Mulher, solo e pobre: Por que a maioria das mães solo brasileiras vive abaixo da linha da pobreza?
Por Victória Damasceno,
para a Revista
Azmina
Não sobra nada. É só o dinheiro
para comer mesmo. Não dá para fazer muita coisa”. É desta forma
que Cinthia Fernandes, de 30 anos, moradora da periferia de Osasco,
na grande São Paulo, descreve seus gastos mensais. Mãe solo de
cinco crianças de um a 12 anos, Cinthia é a responsável por
alimentar os filhos, a sogra e o sobrinho com os R$ 400 que ganha
como vendedora de milho no centro da cidade. O marido, que também
compunha a renda da casa, foi preso por tráfico de drogas.
Além do dinheiro de Cinthia, a casa
conta com R$ 900 mensais de sua sogra, Maria Belém Pereira, de 55
anos, que trabalha em um salão de beleza e assume o aluguel de R$
620 e as contas de água, luz e gás. No total, a renda na casa é de
aproximadamente R$ 162,50 por pessoa por mês.
Cinthia é parte dos 26,5% dos
brasileiros considerados pobres segundo a Síntese de Indicadores
Sociais (SIS) do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística
(IBGE). O órgão utiliza o parâmetro adotado pelo Banco Mundial
para definir a pobreza: famílias que vivem com até 5,5 dólares por
dia, por pessoa no domicílio. Mas dentro desse grupo de brasileiros,
Cinthia faz parte de um outro grupo: o das mulheres que sustentam a
casa com filhos de até 14 anos. Segundo o levantamento do IBGE,
56,9% dessas mulheres estão abaixo da linha da pobreza. E se a raça
for levada em conta, o cenário piora: 64,4% das mães negras vivem
nessas condições.
No ano de cotação da pesquisa,
2016, o valor 5,5 dólares por dia equivalia a cerca de R$ 406
mensais. Se atualizarmos o valor para hoje, qualquer pessoa que viva
com até de 646 reais, segundo a cotação do dia, pode ser
considerado pobre. Em 2016, o contingente de brasileiros nessa
situação correspondia a 25,7% da população, e com o aumento de 2
milhões de pessoas, 2017 fechou o ano com 26,5% de brasileiros
vivendo em situação de pobreza.
Segundo o IBGE, a recessão
econômica e o desemprego foram os principais fatores para o
aprofundamento das desigualdades. Entre 2014 e 2017, a taxa de
desemprego subiu de 6,4% para 12,5%. “O índice de desigualdade e a
taxa de pobreza vinham diminuindo, mas a crise gerou aumento”,
afirma o analista da pesquisa do IBGE Pedro Rocha. Além da crise, o
analista explica que as recentes decisões do governo de Michel Temer
aprofundaram as desigualdades devido às medidas de austeridade
fiscal, aprovação de propostas que aumentam a precariedade do
trabalho e corte nos benefícios sociais como o Bolsa Família.
Sociedade patriarcal coloca
essas mulheres em vulnerabilidade
Nesse cenário, as populações mais
vulneráveis acabam sendo as mais atingidas. Entram aí as mulheres
que criam seus filhos sem um companheiro. “Como crianças não
possuem rendimento, a renda da mulher que é mãe solo é distribuída
entre os filhos, além de ter agravantes como quando a mãe
precisa deixar o trabalho para cuidar dos filhos”, explica Pedro.
As mulheres como Cinthia não são
poucas. Entre 2005 e 2015, o Brasil ganhou 1,1 milhão de famílias
chefiadas por mulheres. Segundo o IBGE, em 2005 o Brasil tinha cerca
de 10,5 milhões de famílias cujo a pessoa de referência eram mães
solo. Em 2015, esse número subiu para 11,6 milhões, o que
corresponde a 26,8% das famílias no Brasil. Segundo dados da mesma
pesquisa, famílias compostas por um homem sem cônjuge e com filho
representam apenas 3,6%.
A pouca representatividade de pais
solos chefes de família se relaciona com a forma como a organização
da sociedade brasileira, que resiste à ideia de que os pais cuidem
dos filhos ao mesmo tempo que promove a lógica do homem provedor.
Este é o diagnóstico da psicóloga social Belinda Mandelbaum,
responsável pelo Laboratório dos Estudos da Família do Instituto
de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Para Belinda, o
Brasil ainda alimenta a ideia de que homens devem ir para o trabalho
enquanto cuidar de crianças é coisa de mulher.
