Especial: 30 anos da Constituição Brasileira, a guardiã do meio ambiente.
por Sucena Shkrada Resk,
especial para o Greenpeace Brasil –
Nossa
maior conquista na redemocratização, a “Constituição Cidadã”
segue atual, mas sofre pressões de todos os lados ao ser uma
barreira para os retrocessos socioambientais que tentam nos impor
diariamente.
Um meio ambiente sadio e
equilibrado como um bem comum do povo foi uma grande conquista e uma
inspiração para o mundo © Daniel Beltrá.
Três décadas não são três dias.
Eis que a nossa Constituição Federal Brasileira de 1988 completa
aniversário neste 5 de outubro. Entra na fase adulta sofrendo
pressões de todos os lados, em especial, sobre artigos relacionados
ao Meio Ambiente (225)
e aos Direitos Indígenas (231
e 232).
Apesar de haver avanços no decorrer destes anos, os ataques são
contínuos. São projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional e
algumas medidas provisórias mais flexíveis, que colocam em risco a
conservação ambiental e os direitos humanos. Ao mesmo tempo, chega
a esta maturidade envolta por um novo desafio: as mudanças
climáticas.
“Atualmente, Legislativo e
Executivo empenham-se em aprovar projetos de lei que claramente
atentam contra a Constituição. Desta forma, ela é hoje uma grande
trava contra os vários retrocessos socioambientais em curso. Como
consequência, muitos destes temas estão indo parar no Supremo
Tribunal Federal (STF). Este movimento está transformando a corte
numa espécie de terceira casa legislativa do país”, afirma o
coordenador de Políticas Públicas do Greenpeace Brasil, Márcio
Astrini.
Chamada de “Constituição
Cidadã” pelo deputado Ulisses Guimarães
(1916-1992), presidente da Assembleia Constituinte, como também de
“Constituição Verde” e de “Ecológica”, a sétima carta
magna brasileira teve um processo de gestação longo, desde o ano de
1985, que traduziu a ânsia pela retomada da Democracia no Brasil,
após o período da Ditatura Militar, que vigorava desde 1964.
Plenário da Assembleia Nacional
Constituinte: conquista democrática © Arquivo Câmara dos
Deputados.
Em uma tarde chuvosa, às 17h do
dia 5 de outubro de 1988, o Brasil dava um novo rumo à sua
história. Enfim, o exercício da democracia depois de tempos
difíceis que deixaram marcas profundas em diferentes gerações. Ao
longo desses 30 anos, a Constituição ganhou mais 100 emendas e
resiste àqueles que argumentam que ela cria dificuldades para o
ajuste fiscal e à modernização do Estado brasileiro.
Uma das mensagens do artigo 225, que
fortalece a questão ambiental talvez seja o resumo de uma de suas
principais contribuições à democracia até hoje. O trecho descreve
em poucas palavras, os direitos e deveres da gestão pública e da
população:
“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Na avaliação de Astrini, a força
da Constituição está na sua contribuição para a democracia.
“Reflete em seus artigos a proposta do zelo público”, diz.
Nos movimentos socioambiental e
indígena, alguns personagens vivenciaram de perto o processo da
Constituinte e apoiaram a inserção destes temas no conteúdo.
Aprovação do capítulo de Meio
Ambiente, em sessão de votação em primeiro turno da Assembléia
Nacional Constituinte, em maio de 1988 © Arquivo Câmara dos
Deputados.
O advogado, ambientalista e então
constituinte Fábio Feldmann nos conta que naquele período a grande
dificuldade estava na compreensão de que meio ambiente e direitos
indígenas são temas rigorosamente relevantes para a sociedade
brasileira. “No caso do Artigo 225, havia uma resistência
cultural em se considerar matéria ambiental como de natureza
constitucional, uma vez que praticamente nenhuma constituição
contemporânea tratava desse tema, com raríssimas exceções. Além
disso, é importante assinalar que as matérias ambientais estão
presentes em praticamente toda a Constituição, a exemplo das
partes relativas à Ordem Econômica e ao Ministério Público,
entre outras”, diz.
O advogado e professor da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Talden Farias concorda e
aponta que o meio ambiente também é mencionado nos artigos 5º, 23,
24, 170, 182, 186, 200 e 216. Está aí um bom assunto para pesquisa,
não é?
