Paradoxo
na economia: “a gente sabe o que funciona e estamos fazendo exatamente o
contrário”.
por Marco Weissheimer, do portal
Sul 21 –
“Estamos destruindo o planeta em proveito de uma
minoria, enquanto os recursos necessários ao desenvolvimento sustentável e
equilibrado são esterilizados pelo sistema financeiro mundial. (…) Quando oito
indivíduos são donos de mais riqueza do que a metade da população mundial,
enquanto 800 milhões de pessoas passam fome, achar que o sistema está dando
certo é prova de cegueira mental avançada”. Essa é uma das teses centrais do
novo livro do economista Ladislau Dowbor, “A era do capital improdutivo. A
nova arquitetura do poder: dominação financeira, seqüestro da democracia e
destruição do planeta” (Outras Palavras/Autonomia Literária), que analisa a
captura dos processos produtivos e políticos da sociedade mundial pelo capital
financeiro.
Na avaliação do professor titular de Pós-Graduação
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o neoliberalismo
repousa sobre “balelas” e a concentração de renda e de riqueza no planeta
atingiu níveis obscenos. Em entrevista ao Sul21, Dowbor fala sobre
o seu novo livro e sobre os desdobramentos dessa hegemonia do capital
especulativo no Brasil. O déficit no Brasil, defende o economista, não foi
criado por gastos públicos, mas sim pelo desvio dos gastos públicos para os
bancos no serviço da dívida pública:
“Muito curiosamente, o teto de gastos paralisa as
atividades próprias do Estado em educação, saúde, segurança, etc., mas libera a
continuidade da transferência de recursos públicos para os bancos. O Brasil
tem, hoje, cerca de 60 milhões de adultos que estão negativados. Essas pessoas
não conseguem pagar suas contas relativas a comprar anteriores e, muito menos,
efetuar novas compras. E as empresas também estão endividadas. Esse sistema é
absolutamente inviável”.
Sul21: O que é, exatamente, o capital improdutivo,
conceito central do teu novo livro?
Ladislau
Dowbor: Nós
devemos distinguir o investimento, produtor de bens e serviços, que desenvolve
atividades econômicas, da aplicação financeira. São dois campos distintos. No
Brasil, se confunde, voluntariamente, investimento e aplicação financeira.
Quando você compra títulos do Tesouro, faz especulações sobre moedas ou compra
ações poderá até ganhar bastante dinheiro, movimentar um monte de papeis, sem
que, com isso, apareça sequer um par de sapatos, uma bicicleta ou uma escola a
mais no país. Você não gerou nada. Se você ganhou bastante, está se apropriando
do que outra pessoa perdeu. Se você previu que o dólar ia subir, comprou na
baixa e ele subiu, quem te vendeu perdeu dinheiro.
Toda essa esfera de aplicações financeiras é
essencialmente especulativa, não contribuindo para o processo produtivo. O que
contribui para o processo produtivo é o investimento que financia atividades
que geram bens, serviços, empregos, impostos e que fazem a economia girar.
Falamos de capital improdutivo quando passa a render mais você aplicar em
papeis do que investir em alguma coisa. No mundo, hoje, o PIB correspondente à
produção de bens e serviços aumenta em média algo entre 2 e 2,5% ao ano,
enquanto que o rendimento dos papeis aumenta cerca de 7% ao ano. A explicação é
muito simples. O dinheiro vai para onde rende mais. Gerou-se um sistema em que
você ganha mais dinheiro simplesmente teclando no computador do que
efetivamente produzindo. Isso é a expansão do capital improdutivo.
Há uma segunda questão importante. O capital
especulativo e as aplicações financeiras passam a funcionar em um processo de
progressão geométrica. Um bilionário que aplica seu dinheiro a 5% ao ano
ganhará 137 mil dólares por dia. Ele não consegue gastar tudo e esse dinheiro é
reaplicado, fazendo com que, a cada dia, o juro sobre o estoque de recursos
aumente. Temos aí uma expansão que, em termos financeiros, se chama efeito bola
de neve. Esse efeito faz com que grandes fortunas passam a ter muito mais
dinheiro do que conseguem gastar sem precisar desenvolver nenhuma atividade de
produção concreta de bens e serviços. Ou seja, ele não está sendo útil para a
sociedade.
Harvey (David Harvey) tem razão. Esse capital deixa
de ser capital e passa a ser patrimônio, pois não entra no processo produtivo
como um elemento dinamizador. Isso deforma radicalmente a economia.
Conforme
cálculo feito pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), quando você
faz uma transferência de renda por meio de um programa como o Bolsa Família,
para cada real investido ele vai gerar R$ 1,78 de aumento do PIB. Isso acontece
porque você colocou o dinheiro na mão de alguém que não vai fazer aplicação
financeira ou comprar letras do Tesouro, mas sim que vai consumir. Esse consumo
vai incrementar a atividade do comerciante, que vai encomendar mais do
produtor, o que vai gerar mais emprego, em um efeito econômico multiplicador. O
essencial da deformação que vivemos é esse deslocamento da forma de remuneração
do capital produtivo relativamente à sua apropriação pelo sistema financeiro.