“Isso tem a ver com um
modelo de sociedade fortemente patriarcal,
que coloca a atividade de
cuidado com as crianças como uma atividade feminina”,
diz a especialista
De acordo com o Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), com base no Censo Escolar de 2011, o Brasil tem 5,5
milhões de crianças sem o nome do pai na certidão de nascimento.
Dados mais atualizados mostram que só em São Paulo há 750 mil
pessoas, entre zero e 30 anos, sem o nome do pai no registro, segundo
o Governo do Estado.
Marta* é uma das mulheres que
compõem estes dados. Mãe de quatro crianças, sendo dois gêmeos,
cada gravidez foi fruto de um pai diferente. O comum entre eles é o
abandono: os três homens responsáveis pelas crianças as
abandonaram e sequer pagam a pensão estabelecida por lei. Aos
30 anos, ela trabalha como empregada doméstica em uma única
residência e ganha R$ 1.600 por mês.
Essa renda a coloca dentro da
estatística da linha da pobreza: R$ 320 por pessoa na casa,
equivalente a 49% do valor teto estabelecido pelo Banco Mundial para
que a pessoa seja considerada pobre.
Com um aluguel de R$ 750 por uma
casa de dois cômodos e um banheiro, Marta não consegue proporcionar
para si ou para os filhos momentos de lazer. “O que sobra das
contas é para o mercado. Dificilmente dá para fazer algo diferente
disso”, conta.
“É uma vida muito
corrida, você tem que abrir mão de muita coisa.
Você tem que viver em
função do seu trabalho e dos seus filhos”
Mulheres negras vivem ainda
mais vulnerabilidades
A pesquisa do IBGE realizou ainda um
recorte racial sobre as famílias sustentadas por mães solo.
Nos
domicílios cujos responsáveis são mulheres pretas ou pardas sem
cônjuge e com filhos até 14 anos, 25,2% dos moradores tinham pelo
menos três restrições às dimensões analisadas. “Esse é também
o grupo com mais restrições à proteção social (46,1%) e à
moradia adequada (28,5%)”, diz a pesquisa. As diferenças
históricas de desigualdade racial são as principais causadoras de
altas taxas de desemprego, menor rendimento e escolaridade entre os
negros, de acordo com Pedro Rocha.
“Sempre que fizermos o recorte
racial, as desigualdades vão se sobressair em relação aos outros”,
afirma o analista do IBGE.
É o caso de Joyce Cristina, mãe de
Jamilly de 7 anos, e moradora de Mogi das Cruzes, em São Paulo.
Aos
24 anos, Joyce vive em uma casa de dois cômodos no bairro de
Jundiapeba, ao lado do marido e da filha.
Ela se enquadra no grupo porque o
IBGE leva em conta na pesquisa a pessoa de referência na família,
ou seja, quem é que tem rendimentos. Apesar de ser casada, Joyce é
a única responsável pela renda da casa. “Meu marido é pedreiro e
dificilmente consegue trabalho. Quando consegue, muitas vezes as
pessoas pagam com alimentos”, conta.
Joyce é beneficiária do Bolsa
Família e faz parte das 46,9% de pessoas negras ocupadas por
trabalho informal no Brasil. Tem renda fixa de cerca de R$ 300 por
mês, o que faz com que sua ocupação de doméstica corresponda a
menos de 50% do R$ 688 correspondentes à média salarial desta
categoria, segundo o IBGE.
Seu dia a dia, é corrido. As
diárias como trabalhadora doméstica e o auxílio de R$ 120 do Bolsa
Família não são suficientes para arcar com os custos da casa. Sem
casa própria, o valor do seu aluguel é de R$ 350, além das contas
de água e luz. Para aumentar o rendimento do mês e conseguir cuidar
da filha, às vezes procura fazer bicos, mas conta que não consegue
faturar mais de um salário mínimo. “Mesmo trabalhando de domingo
a domingo, juntando os picados, não dá para fazer nada além de
pagar as contas”, diz.
Para Belinda Mandelbaum, a
sobrecarga das mulheres negras é fruto do passado escravocrata do
Brasil, que nunca deu à população negra a possibilidade de
ascensão social por meio do acesso à educação. “É um ciclo que
se auto-alimenta. Sem educação de qualidade a população negra, em
especial as mulheres, terão menos chances de acessos à empregos
melhores e menos condições de realizar uma disputa salarial”,
explica. Para ela, esses fatores compõem um quadro que não somente
aprofunda as desigualdades, mas as perpetuam. “Cabe a sociedade e
ao Estado promover situações que rompam com esse círculo vicioso.”
