Com a Funai, problemas; mas como será sem ela?
Por Washington Novaes
Demarcação de terras na
Agricultura seria ‘declaração virtual de guerra’ aos indígenas.
Mais uma vez os indígenas
brasileiros e seus defensores estão às voltas com uma batalha: a
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil ingressou agora em
janeiro com representação na Procuradoria-Geral da República
pedindo que a procuradora-geral, Raquel Dodge, entre com ação
judicial na tentativa de suspender dispositivo da Medida Provisória
870, de 1.º/1/2019, que transfere da Fundação Nacional do Índio
(Funai) para o Ministério da Agricultura a competência na área de
demarcação de terras indígenas. Têm motivos de sobejo os índios:
no Ministério da Agricultura estão muitos dos mais encarniçados
adversários da demarcação, que, a seu ver, reduziriam as terras
para cultivo. Ignoram eles os numerosos pareceres jurídicos –
entre eles do professor José Afonso da Silva – que reconheceram na
Justiça os direitos dos índios à demarcação de terras que ocupam
imemorialmente . A tese foi referendada pela Justiça.
A iniciativa dos índios é mais do
que justificada: os defensores de causas indígenas consideram a
decisão do presidente da República sobre essa transferência de
competências uma “declaração virtual de guerra”, uma vez que,
no seu entender, estão na agricultura os seus maiores opositores. A
começar pela ministra Tereza Cristina, que teria uma longa história
de oposição aos direitos territoriais dos indígenas, que
impediriam a expansão da agropecuária (Survival International,
4/1). A Articulação dos Povos Indígenas já declarou : “Temos o
direito de existir. Não vamos recuar. Não vamos hesitar em
denunciar esse governo e o agronegócio nos quatro cantos do mundo”.
E tem o apoio da Survival.
O texto da medida provisória
proposta impõe restrições à demarcação e muda as atribuições
dos Estados e municípios nessa área. Os defensores dos indígenas
apontam como exemplos de violações de seus direitos, entre outros
casos, o conjunto de quatro barragens de hidrelétricas no rio Teles
Pires, na fronteira entre Mato Grosso e o Pará. Desde 2011 os povos
Kayabi, Apiaka e Munduruku, assim como pescadores e agricultores
familiares, têm denunciado sucessivos casos de desrespeito a seus
direitos e à legislação no licenciamento de quatro barragens no
rio Teles Pires, onde o Ministério Público ajuizou sete ações
civis públicas que citam falta de consulta e consentimento dos povos
indígenas e o desrespeito a condições das licenças ambientais.
Neste começo de ano, sobreveio
também (Estado, 3/1) a notícia de que o governo federal prepara
nova regulamentação para liberar a exploração de terras indígenas
pelo agronegócio. Cogita-se de autorizar parcerias entre índios e
produtores rurais para cultivo e criação de gado em terras já
demarcadas. Segundo este jornal, embora ilegal, a exploração já
existe em várias regiões, onde indígenas arrendam terras a
produtores rurais. As primeiras informações são de que a liberação
agora poderá vir por decreto presidencial. Outra cogitação é de
exploração mineral em áreas indígenas, que precisaria passar por
aprovação do Congresso. Reportagem do Estado relata que já há 22
terras indígenas com áreas arrendadas ilegalmente a ruralistas.
Um dos argumentos em favor de nova
regulamentação na área está em dados divulgados pela Funai de que
há hoje 129 processos em andamento em vários lugares, onde vivem
cerca de 120 mil indígenas; as áreas envolvidas somam 11,3 milhões
de hectares (mais que Pernambuco). Caso todos os processos sejam
aprovados, as terras indígenas regularizadas somariam 15% dos 851,6
milhões de hectares do Brasil. O presidente Bolsonaro prometeu,
antes da eleição, que “não vai ter mais um centímetro demarcado
para reserva indígena ou quilombola” (Estado, 24/10/2018).
No ano passado entrou em cena mais
um complicador. O Conselho Indigenista Missionário entregou ao papa
Francisco o Relatório da Violência contra os Povos Indígenas no
Brasil, ao mesmo tempo que manifestou preocupação com a retirada de
direitos imposta pelo então governo nas demarcações de terra (IHU,
14/4/2018), em que os mais prejudicados seriam indígenas. Dizia o
relatório que a violência contra indígenas levou a 118
assassinatos em 2016; 106 indígenas se suicidaram nesse mesmo ano;
113 crianças indígenas morreram por causas diversas, como a
desnutrição; em 2015 foram 137 assassinatos; em 2014, um pouco
mais, 138. Este ano haverá um sínodo especial sobre a Amazônia,
anunciado pelo próprio papa. E a Corte Interamericana de Direitos
Humanos condenou o Estado brasileiro pela violação dos direitos dos
índios xucurus, por levar 16 anos para demarcar as terras indígenas.
Enquanto isso, levantamento do
Instituto Socioambiental (ISA) aponta que 57 povos indígenas
isolados da Amazônia e seus territórios correm o risco de ser
impactados por 123 empreendimentos previstos para os próximos anos
na região. O processo de demarcação de terras desses índios levou
16 anos e afetou 2.300 famílias em 24 comunidades (Uma gota no
oceano, 13/3/2018). No início de 2018 o Ministério Público Federal
e outros órgãos ajuizaram ação civil pública para obrigar a
implementação de política destinada à população da reserva
indígena de Dourados, com o mais alto índice de suicídios no
Brasil: 89,2, enquanto a taxa nacional foi de 9,6; a taxa média
nacional de homicídios entre 2012 e 2014, foi de 29,2 por 100 mil
habitantes, enquanto na reserva indígena foi de 101,16/100 mil
(Abrasco, 19/1/2018).
Enfim, para completar, nos primeiros
dias deste ano o presidente Bolsonaro tirou da Fundação Nacional do
Índio a missão de demarcar terras indígenas, que, como dito acima,
ficará com o Ministério da Agricultura, onde estão alguns dos mais
acirrados adversários dessa demarcação.
Será preciso esperar para ver no
que dará. Ou alguém será capaz de antecipar as muitas hipóteses?
JORNALISTA. E-MAIL:
WLRNOVAES@UOL.COM.BR
- Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo
Fonte: ENVOLVERDE
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