“Temos uma expansão das capacidades de produzir,
mas não da produção efetivamente”. (Foto: Maia Rubim/Sul21).
Sul21: Enquanto isso, produtos seguem sendo
produzidos. Não deixamos de produzir sapatos, automóveis, roupas e tudo mais.
Há um capital produtivo que segue participando da produção.
Como ele se
relaciona com o capital improdutivo e como um sistema com essas características
pode sobreviver? Se aplicar no sistema financeiro é mais rentável, porque um
produtor de calçados seguirá fabricando calçados?
Ladislau Dowbor: Nas últimas décadas, tivemos
avanços tecnológicos fenomenais. Hoje produzimos automóveis com muito mais
rapidez e menor custo, utilizando inclusive robôs e coisas do gênero. Na
agricultura, temos a expansão da chamada agricultura de precisão, onde a
aplicação de novas tecnologias também permite um aumento de produtividade
fantástico. Ou seja, nós temos uma expansão das capacidades de produzir, mas
não da produção efetivamente porque esta vai depender do destino final do
produto. Um empresário, se não tem para quem vender, por mais que os sapatos
que ele produz sejam úteis, ele fecha.
Então, o equilíbrio de remuneração das diversas
atividades é vital para uma economia funcionar. Se você tem um dos atores que
se apropria de muito mais renda do que os outros, acaba travando o processo
como um todo. É muito interessante pegar o exemplo da reconstrução da Europa
após a Segunda Guerra Mundial. A Europa criou o Estado de Bem Estar, passando a
remunerar os trabalhadores proporcionalmente ao aumento da produtividade. Na
Alemanha, por exemplo, todo aumento da produtividade de uma empresa é revertido
automaticamente em aumento de salário. E o aumento da produção gera mais mercado.
Há um equilíbrio no conjunto do sistema.
Por outro lado, os impostos gerados neste processo
são utilizados como salário indireto. Na Alemanha, você tem escola pública
gratuita, universidade pública e gratuita. Há escolas privadas, mas, mesmo
nestas, o professor é pago pelo Estado. Isso é considerado um investimento nas
pessoas.
Esse salário indireto é extremamente importante. As pessoas não vivem
só com sua renda que entra no bolso. O canadense tem um salário inferior ao
americano, mas ele tem a creche, a escola e o hospital de graça, tem piscinas
em todas as escolas. Ou seja, o imposto, ao contrário do que ocorre no Brasil,
onde ele é chamado de gasto, é transformado em salário indireto, em um
investimento nas pessoas.
Esse modelo gera bem estar e é muito mais produtivo
do que planos de saúde e coisas do gênero.
Quando você faz saúde pública, por
exemplo, se concentra em evitar as doenças. Já o sistema privado de saúde está
interessado na doença. Ele é a indústria da doença. Se você vai em países como
Suécia, França, Alemanha ou Canadá, verá um sistema de saúde que está
preocupado com a qualidade da água, com a ausência de agrotóxicos nos alimentos
e com a diminuição de emissão de gases pelos veículos nas cidades, para citar
apenas essas três coisas. Ou seja, está preocupado com o conjunto dos elementos
que geram a doença. O resultado é muito interessante. No Canadá, por exemplo,
você gasta 3.400 dólares/ano por pessoa em saúde. Nos Estados Unidos, é mais do
dobro disso. No entanto, a saúde média da população do Canadá é
incomparavelmente superior. É simplesmente mais produtivo.
Quando você canaliza os recursos de maneira
adequada, consegue-se esse tipo de resultado. Destinar recursos para a saúde
pública, para a pequena e media empresa, para reforçar o salário mínimo e
dinamizar o consumo de bens simples: tudo isso é organização econômica e social
que chamamos de governança. O governo é a máquina administrativa. Governança é
fazer o conjunto funcionar.
No caso do Brasil, quando um dos grupos sociais, como
o setor financeiro, se torna muito mais poderoso do que os milhões de pequenos
e médios produtores e passa a apropriar dos recursos destes, por meio de juros,
e do próprio governo, por meio de leis que, por exemplo, os isentam de
impostos, temos uma deformação sistêmica e o processo trava.
Além do que ocorreu na Europa, podemos citar o
exemplo do New Deal, nos Estados Unidos, ou o que foi feito na Coréia do Sul.
Todos eles se basearam em não enriquecer os ricos, mas em desenvolver salário
direto forte para a população, o que gera demanda para as empresas, e impostos
elevados, mas orientados para investimentos em infraestruturas que barateiam os
processos produtivos e em políticas nas áreas de educação, saúde e cultura.
Esse investimento nas pessoas aumenta a produtividade do sistema como um todo.