Sérgio Leitão, diretor executivo
do Instituto Escolhas, também recorda do período da Constituinte
como se fosse hoje. “O país estava saindo de uma ditadura e seguia
os passos da retomada democrática com eleições para governador de
Estado. Foi exatamente neste momento que trabalhadores rurais,
indígenas e mulheres puderam chegar na Assembleia Constituinte e
buscar o reconhecimento e a reafirmação de seus direitos na
Constituição que estava sendo elaborada”, conta.
Foi uma fase
importante de resgate de cidadania, de tornar o país menos injusto,
ao contrário do que vivenciamos hoje, segundo ele. “Agora nos
deparamos com movimentos na tentativa de derrubada do que foi
construído”, compara.
Manifestação de mulheres, que
apresentaram a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes ©
Arquivo Câmara dos Deputados.
Mesmo assim, Leitão observa que a
Constituição consegue frear as ações que querem derrubá-la.
“Não podemos negar que ocorreram avanços significativos ligados
ao tema da pauta da sociedade civil. Por exemplo, nunca houve tantas
unidades de conservação no país. O Brasil tem criado um conjunto
de regras do meio ambiente, um dos melhores do mundo. A sociedade
brasileira passou a cobrar dos governantes que elas fossem
cumpridas”.
Capítulo indígena
Um dos momentos mais marcantes neste
processo, nos anos 1980, foi a
fala indígena de Ailton Krenak na Assembleia Constituinte, no
Congresso Nacional, em Brasília. À época ele representava a União
das Nações Indígenas (UNI).
Feldmann descreve que a resistência
era mais visível por parte de setores conservadores e xenófobos, no
sentido de que haveria de se criar uma distinção entre indígenas
aculturados e não aculturados, com o propósito de retirar
claramente os direitos dos que seriam considerados “não índios”.
“É bom assinalar que os Artigos 231 e 232, em termos de legislação
infraconstitucional, são regulados pelo antigo Estatuto do Índio de
1973, ainda que tenha sido aprovado um projeto suprapartidário na
Câmara dos Deputados, atualizando a legislação em sintonia com a
Constituição de 1988”.
Povos indígenas em plenário:
brasileiros participaram ativamente da construção da nova Carta ©
Arquivo: SenadoFederal.
O filósofo e ambientalista Márcio
Santilli, um dos fundadores e atual assessor do Programa Política e
Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA), é mais um
contemporâneo da Constituinte.
Ele ainda tem na memória lembranças
daquela época, e nos descreve: “As questões indígena e
ambiental não caminharam juntas na Constituinte. O tema indígena
era tratado com os de outras minorias e o meio ambiente com o de
saúde. Houve um apoio maior das organizações sociais, mas em
espaços diferentes da Assembleia Constituinte. Esses temas foram
tirados dos guetos e vieram associados ao espírito da construção
democrática”.
De acordo com Leitão, hoje há um
reconhecimento maior desses povos, mas em contraposição, também
críticas vindas principalmente de representantes de setores
econômicos quanto ao direito de demarcação das terras indígenas e
suas extensões.
Art. 231. “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”
Para Luiz Eloy Terena, consultor
jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a
Constituição de 1988 foi um divisor de águas. “Trouxe uma
mudança de paradigma e o fim da ‘tutela’ do homem branco sobre o
indígena, apesar de hoje ainda existir os desafios no viés
acadêmico e cultural. Também trouxe a missão do Ministério
Público para a defesa dos povos indígenas”, diz.
Segundo a liderança indígena Davi
Guarani, os desafios impostos na atualidade são o de assegurar aos
indígenas a superação de problemas importantes, como a mortalidade
infantil, suicídios e criminalização de lideranças. “O que
mantém nosso direito constitucional é nossa resistência para
manter nossa vida”, afirma.
Mobilização indígena em frente
ao Congresso Nacional: o descumprimento da Constituição é uma
entre as várias agressões aos diferentes povos tradicionais ©
Rogério Assis.
Povos tradicionais na luta
Outras parcelas de povos
tradicionais como os quilombolas ganharam mais visibilidade na
Constituição. O artigo 68 garante aos remanescentes das comunidades
dos quilombos que estejam ocupando suas terras o reconhecimento da
propriedade definitiva, devendo o Estado lhes emitir os respectivos
títulos.
A realidade atual, no entanto, está
longe do ideal, expõe Nilce de Pontes Pereira, coordenadora da
Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais
Quilombolas (Conaq), no Vale do Ribeira, em São Paulo. “Hoje temos
mais de 5 mil comunidades no país, sendo que 1,5 mil aproximadamente
são reconhecidas”, afirma. De acordo com a quilombola, a maior
dificuldade é o acesso às políticas públicas, desde questões de
saúde até ambientais. “O problema está em compatibilizar nossas
roças, que fazem parte de nossa cultura, com as exigências da
legislação ambiental. A terra para nós é importante porque a
consideramos sagrada, temos o sentimento de pertencimento”, diz.
