Transposição do Rio São Francisco irriga projetos de latifundiários nordestinos.
O relatório
da Controladoria Geral da União – CGU, que apresenta problemas
de planejamento capazes de impedir a operação, manutenção e
sustentabilidade da transposição
do rio São Francisco, “não traz para os mais esclarecidos
nenhuma novidade”, diz Altair
Sales Barbosa. Segundo ele, muito antes da conclusão do
relatório, “estudiosos da bacia do São Francisco,
bem como os conhecedores da dinâmica do rio, alertaram por meio de
audiências, publicações e movimentos, quanto aos riscos da
execução desse projeto. Infelizmente a classe política se fez
surda, não deu ouvidos. Só não ficou muda porque expressava as
opiniões de burocratas ‘geniais’ que os alimentavam com
argumentos surgidos entre quatro paredes e totalmente desprovidos de
conhecimentos concretos”.
Na entrevista a seguir, concedida
por e-mail para a IHU On-Line, Barbosa
comenta as “soluções paliativas” para reverter os impactos da
transposição
do São Francisco, como a Resolução da Agência
Nacional das Águas - ANA nº 1.043 de 19/06/2017, e informa
sobre os reais propósitos da obra. “Este alicerce é falso, porque
esconde desde o início o real propósito da transposição,
que era patrocinar grandes
projetos de irrigação dos grandes latifundiários do
Nordeste, padrinho e patrocinadores dos coronéis da
política regional, cujo modelo é o mesmo desde o início da
colonização”, afirma.
Altair Barbosa | Foto: Ricardo
Machado - IHU
Altair
Sales Barbosa possui graduação em Antropologia pela Pontificia
Universidad Católica de Chile, doutorado em Arqueologia
Pré-Histórica pela Smithsonian Institution - National Museum of
Natural History, de Washington, Estados Unidos. É coordenador do
projeto Enciclopédia Virtual do Cerrado pelo
Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, do qual é sócio
titular.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – De acordo
com o relatório da Controladoria Geral da União – CGU, existem
problemas de planejamento capazes de impedir a operação, manutenção
e sustentabilidade da transposição do rio São Francisco. Como o
senhor avalia esse relatório? Ele trouxe alguma novidade?
Altair Sales Barbosa -
A obra da transposição
do rio São Francisco sempre teve um viés muito mais político
do que social ou científico. O empreendimento, que envolve as
grandes empresas construtoras do Brasil e as grandes
empresas de engenharia elétrica, tem na sua base um alicerce falso,
pois fala que seria realizada para atender as necessidades das
populações rurais, cujas produções agrícolas e criações de
animais padecem na época da estação seca. Na realidade este quadro
continua e foi acentuado com as obras da transposição.
Este alicerce é falso, porque esconde desde o início o real
propósito da transposição, que era patrocinar grandes projetos
de irrigação dos grandes latifundiários do
Nordeste, padrinho e patrocinadores dos coronéis da
política regional, cujo modelo é o mesmo desde o início da
colonização. Portanto o relatório da CGU sobre a
sustentabilidade da transposição do rio São Francisco
não traz para os mais esclarecidos nenhuma novidade.
Todos os estudiosos da bacia
do São Francisco, bem como os conhecedores da dinâmica do rio,
alertaram por meio de audiências, publicações e movimentos, quanto
aos riscos da execução desse projeto. Infelizmente a classe
política se fez surda, não deu ouvidos. Só não ficou muda porque
expressava as opiniões de burocratas “geniais” que os
alimentavam com argumentos surgidos entre quatro paredes e totalmente
desprovidos de conhecimentos concretos.
O relatório da CGU,
que agora critica a falta de planejamento para garantir a manutenção
e sustentabilidade, teria que ser convincente e questionador antes de
as obras iniciarem. Teria que ser ouvida a comunidade científica
brasileira, teria que conhecer a dinâmica dos rios do cerrado e sua
realidade, também deveria ser conhecida a realidade e a experiência
dos ribeirinhos. O relatório também traz falhas horríveis em
relação ao conhecimento de toda bacia do São Francisco.
Foca só em problemas locais, não tem visão da totalidade.
Todo trabalho de planejamento
ambiental e organização do espaço que não leve em consideração
a história evolutiva dos elementos envolvidos e que não considere
as vocações regionais, traz como consequência problemas de
difíceis soluções, alguns irreversíveis.
Mapa do projeto de Transposição do
São Francisco (Fonte: Portal do Governo Federal)
IHU On-Line – Que tipo de
alternativas são propostas para resolver os problemas gerados pela
transposição?
Altair Sales Barbosa -
Uma vez surgidos tais problemas, procuram-se soluções paliativas
como tentando curar uma ferida apenas cobrindo-a com um esparadrapo.