O paradoxo é esse: a gente sabe o que funciona e estamos fazendo exatamente o
contrário.
Sul21: No seu livro você aponta que esse processo
de deformação sistêmica da economia mundial anda de mãos dadas com o fenômeno
da captura da esfera da política pelo sistema financeiro. Esse diagnóstico
parece apontar para um cenário bastante sombrio quanto ao futuro da democracia,
não?
“Temos um
endividamento generalizado dos governos no mundo com os grandes bancos”. (Foto:
Maia Rubim/Sul21).
Ladislau Dowbor: Você veja o desastre hoje nos
Estados Unidos. Donald Trump se elegeu dizendo que a Hillary Clinton era ligada
ao sistema financeiro. Eleito, quem ele nomeou para chefiar a sua equipe
econômica? O presidente do Goldman Sachs, o maior banco mundial. No Brasil, em
nome da resolução de problemas econômicos, tivemos um Joaquim Levy na Fazenda e
hoje temos um banqueiro comandando o Banco Central e um banqueiro no Ministério
da Fazenda. Na França, tivemos o peso do sistema financeiro depositado na
candidatura de Macron.
Temos, de modo geral, um endividamento generalizado
dos governos no mundo que os colocam numa relação de dependência com os grandes
bancos, donos da dívida. Há uma mudança dos equilíbrios políticos no planeta.
Estávamos acostumados com a ideia de que, numa democracia, você elege pessoas
que representam os anseios da população. No entanto, hoje, há um desgarramento
entre o processo político da eleição e o processo econômico. Não basta a
democracia política. Se você não tem também democracia econômica, o sistema
simplesmente não funciona. Escrevi um livro chamado “Democracia econômica”, já
publicado em várias línguas, que ajuda a entender esse processo (Conheça as obras de Ladislau
Dowbor, disponíveis em sua página).
Voltando ao argumento central: onde o sistema
funciona? Ele funciona quando se tem uma forte organização dos fluxos dos
recursos financeiros para reforçar a capacidade de compra das populações e a
capacidade do Estado fazer investimentos em infraestrutura e fazer políticas
sociais. Esse processo dinamiza as atividades, aumenta o volume de impostos
tanto pelo consumo quanto pela atividade empresarial e pelos empregos gerados.
Esses impostos fecham a conta sem gerar um déficit.
O déficit no Brasil não foi
criado por gastos públicos, mas sim pelo desvio dos gastos públicos para os
bancos no serviço da dívida pública. Muito curiosamente, o teto de gastos
paralisa as atividades próprias do Estado em educação, saúde, segurança, etc.,
mas libera a continuidade da transferência de recursos públicos para os bancos.
Sul21: Apesar da crise de 2007-2008, o
neoliberalismo segue sendo hegemônico e parece estar apoiado em algumas ideias
que se enraizaram no senso comum. Em uma das primeiras edições do Fórum Social
Mundial, em Porto Alegre, o economista Francisco Louçã disse que a esquerda
precisava ter algumas ideias fortes para enfrentar a força ideológica do
neoliberalismo. Que ideias poderiam ser estas, na sua opinião?
(Foto:
Maia Rubim/Sul21)
Ladislau Dowbor: O neoliberalismo navega nos
conceitos da eficiência e da competitividade. Isso é uma balela. Ele está, na
verdade, drenando a capacidade produtiva da sociedade ao se apoderar de
recursos que poderiam ser investidos nas empresas e nas pessoas. O Brasil tem,
hoje, cerca de 60 milhões de adultos que estão negativados. Essas pessoas não
conseguem pagar suas contas relativas a comprar anteriores e, muito menos,
efetuar novas compras. As empresas também estão endividadas.
A ideia que embasa o funcionamento desse sistema é
simples. Se você vai comprar um fogão em uma loja, encontrará um preço a vista
– 420 reais digamos – e um preço a prazo que é o dobro disso. Esse fogão saiu
da fábrica a 200 reais, pagou 40% de imposto e tem o ganho da loja que o está
vendendo por 420. Mas, na verdade, eles querem vender a 840 reais. A grande
massa da população, enganada pela prestação que cabe no bolso e pelo juro
apresentado ao mês, acaba pagando 840 reais por esse fogão. O cidadão que não
tem capacidade de comprar a vista vai pagar 840 reais por um fogão de 200.
Esse sistema é absolutamente inviável, pois
esteriliza a capacidade de reinvestimento da empresa, que está ganhando muito
pouco, e a capacidade de compra da população. No meio desse processo, há um
intermediário que tem um ganho imenso. É uma economia de intermediários não
produtivos.
Buscar um novo equilíbrio significa taxar
fortemente o capital improdutivo e reduzir os impostos sobre o consumo. Não é
preciso aumentar a carga tributária. Basta começar a cobrar dos improdutivos e
desonerar as atividades que dinamizam a economia.
Fonte: ENVOLVERDE
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