Prefácio
a Uberização: A Nova Onda do Trabalho Precarizado Editora Elefante.
por Ricardo Abramovay* –
A explosão da cultura digital durante o Século XXI
revigorou os mais importantes ideais emancipatórios, combalidos pela queda do
muro de Berlim. As pessoas e as comunidades passariam a dispor dos meios
técnicos que lhes permitiriam estabelecer comunicação direta umas com as
outras.
A informação, os bens e os serviços poderiam ser oferecidos de forma
eficiente sem que as condições objetivas de sua produção estivessem nas mãos de
grandes empresas. O mantra da teoria microeconômica segundo o qual eficiência
supõe concentração de recursos parecia desmentido pela comunicação em rede e,
mais ainda, pelo surgimento dos smartphones e de equipamentos como as
impressoras em três dimensões e as máquinas de corte a laser. Dispositivos
eletrônicos com um poder cada vez maior estavam nas mãos das pessoas e operavam
em rede. A oposição entre o pinguim e o Leviathã, no título do importante livro
de Yochai Benkler, apontava para a importância cada vez maior dos “commons”, de
tudo aquilo que operava para ampliar o domínio da esfera pública não só sobre a
vida social, mas sobre a própria relação entre sociedade e natureza. Jeremy
Rifkin foi além, vinculando a abundância trazida pela revolução digital ao
próprio fim do capitalismo. A sharing economy, cujas expressões mais
emblemáticas são a Wikipédia e os softwares livres, exprimiria a capacidade
humana de cooperação, não apenas entre pessoas que se conhecem, num círculo
limitado por laços de parentesco e amizade, mas de forma anônima, impessoal e
massificada. As bases materiais para a transição do reino da necessidade para o
de liberdade pareciam asseguradas.
Não demorou muito para ficar claro que esta
narrativa edificante subestimava a mais importante transformação do capitalismo
do Século XXI: a emergência da empresa-plataforma. O aumento na capacidade de
processar, coletar, armazenar e analisar dados foi de tal magnitude que seu
custo, que era de onze dólares por gigabyte em 2000 caiu para US$ 0,02 em 2016.
Esta foi uma das bases objetivas não só para que Google e Facebook estivessem
entre as mais poderosas empresas do mundo, mas também para que um conjunto cada
vez mais amplo de bens e serviços fossem oferecidos não mais por empresas ou
conglomerados especializados, mas por plataformas que, a custo quase zero,
tinham o poder de conectar imediatamente consumidores e varejistas, reduzindo
os custos envolvidos em suas transações.
A Amazon, assim, deixa de ser uma livraria e uma
loja de discos e passa a promover a ligação entre milhares de fabricantes e
comerciantes a consumidores de todo o mundo. E o poder da Amazon aumenta à
medida que ela consegue ampliar o alcance de sua rede. Quanto mais gente
comprar e vender por meio de sua plataforma, maior será a dificuldade de que
surjam concorrentes capazes de enfrentar o seu poder. O mesmo ocorre com a
Netflix ou com o mecanismo de busca do Google. É a lógica do “vencedor leva
tudo” em que quem não estiver dentro da rede terá dificuldade para obter os
benefícios que ela propicia.
O poder das empresas-plataforma
O mais impressionante é que estas
empresas-plataforma estão entre as mais valiosas e poderosas do mundo atual,
sem que, para isso, precisem deter patrimônio, propriedades, estoques,
almoxarifado, frota de caminhões, máquinas ou custosas instalações. A Walmart,
por exemplo, possui mais de 150 centros de distribuição, uma frota de seis mil
caminhões que rodam 700 milhões de milhas anualmente para levar produtos a
4.500 lojas só nos Estados Unidos. Seus ativos em 2016 valiam US$ 180 bilhões.
Com tudo isso, a Walmart vale menos que a chinesa Alibaba que vendeu um trilhão
de dólares em 2016 e que atende mensalmente um público maior que a população
norte-americana.
O livro de Tom Slee tem o mérito de desmistificar a
aura de esperança com que a sharing economy foi encarada em seus primórdios.
Ele é inspirado, como diz o autor na conclusão, por um sentimento de traição:
muito longe de exprimir a cooperação direta entre indivíduos, o suposto
compartilhamento deu lugar à formação de gigantes corporativos cujo
funcionamento é regido por algoritmos opacos que em nada se aproximam da utopia
cooperativista estampada em suas versões originais. O livro apoia-se numa
sólida pesquisa empírica mostrando consequências sociais desastrosas das
corporações digitais. Sob a retórica do compartilhamento escondem-se a
acumulação de fortunas impressionantes, a erosão de muitas comunidades, a
precarização do trabalho e o consumismo.
O AirBnb, por exemplo, acabou por estimular que, em
cidades turísticas importantes, como Barcelona, Paris e Amsterdã, as pessoas
vendessem seus domicílios a empresas que operavam como se fossem indivíduos. Ao
mesmo tempo, em muitas destas cidades o turismo se expandiu muito além dos
limites da rede hoteleira. No verão de 2014, mostra Slee, o bairro parisiense
do Marais recebeu 66 mil visitantes, mais que os 64 mil habitantes que ali
residem de forma permanente. O resultado é que as regiões centrais das cidades
atingidas, cujo atrativo era exatamente o de conciliar a beleza arquitetônica
com o cotidiano de quem ali vivia, corriam o risco de serem convertidas em
cenários de Disneylândia. Não é à toa que várias prefeituras impuseram
regulamentações limitando o poder destes novos protagonistas da degradação
urbana.
