sexta-feira, 11 de janeiro de 2019


Declaração universal dos direitos humanos (70 anos): um sonho acordado.


Por Clodoaldo Meneguello Cardoso*, Jornal Unesp

Os direitos humanos não são leis naturais ou sagradas; nem princípios metafísicos escritos nas estrelas. Os direitos humanos são humanos! São conquistas históricas com muito esforço e sangue na luta pelo respeito à dignidade individual e coletiva em uma sociedade mais livre e igualitária. Inserem-se, portanto, no campo das lutas políticas por melhores condições da vida humana, com suas diversidades de visões, até mesmo conflitantes.

Tudo que é humano está em processo contínuo de transformação no espaço e no tempo. Os direitos humanos, enquanto conjunto de valores ético-políticos ocidentais, vêm sendo construídos principalmente nos últimos 250 anos a partir de movimentos revolucionários e mais recentemente no diálogo, até mesmo conflitivo, com outras culturas. A história dos direitos humanos, portanto, não é um processo evolutivo linear institucional: há contradições ideológicas, avanços, conquistas, retrocessos e mutilações aqui e ali no espaço-mundo.

Às conquistas das revoluções burguesas do século XVIII, centradas nos direitos civis e políticos, foram agregadas dialeticamente, nos séculos XIX e XX, as conquistas dos movimentos operários e revoluções socialistas com os direitos sociais, econômicos e culturais. A história social revela fatos ocultados por essa ou aquela ideologia. Todos conhecemos a emblemática Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1789, mas quase não ouvimos falar da Declaração dos direitos do povo trabalhador e explorado, proclamada na Rússia em 1918.

Finalmente, em 1948, com a Declaração universal dos direitos humanos surge o primeiro acordo internacional, em favor da paz mundial, entre nações de diferentes ideologias. Mas isso somente depois dos horrores sem fim da Segunda Grande Guerra, em que nações “civilizadas” – Alemanha, EUA e Rússia – mostraram sua face mais cruel contra as populações civis desarmadas em Auschwitz, em Hiroshima e Nagasaki e em Berlim já rendida.

Os direitos humanos nasceram da dor.

Houve avanços significativos após a declaração de 1948 com as conferências internacionais dos direitos humanos, das quais brotaram declarações específicas, documentos, diretrizes, planos de ação e sistemas jurídicos internacionais de proteção aos direitos humanos. Houve processos concretos de humanização e emancipação, a partir da consciência de direitos, com o fim dos regimes autoritários na Europa, dos apartheids nos Estados Unidos e na África do Sul e com movimentos civis das mulheres, dos negros, das populações LGBT, dos imigrantes e outras minorias excluídas do acesso aos direitos fundamentais.

Por outro lado, o século XX continuou também a mostrar – agora ao vivo e a cores pela telinha – um circo de horrores. Assistimos a novos holocaustos em genocídios étnicos, religiosos e culturais; em movimentos (anti)revolucionários; em ditaduras militares; em refugiados de guerra; em ataques terroristas; em migrações forçadas, no tráfico de pessoas; nas novas faces de trabalho escravo; na violência urbana… Se não bastasse tudo isso, nos tempos mais próximos um tsunami neoliberal conservador invadiu o mundo, arrasando políticas sociais, destruindo direitos conquistados e sequestrando a própria subjetividade humana pela lógica perversa do lucro.

Assim são os avanços e retrocessos dos direitos humanos na história concreta da humanidade.

Hoje perguntamos perplexos: onde ficam os direitos humanos nesse nosso mundo tão diverso, onde sofismas e falsas imagens compõem discursos de ódio, sustentados por visão dualista simplista e simplória da realidade?

Vivemos em um mundo com sinais de esgotamento do modelo civilizatório ocidental moderno na esfera ambiental, no tecido social e na subjetividade humana. É uma crise paradigmática que coloca em xeque o universalismo cultural, o racionalismo cientificista, o autoritarismo político e qualquer forma de exclusão. Vivemos em um mundo que aponta para a necessidade de construção de um novo paradigma que não sabemos bem como será, mas temos certeza do que não mais queremos. As incertezas nos tempos de mudança paradigmática fazem com que muitos escolham os caminhos fáceis e seguros de volta ao passado; um passado que não volta mais.

E a luta pelos direitos humanos nesse tempo de transição?

Com todas as contradições humanas e as leituras distintas do que sejam os direitos humanos e de como lutar por eles, podemos – mesmo em tempos de crise – nos guiar pelo bom senso. Um deles é a luta pela democracia; uma democracia social participativa como regime político e cultura social, capaz comportar interesses conflitivos e promover tanto os direitos de liberdade como os de igualdade nas condições de vida social com dignidade. A democracia não é um ponto de chegada, um porto seguro; a democracia é um caminho, é ponte.

Na discordância no campo da disputa política, a luta pelos direitos humanos tem outro guia concreto e vivo, inquestionável na diversidade ideológica e cultural: o outro que está em minha frente. O fundamento último da ética é o outro. Este, tão humano, tão igual e tão diferente de mim. Esse outro que pensa, sente, sonha o futuro, tem alegrias e tristezas e, principalmente, o outro que sofre o sofrimento injusto da opressão, da exclusão, do preconceito, da humilhação e da morte antecipada.

Nestes setenta anos da Declaração de 1948 muitos estudos, pesquisas, documentos, declarações contribuíram para melhor entender, ampliar e ressignificar os direitos humanos. Hoje, porém, vivemos no Brasil uma contradição surrealista. De um lado temos acesso fácil a todo esse conhecimento acumulado sobre o assunto, a memória das dores da ditadura e as imagens dos novos holocaustos; de outro, uma parcela da população, capaz de decidir os rumos do país, insiste em distorcer e desdenhar os direitos humanos.

Se perguntarem: “O que são os direitos humanos?”, há uma resposta simples para iniciar a conversa: “São valores que falam do sofrimento e da felicidade do outro”.

*Clodoaldo Meneguello Cardoso é professor da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (FAAC) do câmpus de Bauru da Unesp; coordenador do Observatório de Educação em Direitos Humanos (OEDH) e coeditor da Revista interdisciplinar de direitos humanos (RIDH). É autor, entre outros, do livro Tolerância e seus limites, Editora Unesp. É membro da equipe coordenadora da Rede Latino-americana e Caribenha de Educação em Direitos Humanos (RedLaCEDH) e da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação (Andhep).


Fonte: ENVOLVERDE

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