Como é o caso da Resolução da Agência Nacional das Águas
- ANA nº 1.043 de 19/06/2017, denominada Dia
do Rio, cujo objetivo é reforçar as ações que vêm sendo
adotadas para preservar os estoques nos reservatórios da bacia
do rio São Francisco. A resolução determina que todas as
quartas-feiras a captação de água da bacia seja proibida, exceto
para abastecimento humano e animal.
A resolução da ANA
deixa uma brecha em não incluir de forma absoluta os corpos hídricos
que não são considerados como domínio da União, mas que integram
a bacia do São Francisco e são vitais para a
perenização
deste rio. Embora deixe claro que serão feitas articulações com os
estados e comitês da bacia, sabemos pela prática que essas medidas
são inoperantes.
Aparentemente a resolução
da ANA, que estabelece o Dia do Rio, parece
boa. É! Mas não é, porque ao proibir a retirada da água em alguns
trechos específicos por empreendimentos agropastoris e indústrias,
a resolução visa preservar água para os reservatórios, que por
sua vez irão alimentar a geração de energia e também alimentar
outras defluências danosas, como é o caso dos canais da
transposição. Portanto, se penetrarmos além das aparências, vamos
notar que a Resolução deixa falhas em não entender a bacia
hidrográfica dentro de sua totalidade, da mesma forma que deixa
dúvidas quanto a quem na realidade serão os beneficiados com tais
medidas.
Outro ponto obscuro é a restrição
aos cursos d’água superficiais, demonstrando total desconhecimento
dos ciclos hídricos regionais, pois não faz menção
às águas subterrâneas, tão ou mais importantes que as águas
superficiais. Parece que o ciclo hidrológico se restringe às
chuvas, o que não é verdadeiro. Portanto, é
importante considerar a utilização das águas subterrâneas
nos processos de irrigação, efetuados através de poços
artesianos.
A resolução que cria o Dia
do Rio é um exemplo claro da falta de planejamento e de
conhecimento dos processos que envolvem o rio
São Francisco. Também pode ser citado como exemplo de falta de
planejamento a ausência de conhecimento da ocupação humana
regional.
IHU On-Line - Qual é a
situação do desmatamento no entorno do rio São Francisco? Quais
são as consequências do desmatamento para o rio?
Os rios foram secando em função do
desmatamento, o desaparecimento de córregos menores e lagoas já vem
acontecendo desde início da década de 80 — Altair Sales Barbosa
Altair Sales Barbosa -
Em 1972, no Primeiro Simpósio sobre o Cerrado, já
chamávamos a atenção para a preservação do chapadão
ocidental da Bahia até o limite com as cristas do Bambuí,
hoje limitando com os Estados do Tocantins e Goiás,
pois as águas
subterrâneas naquela época ali existentes seriam uma grande
reserva de água potável para o Brasil. Mas não foi isto que
aconteceu.
Por serem consideradas erroneamente “terras devolutas”,
o governo federal as repartiu para grandes empresários, nacionais e
internacionais, que recebiam no mínimo 25 mil hectares; a única
coisa que deveriam dar em troca era o desmatamento da região. E
assim, por falta de conhecimento e planejamento adequado, começou
essa nova ordem territorial, que em pouco tempo traria um quadro
irreversível de prejuízos ambientais e sociais para a região.
No caso específico dos
alimentadores do rio São Francisco, alguns nascem
em Goiás, como é o caso da Lagoa Feia
no município de Formosa, que contribui com vários
afluentes para o rio Paracatu. Outros, nascem no
Jalapão Tocantins, caso do rio Preto,
mas a grande parte nasce no Espigão Mestre, início
das campinas, baianas, mineiras e piauienses.
Pois bem, com a implantação deste
novo modelo de organização territorial, iniciou-se o maior
processo de desmatamento no Brasil, feito a correntões. Foi só
uma questão de tempo para que as nascentes não só dos córregos,
mas também dos rios começassem a migrar das partes mais altas para
as mais baixas, e alguns córregos secaram totalmente. Por que isso
aconteceu? Porque sem a vegetação nativa a água
da chuva não penetrava mais como anteriormente e não recarregava os
aquíferos, e estes foram baixando de nível num processo contínuo,
embora o índice pluviométrico permanecesse o mesmo.
O curioso nesta situação é que
ainda não haviam sido desenvolvidas tecnologias para a correção
completa dos solos regionais, por isso as plantações iniciais com
eucalipto e pinheiro não deram certo. Tempos depois
é que foram aperfeiçoadas as tecnologias que permitiram o plantio
de várias espécies, utilizando-se para isto calcário específico,
muito adubo químico e uma quantidade imensa de agrotóxicos.
Muitos proprietários abandonaram as iniciativas ou venderam as
terras para outros grupos de empresários que, com a utilização de
novas tecnologias, foram se apropriando de áreas ainda maiores.