A ideia de que se eu precisar de algo posso contar
com a ajuda dos outros e que isso vai gerar sentimentos e práticas de
reciprocidade acabou se convertendo na oferta generalizada de trabalhos mal
pagos e sem qualquer segurança previdenciária. Num ambiente em que os
sindicatos estão cada vez mais fracos e os direitos trabalhistas sob aberta
contestação, os resultados são devastadores. A utopia de que a relação peer to
peer ampliaria o bem-estar, reduziria o desperdício e traria significado humano
para as relações econômicas, tão fortemente cultivada pelo discurso do Vale do
Silício, transformou-se no seu contrário, como mostra de forma documentada e
inteligente Tom Slee. E o curioso é que a tão badalada sharing economy inclui gigantes
digitais como Uber, Lyft e Task Rabit, mas nunca as cooperativas do sistema
espanhol Mondragón, as inúmeras iniciativas de gestão comunitária de recursos
ecossistêmicos comuns ou o que na América Latina se conhece como economia
solidária.
Vetores de concentração de renda
Este livro é uma importante denúncia contra o
cinismo dos que se apresentam ao grande público como promotores da cooperação
social e do uso parcimonioso dos recursos, mas que na verdade estão entre os
mais importantes vetores da concentração de renda, da desregulamentação
generalizada e da perda de autonomia dos indivíduos e das comunidades no mundo
atual. Um dos capítulos mais interessantes deste livro é o que trata da
confiança. A resposta do Vale do Silício aos estudos que mostravam a erosão da
confiança na sociedade norte-americana a partir dos anos 1980 consistiu em
enaltecer os sistemas digitais de que atribuem reputação ao comportamento dos
indivíduos e permitem, supostamente, que todos saibam quem é confiável. Slee
mostra que estes sistemas são altamente distorcidos e que em hipótese nenhuma
eles poderiam substituir o sentimento de identidade e pertencimento comunitário
que formam a base real de qualquer democracia.
Uma das mais dramáticas consequências do
capitalismo de plataforma, é a drástica redução da responsabilidade
socioambiental corporativa. Slee cita diversos exemplos em que, embora as
plataformas sejam as maiores beneficiárias das operações comerciais que
intermediam, elas renunciam a qualquer responsabilidade sobre suas
consequências. E os gigantes digitais que hoje aparecem como expressão
emblemática do capitalismo de plataforma insistem na narrativa de que são
simples intermediários e que a responsabilidade pela relação comercial entre os
que oferecem os bens e os serviços e os que os demandam não lhes cabe.
O livro de Tom Slee não é uma condenação ou uma
expressão de ceticismo diante do fenômeno da cooperação social. É claro que a
vida social depende do fato de os indivíduos e as organizações, nas mais
variadas dimensões de suas vidas (inclusive na economia) compartilharem não
apenas bens e serviços, mas sobretudo informação e conhecimento. As inúmeras
práticas de ajuda mútua, que vão desde o cuidado com as crianças dos vizinhos
até a formação de sistemas informais de microfinanças são generalizadas no
mundo todo. Além disso, no interior da cultura digital há várias plataformas em
que o compartilhamento se realiza, de fato, entre pessoas ou entre empresas,
sem que isso abra caminho à concentraçãoo de fortunas e de poder que marca a
face hoje mais visível e à qual Tom Slee dedica mais atenção da sharing
economy. Parte crescente da inovação tecnológica contemporânea apoia-se em
práticas pertencentes ao knowledge commons. Da mesma forma que ocorre com
inúmeras situações de recursos naturais geridos por comunidades como
pertencentes a todos (e cujo estudo respondeu pelo prêmio Nobel de Economia a
Elinor Ostrom), há um vasto campo de “commons” cuja administração não é
centralizada num punhado de empresas altamente lucrativas.
É claro que o avanço cada vez maior da
conectividade e dos meios para que ela chegue ao maior número de pessoas pode
ser benéfico. Mas a distância entre conexão e bem-estar social será tanto maior
quanto mais poderosos forem os gigantes digitais que determinam as regras sob
as quais o maior bem comum criado pela inteligência humana, a internet,
funciona. Contrariamente à crença dos protagonistas dominantes da sharing
economy, a revolução digital só vai melhorar a vida das sociedades
contemporâneas se ela se apoiar em real abertura, em participação transparente
e em redução das desigualdades. O livro de Tom Slee é uma contribuição
fundamental nesta direção.
- Ricardo
Abramovay é
professor titular do Departamento de Economia da FEA. Autor de “Muito Além
da Economia Verde” (Ed. Planeta Sustentável, SP, 2012). Coautor de Lixo
Zero: Gestão de Resíduos Sólidos para uma Sociedade Mais Próspera.
Página
oficial do livro: http://editoraelefante.com.br/produto/uberizacao/
Release principal: http://editoraelefante.com.br/uber-airbnb-taskrabbit-e-o-lado-menos-cool-dos-apps/
Página do livro no Facebook: https://www.facebook.com/uberizacao/
Evento de lançamento no Facebook: https://www.facebook.com/events/1952846788296690/
Release principal: http://editoraelefante.com.br/uber-airbnb-taskrabbit-e-o-lado-menos-cool-dos-apps/
Página do livro no Facebook: https://www.facebook.com/uberizacao/
Evento de lançamento no Facebook: https://www.facebook.com/events/1952846788296690/
Fonte: ENVOLVERDE
Nenhum comentário:
Postar um comentário