão por
paciente.
Há cem pessoas tratadas
gratuitamente pelo SUS com esse remédio por força de ação
judicial e o fabricante propôs a negociação do teto de gasto
público para o governo custear a medicação de até 300 pacientes e
o que passasse disso a indústria pagaria.
Sexto maior mercado de medicamentos
do mundo, o Brasil importa 77% das matérias-primas usadas pelo
setor. “É um dos mercados mais atraentes, há uma pressão muito
grande e a judicialização é um mecanismo para forçar o Estado a
gastar”, disparou Fabíola.
A ação dos interesses privados
sobre a saúde pública atinge hoje o auge desde 40 anos atrás,
quando governos e instituições de 134 países firmaram a
compreensão de que as doenças têm também entre as suas causas
fatores sociais, como as condições de vida e de trabalho.
O entendimento ocorreu na
Conferência Internacional em Atenção Primária promovida pela
Organização Mundial da Saúde em Alma-Ata, no Cazaquistão, então
integrante da União Soviética, e seus participantes definiram que
um dos principais objetivos deveria ser a conquista até o ano 2000
de um nível de saúde que permitisse a toda a população mundial
ter uma vida social e economicamente produtiva.
Eduardo Levcovitz, professor do
Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro e ex-representante da Organização Mundial da Saúde no
Uruguai, um dos palestrantes do evento realizado em Brasília,
lembra-se do que disse o diretor-geral da OMS, Halfdan Mahler, em
entrevista concedida depois do encontro no Cazaquistão: “Não faz
nem 48 horas que a conferência acabou e os crocodilos já estão de
boca aberta para devorar a saúde de todos no ano 2000”.
A referência à voracidade e ao
atavismo das forças contrárias à saúde pública reforça a
importância de se levarem conta fatores históricos e estruturais na
análise das ameaças ao SUS que incluem, na análise de Levcovitz, a
fragilidade da coalizão política de sustentação do Sistema, seu
subfinanciamento crônico, os avanços muito lentos na transformação
do modelo de atenção básica e a inviabilização do exercício da
função de gestão em todos os níveis sob as leis das licitações
e da responsabilidade fiscal.
O enfraquecimento do Estado
viabilizou, por exemplo, a institucionalização por governos e
tribunais do entrechoque de interesses públicos e privados expresso
nas controvertidas Organizações Sociais.
Criadas por FHC para
supostamente beneficiar o sistema estatal com a capacidade privada de
gestão, as OS pretendem-se sem fins lucrativos, mas isso é só um
aspecto formal, pois na prática instalam uma competição econômica
por contratos, dizem seus críticos.
Alvos de CPI em São Paulo e de
questionamentos na Justiça em vários estados, as OS funcionam de
fato como porta dos fundos para o acesso do interesse econômico
privado, conclui-se também deste trecho da palestra do consultor
Francisco Funcia: “Há um dispositivo na lei de responsabilidade
fiscal que diz que a contratação de terceiros deve ser computada
como outras despesas de pessoal, ou seja, entra no limite de gastos.
Aí o estado de São Paulo, principalmente o Tribunal de Contas,
saiu-se com uma interpretação do tipo salto triplo carpado e disse
o seguinte: ‘Se estiver contratando o serviço e não só os
profissionais de saúde, então não entra no limite’. E aí virou
essa proliferação que para mim não é mais contratação de
profissional de saúde, mas de tudo: compra de material, compra de
serviços etc. É preciso discutir a questão política de como se
regulam as OS, pois hoje estão completamente desreguladas”,
dispara Funcia.
Apesar de estigmatizado pelas
chamadas elites e esmagado pela política de austeridade do governo,
o sistema público de saúde presta serviços inestimáveis da base
ao topo da pirâmide de renda, mostram os exemplos de um programa
municipal e do atendimento nos prontos-socorros dos hospitais
estatais.
Segundo pesquisa realizada por
Melissa Spröesser Alonso, da Faculdade Latino-Americana de Ciências
Sociais e Fundação Perseu Abramo, a implantação de um programa da
prefeitura do município paulista de Mauá em parceria com a ONG
Grupo União da Saúde sem Fronteiras resultou em aumento da
cobertura da rede de atenção básica, de consultas e visitas
domiciliares, do número de pacientes com acompanhamento e controle
de diabetes e hipertensão e redução da mortalidade de crianças de
até 1 ano, entre outros efeitos.
“Apesar de enfrentarem problemas
gigantescos, os hospitais públicos têm os melhores e mais
eficientes serviços de emergência para atender politraumatizados e
acidentados, por contarem com equipes praticamente completas com
neurocirurgião, cirurgião geral, paramédicos e auxiliares. Os
hospitais privados raramente têm essa estrutura, porque ela é muito
cara, o custo é lá em cima”, sublinha o ex-ministro da Saúde
José Agenor Álvares.
Que o digam o candidato Jair
Bolsonaro, atacado dia 6 em Juiz de Fora, Minas Gerais, e atendido na
Santa Casa de Misericórdia e os apresentadores de tevê Luciano Huck
e Angélica feridos em pouso forçado em 2015 e socorridos na Santa
Casa de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul.