Declaração universal dos direitos humanos (70 anos): um sonho acordado.
Por Clodoaldo Meneguello
Cardoso*, Jornal Unesp
Os direitos humanos não são leis
naturais ou sagradas; nem princípios metafísicos escritos nas
estrelas. Os direitos humanos são humanos! São conquistas
históricas com muito esforço e sangue na luta pelo respeito à
dignidade individual e coletiva em uma sociedade mais livre e
igualitária. Inserem-se, portanto, no campo das lutas políticas por
melhores condições da vida humana, com suas diversidades de visões,
até mesmo conflitantes.
Tudo que é humano está em processo
contínuo de transformação no espaço e no tempo. Os direitos
humanos, enquanto conjunto de valores ético-políticos ocidentais,
vêm sendo construídos principalmente nos últimos 250 anos a partir
de movimentos revolucionários e mais recentemente no diálogo, até
mesmo conflitivo, com outras culturas. A história dos direitos
humanos, portanto, não é um processo evolutivo linear
institucional: há contradições ideológicas, avanços, conquistas,
retrocessos e mutilações aqui e ali no espaço-mundo.
Às conquistas das revoluções
burguesas do século XVIII, centradas nos direitos civis e políticos,
foram agregadas dialeticamente, nos séculos XIX e XX, as conquistas
dos movimentos operários e revoluções socialistas com os direitos
sociais, econômicos e culturais. A história social revela fatos
ocultados por essa ou aquela ideologia. Todos conhecemos a
emblemática Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de
1789, mas quase não ouvimos falar da Declaração dos direitos do
povo trabalhador e explorado, proclamada na Rússia em 1918.
Finalmente, em 1948, com a
Declaração universal dos direitos humanos surge o primeiro acordo
internacional, em favor da paz mundial, entre nações de diferentes
ideologias. Mas isso somente depois dos horrores sem fim da Segunda
Grande Guerra, em que nações “civilizadas” – Alemanha, EUA e
Rússia – mostraram sua face mais cruel contra as populações
civis desarmadas em Auschwitz, em Hiroshima e Nagasaki e em Berlim já
rendida.
Os direitos humanos nasceram da dor.
Houve avanços significativos após
a declaração de 1948 com as conferências internacionais dos
direitos humanos, das quais brotaram declarações específicas,
documentos, diretrizes, planos de ação e sistemas jurídicos
internacionais de proteção aos direitos humanos. Houve processos
concretos de humanização e emancipação, a partir da consciência
de direitos, com o fim dos regimes autoritários na Europa, dos
apartheids nos Estados Unidos e na África do Sul e com movimentos
civis das mulheres, dos negros, das populações LGBT, dos imigrantes
e outras minorias excluídas do acesso aos direitos fundamentais.
Por outro lado, o século XX
continuou também a mostrar – agora ao vivo e a cores pela telinha
– um circo de horrores. Assistimos a novos holocaustos em
genocídios étnicos, religiosos e culturais; em movimentos
(anti)revolucionários; em ditaduras militares; em refugiados de
guerra; em ataques terroristas; em migrações forçadas, no tráfico
de pessoas; nas novas faces de trabalho escravo; na violência
urbana… Se não bastasse tudo isso, nos tempos mais próximos um
tsunami neoliberal conservador invadiu o mundo, arrasando políticas
sociais, destruindo direitos conquistados e sequestrando a própria
subjetividade humana pela lógica perversa do lucro.
Assim são os avanços e retrocessos
dos direitos humanos na história concreta da humanidade.
Hoje perguntamos perplexos: onde
ficam os direitos humanos nesse nosso mundo tão diverso, onde
sofismas e falsas imagens compõem discursos de ódio, sustentados
por visão dualista simplista e simplória da realidade?
Vivemos em um mundo com sinais de
esgotamento do modelo civilizatório ocidental moderno na esfera
ambiental, no tecido social e na subjetividade humana. É uma crise
paradigmática que coloca em xeque o universalismo cultural, o
racionalismo cientificista, o autoritarismo político e qualquer
forma de exclusão. Vivemos em um mundo que aponta para a necessidade
de construção de um novo paradigma que não sabemos bem como será,
mas temos certeza do que não mais queremos. As incertezas nos tempos
de mudança paradigmática fazem com que muitos escolham os caminhos
fáceis e seguros de volta ao passado; um passado que não volta
mais.
E a luta pelos direitos humanos
nesse tempo de transição?
Com todas as contradições humanas
e as leituras distintas do que sejam os direitos humanos e de como
lutar por eles, podemos – mesmo em tempos de crise – nos guiar
pelo bom senso. Um deles é a luta pela democracia; uma democracia
social participativa como regime político e cultura social, capaz
comportar interesses conflitivos e promover tanto os direitos de
liberdade como os de igualdade nas condições de vida social com
dignidade. A democracia não é um ponto de chegada, um porto seguro;
a democracia é um caminho, é ponte.
Na discordância no campo da disputa
política, a luta pelos direitos humanos tem outro guia concreto e
vivo, inquestionável na diversidade ideológica e cultural: o outro
que está em minha frente. O fundamento último da ética é o outro.
Este, tão humano, tão igual e tão diferente de mim. Esse outro que
pensa, sente, sonha o futuro, tem alegrias e tristezas e,
principalmente, o outro que sofre o sofrimento injusto da opressão,
da exclusão, do preconceito, da humilhação e da morte antecipada.
Nestes setenta anos da Declaração
de 1948 muitos estudos, pesquisas, documentos, declarações
contribuíram para melhor entender, ampliar e ressignificar os
direitos humanos. Hoje, porém, vivemos no Brasil uma contradição
surrealista. De um lado temos acesso fácil a todo esse conhecimento
acumulado sobre o assunto, a memória das dores da ditadura e as
imagens dos novos holocaustos; de outro, uma parcela da população,
capaz de decidir os rumos do país, insiste em distorcer e desdenhar
os direitos humanos.
Se perguntarem: “O que são os
direitos humanos?”, há uma resposta simples para iniciar a
conversa: “São valores que falam do sofrimento e da felicidade do
outro”.
*Clodoaldo Meneguello
Cardoso é professor da Faculdade de Arquitetura, Artes e
Comunicação (FAAC) do câmpus de Bauru da Unesp; coordenador do
Observatório de Educação em Direitos Humanos (OEDH) e coeditor da
Revista interdisciplinar de direitos humanos (RIDH). É autor, entre
outros, do livro Tolerância e seus limites, Editora Unesp. É membro
da equipe coordenadora da Rede Latino-americana e Caribenha de
Educação em Direitos Humanos (RedLaCEDH) e da Associação Nacional
de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação (Andhep).
Fonte: ENVOLVERDE
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