Além da falta de oportunidade para
o desenvolvimento social, a saúde mental deste grupo de mulheres se
tornou outro fator que intensifica sua vulnerabilidade. Belinda conta
que a falta de políticas públicas na área da saúde, do trabalho e
da assistência social às expõem à “toda sorte de violências”.
“Para garantir à
sobrevivências dos seus,
essas mulheres aceitam
condições precárias de trabalho
e com sobrecarga de esforço
físico extenuante”,
afirma Bellinda.
Esses fatores geram situações de
tensão e cansaço constante, que se reverberam para dentro da
família e podem até mesmo se transformar em situações de
violência. “Há uma ausência de amparo que gera falta de
políticas públicas de proteção social para estas mulheres, o que
repercute negativamente na sua saúde mental e na sua relação com
os entes queridos”, conclui.
Sem familiares que apoiem a criação
da filha, Joyce Cristina é uma das tantas mulheres que se expõe à
situações precárias de trabalho para garantir a sobrevivência de
sua família. Para ela, a falta de oportunidades de desenvolvimento
pessoal são os fatores que a colocaram no grupo de mulheres que
vivem na linha da pobreza. Mas mesmo no trabalho doméstico, sonha em
ajudar outras mães. “Quero abrir uma creche”, conta. O sonho
incomum é um misto de amor pelas crianças e cuidado com outras
mulheres. “Eu me apego as crianças e acho que as mães não
deveriam abrir mão do seu trabalho porque não têm vagas nas
creches”. Joyce sonha com uma creche a preços populares, para que
as mães da periferia tenham condições de pagar, trabalhar e de
cuidar de seus filhos.
Informalidade, creches,
moradia: está tudo conectado
A creche de Joyce vira a calhar para
Cinthia Fernandes. Para ela, o mais importante é que todos os
filhos estejam na escola e tenham suas necessidades básicas
supridas. “O grosso sempre tem. Não falta pão e sempre tem uma
bolacha ou um Danone. Vivo para cima e para baixo fazendo bico para
não faltar.” Cinthia também faz parte das 40,7% das mulheres
ocupadas pelo trabalho informal. Em 2017, as mulheres em trabalhos
informais ganhavam o equivalente a 46,5% daquelas empregadas em vagas
formalizadas.
Embora quatro de seus filhos se
mantenham na escola, a ausência de vaga na creche para Miguel, de um
ano e um mês, a impede de procurar um trabalho formal. Dependendo do
bico que arranja, consegue levar os dois filhos mais novos. Quando
não é possível, sua filha Camila, de 12 anos, se torna a
responsável pela casa.
A situação se agrava ainda mais
quando são analisadas as situações de moradia dessa população.
Uma parcela expressiva de pessoas na linha da pobreza possuem
inadequações nos imóveis onde vivem. A primeira inadequação é a
ausência de banheiro exclusivo de uso da residência, ou seja, que
no dia a dia não é compartilhado com moradores de outras casas. As
demais correspondem a materiais não duráveis nas paredes externas
dos domicílios, adensamento domiciliar excessivo (quando há mais de
três pessoas por cômodo na residência), e o valor do aluguel
correspondente a mais de 30% da renda total da casa.
Das quatro inadequações, Cinthia
convive com duas delas. Moradora de um imóvel de dois cômodos e um
banheiro, há uma média de 4 pessoas por cômodo na residência. Com
um quarto e uma cozinha, a autônoma divide a noite com os outros
sete moradores da casa. As mobílias do único quarto correspondem a
uma beliche, duas camas de solteiro e uma cama de casal. Dentre
essas, há duas camas que são divididas: uma de solteiro, com quem
ela dorme com o filho mais novo, e outra de casal, onde dormem três
das quatro filhas mulheres. Além disso, seu aluguel corresponde a
51,6% da renda total da casa.
Apesar da dificuldade, não se
considera dentro da linha da pobreza. “Eu acho que tem pessoas que
estão pior que eu. Eu não me considero na linha de pobreza porque
as minhas filhas podem não ter tudo do bom o do melhor, mas não
falta nada.”
*Nome fictício usado para preservar
a identidade da entrevistada.
Fonte: ENVOLVERDE
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