quarta-feira, 16 de janeiro de 2019


Com a Funai, problemas; mas como será sem ela?


Por Washington Novaes 

Demarcação de terras na Agricultura seria ‘declaração virtual de guerra’ aos indígenas.

Mais uma vez os indígenas brasileiros e seus defensores estão às voltas com uma batalha: a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil ingressou agora em janeiro com representação na Procuradoria-Geral da República pedindo que a procuradora-geral, Raquel Dodge, entre com ação judicial na tentativa de suspender dispositivo da Medida Provisória 870, de 1.º/1/2019, que transfere da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Agricultura a competência na área de demarcação de terras indígenas. Têm motivos de sobejo os índios: no Ministério da Agricultura estão muitos dos mais encarniçados adversários da demarcação, que, a seu ver, reduziriam as terras para cultivo. Ignoram eles os numerosos pareceres jurídicos – entre eles do professor José Afonso da Silva – que reconheceram na Justiça os direitos dos índios à demarcação de terras que ocupam imemorialmente . A tese foi referendada pela Justiça.

A iniciativa dos índios é mais do que justificada: os defensores de causas indígenas consideram a decisão do presidente da República sobre essa transferência de competências uma “declaração virtual de guerra”, uma vez que, no seu entender, estão na agricultura os seus maiores opositores. A começar pela ministra Tereza Cristina, que teria uma longa história de oposição aos direitos territoriais dos indígenas, que impediriam a expansão da agropecuária (Survival International, 4/1). A Articulação dos Povos Indígenas já declarou : “Temos o direito de existir. Não vamos recuar. Não vamos hesitar em denunciar esse governo e o agronegócio nos quatro cantos do mundo”. E tem o apoio da Survival.

O texto da medida provisória proposta impõe restrições à demarcação e muda as atribuições dos Estados e municípios nessa área. Os defensores dos indígenas apontam como exemplos de violações de seus direitos, entre outros casos, o conjunto de quatro barragens de hidrelétricas no rio Teles Pires, na fronteira entre Mato Grosso e o Pará. Desde 2011 os povos Kayabi, Apiaka e Munduruku, assim como pescadores e agricultores familiares, têm denunciado sucessivos casos de desrespeito a seus direitos e à legislação no licenciamento de quatro barragens no rio Teles Pires, onde o Ministério Público ajuizou sete ações civis públicas que citam falta de consulta e consentimento dos povos indígenas e o desrespeito a condições das licenças ambientais.

Neste começo de ano, sobreveio também (Estado, 3/1) a notícia de que o governo federal prepara nova regulamentação para liberar a exploração de terras indígenas pelo agronegócio. Cogita-se de autorizar parcerias entre índios e produtores rurais para cultivo e criação de gado em terras já demarcadas. Segundo este jornal, embora ilegal, a exploração já existe em várias regiões, onde indígenas arrendam terras a produtores rurais. As primeiras informações são de que a liberação agora poderá vir por decreto presidencial. Outra cogitação é de exploração mineral em áreas indígenas, que precisaria passar por aprovação do Congresso. Reportagem do Estado relata que já há 22 terras indígenas com áreas arrendadas ilegalmente a ruralistas.

Um dos argumentos em favor de nova regulamentação na área está em dados divulgados pela Funai de que há hoje 129 processos em andamento em vários lugares, onde vivem cerca de 120 mil indígenas; as áreas envolvidas somam 11,3 milhões de hectares (mais que Pernambuco). Caso todos os processos sejam aprovados, as terras indígenas regularizadas somariam 15% dos 851,6 milhões de hectares do Brasil. O presidente Bolsonaro prometeu, antes da eleição, que “não vai ter mais um centímetro demarcado para reserva indígena ou quilombola” (Estado, 24/10/2018).

No ano passado entrou em cena mais um complicador. O Conselho Indigenista Missionário entregou ao papa Francisco o Relatório da Violência contra os Povos Indígenas no Brasil, ao mesmo tempo que manifestou preocupação com a retirada de direitos imposta pelo então governo nas demarcações de terra (IHU, 14/4/2018), em que os mais prejudicados seriam indígenas. Dizia o relatório que a violência contra indígenas levou a 118 assassinatos em 2016; 106 indígenas se suicidaram nesse mesmo ano; 113 crianças indígenas morreram por causas diversas, como a desnutrição; em 2015 foram 137 assassinatos; em 2014, um pouco mais, 138. Este ano haverá um sínodo especial sobre a Amazônia, anunciado pelo próprio papa. E a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro pela violação dos direitos dos índios xucurus, por levar 16 anos para demarcar as terras indígenas.

Enquanto isso, levantamento do Instituto Socioambiental (ISA) aponta que 57 povos indígenas isolados da Amazônia e seus territórios correm o risco de ser impactados por 123 empreendimentos previstos para os próximos anos na região. O processo de demarcação de terras desses índios levou 16 anos e afetou 2.300 famílias em 24 comunidades (Uma gota no oceano, 13/3/2018). No início de 2018 o Ministério Público Federal e outros órgãos ajuizaram ação civil pública para obrigar a implementação de política destinada à população da reserva indígena de Dourados, com o mais alto índice de suicídios no Brasil: 89,2, enquanto a taxa nacional foi de 9,6; a taxa média nacional de homicídios entre 2012 e 2014, foi de 29,2 por 100 mil habitantes, enquanto na reserva indígena foi de 101,16/100 mil (Abrasco, 19/1/2018).

Enfim, para completar, nos primeiros dias deste ano o presidente Bolsonaro tirou da Fundação Nacional do Índio a missão de demarcar terras indígenas, que, como dito acima, ficará com o Ministério da Agricultura, onde estão alguns dos mais acirrados adversários dessa demarcação.

Será preciso esperar para ver no que dará. Ou alguém será capaz de antecipar as muitas hipóteses?
JORNALISTA. E-MAIL: WLRNOVAES@UOL.COM.BR
  • Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo
Fonte: ENVOLVERDE

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