Essas tecnologias, associadas, à época, a uma fartura de água,
logo permitiram o avanço das fronteiras que cada vez produzia mais e
despertava a ganância de muitos produtores que foram diversificando
suas culturas.
Com a expansão da
exportação, esse processo tornou-se uma corrida
incontrolável, atraindo para o local um capital dinâmico e predador
utilizando como discurso o enriquecimento fácil e a fartura de
empregos. Ambos os fatores não aconteceram, primeiro porque os
grandes proprietários que não conheciam a região expulsaram das
terras as pessoas que tradicionalmente as usavam sazonalmente para a
criação de animais bovinos e equinos. Num segundo momento, com a
mecanização, tirou do campo aquelas pessoas que
acreditavam num emprego duradouro. Os empregos tornaram-se sazonais e
eventuais, sem carteira assinada e sem garantia. Num terceiro
momento, comunidades existentes nos Gerais, que
praticavam a agricultura familiar, foram totalmente
desestruturadas.
Este fenômeno gerou uma situação
esdrúxula, pois os camponeses ao serem expulsos das terras foram-se
agregando ao redor dos postos de serviços implantados ao longo das
rodovias para dar sustentação aos novos empreendimentos. Os homens
trabalhavam irregularmente em qualquer tipo de serviço para
sobreviverem, as mulheres mais vividas trabalhavam como domésticas,
as mais novas foram se prostituindo nos dinâmicos postos de serviços
que da noite para o dia se transformavam em verdadeiros polos
urbanos.
Só para citar o exemplo do oeste
da Bahia, vejam o caso da cidade de Luís Eduardo
Magalhães, que há bem pouco tempo era só um posto de
gasolina, vejam Roda Velha, que era somente um ponto de parada, vejam
o exemplo de Rosário do Oeste, que até ontem era
somente Posto do Rosário e por aí vai.
Construir um caminho para fortalecer
ou implantar uma educação criativa e a pesquisa que leve em
consideração as vocações regionais pode ser a agulha da bússola
— Altair Sales Barbosa.
Portanto, os rios foram secando em
função do desmatamento, o desaparecimento de
córregos menores e lagoas já vem acontecendo desde o início da
década de 80. Eu mesmo, levei à região várias emissoras de
televisão de nível nacional e internacional alertando para a
situação. Foram mais de 16 programas a nível nacional e
internacional. O grande poeta, escritor, gênio e músico Elomar
Figueira de Melo já alertava através de suas crônicas
musicais o que estava acontecendo no Sertão-de-Dentro,
como ele denomina os Gerais, mas os políticos do
litoral nunca se atinaram.
Outra coisa importante a salientar é
que as cidades e dezenas de povoados ao longo do Corrente
foram o berço de pessoas de expressão internacional,
intelectualmente falando, como o escritor Ozório Alves de
Castro, que inspirou Guimarães
Rosa; como o escritor, educador e cientista político Clodomir
de Morais, o único brasileiro a desfilar em carro aberto
com Yuri Gagarim, além de criar várias
Universidades mundo afora; como o Mestre Guarany,
criador das imortais carrancas do São Francisco; ou como Raimundo
Sales de Correntina, exímio inventor. Essas pessoas, só
para citar algumas, aprenderam observando os rios que passavam. Por
isso o rio, para essa imensa população, é muito mais sagrado do
que se imagina. E a manifestação e a revolta do povo de Correntina,
acontecida recentemente nas fazendas do rio Arrojado, já estava
escrita nas estrelas, como nos canta
Tetê Espíndola.
E, se providências não forem
tomadas no sentido de devolverem à população o pouco que lhes
resta de mais sagrado, outras manifestações semelhantes acontecerão
nas regiões do Cerrado,
pois todos nós padecemos do mesmo mal.
Outra coisa a frisar é que não é
a falta de chuvas que provoca tal situação, e sim o
rebaixamento dos aquíferos. Além do que as águas das
chuvas que precipitam encontram o solo desprotegido, fazendo com que
o escoamento seja mais rápido e o transporte de sedimentos aumente
de forma desproporcional, avolumando-se o assoreamento. É o início
do fim...
IHU On-Line – O que pode
ser feito a partir de agora para reverter esse quadro?
Altair Sales Barbosa -
Muitos me perguntam o que tem que ser feito agora. Para responder
esta questão teria que enumerar vários pontos, o que tomaria muito
espaço e não é este o caso no momento, mas construir um caminho
para fortalecer ou implantar uma educação criativa e a pesquisa que
leve em consideração as vocações regionais pode ser a agulha da
bússola. O prejuízo já ocorrido, este é irreversível, dentro dos
parâmetros de conhecimento que atualmente possuímos.
Fonte IHU
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