Área desmatada em Marabá, no
estado do Pará: a ganância pelo lucro tem sido uma ameaça aos
povos da floresta. © Rodrigo Baléia / Greenpeace.
Mais um segmento que luta para um
reconhecimento maior na legislação brasileira é o dos
extrativistas (borracha e frutíferas), entre outros. “A
Constituição foi um instrumento que consolidou muitas coisas
importantes para a população brasileira, mas a extrativista, em
especial, não ficou amparada à época. Vale lembrar que foi neste
mesmo ano de 1988 que o ativista e ambientalista Chico Mendes foi
assassinado no Acre. Vivíamos um momento de pressão”, conta
Joaquim Belo, presidente do Conselho Nacional das Populações
Extrativistas/CNS (antigo Conselho Nacional dos Seringueiros).
Apesar disso, alguns ganhos vieram
posteriormente com a criação de reservas extrativistas. A primeira
foi a de Alto Juruá, no Acre, em 1990. E no ano 2000, foi instituído
no país, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da
Natureza, criando diferentes categorias de proteção integral e de
uso sustentável; este é o caso da Resex – Reserva Extrativista.
“Os extrativistas vivem dos ativos da floresta e trazem o conceito
de conservação ambiental para afirmar seu modo de vida. Hoje são
cerca de 90 em todo país”, diz.
Perspectivas futuras
Trinta anos depois, nossa
Constituição está longe de ser defasada. “Em relação à
matéria ambiental, a Constituição permanece muito atual”, afirma
Feldmann. Vale assinalar que ela foi realizada antes de grande marcos
internacionais ambientais, como a Rio-92, e do surgimento de um novo
direito internacional revelado nas Convenções da Biodiversidade e
do Clima e, mais recentemente, nos Objetivos do Desenvolvimento
Sustentável (ODS), no âmbito da Organização das Nações Unidas.
Para Feldmann, a única ressalva ao
Artigo 225 é com relação aos animais. “Infelizmente houve uma
única emenda aprovada no que tange a se entender manifestações
culturais envolvendo animais como admissíveis com o objetivo claro
de se resolver a controvérsia da vaquejada, decidida como cruel pelo
Supremo Tribunal Federal (STF)”, diz.
O cenário é preocupante nesta fase
de eleições. Um tema fundamental que não pode sair do radar,
segundo Leitão, é a preservação de espaços naturais para a
própria garantia da agricultura do país. “O que observamos é que
alguns setores querem retrocessos ao momento anterior a 1988. A
tentativa de descaracterizar a Constituição não é algo gratuito.
Dependendo dos resultados da eleição, esse risco será maior. A
forma mais efetiva de se mobilizar é participando do debate para
contestar narrativas contrárias à democracia, ao meio ambiente e
aos direitos desses povos”, considera.
A Constituição ainda é a
principal barreira contra retrocessos socioambientais e por isso
precisa ser defendida pela sociedade civil daqueles que querem
enfraquece-la © Cristiano Costa / Greenpeace.
“Atualmente, o contexto político
no Brasil e no mundo está marcado por uma radical polarização, o
que sugere que não sejam realizadas mudanças em ambiente tão
extremado. Temos, sim, que trabalhar na regulamentação da
Constituição Federal quanto aos biomas considerados como
Patrimônio Nacional (Floresta Amazônica, Mata Atlântica, Serra do
Mar, Zona Costeira e Pantanal Matogrossense) e incluir o
Cerrado e Caatinga, único bioma genuinamente brasileiro, no
parágrafo 4º do Art. 225 que dá tratamento especial a certos
biomas”, recomenda Feldmann.
Márcio Astrini, no Greenpeace, vai
na mesma linha e aponta riscos em relação a mudanças profundas na
Constituição no momento atual, como chegam a propor alguns
candidatos na eleição presidencial. “Vejo com extrema preocupação
qualquer proposta de promover uma nova constituinte. Vivemos um
período de instabilidade e grande conservadorismo. Neste
ambiente, é provável que tenhamos mais retrocessos do que avanços”,
avalia.
Atualização: as mudanças
climáticas em cena
Ao olhar para o passado, Márcio
Santilli não titubeia em falar que foi uma constituição de ponta.
“Somente a questão climática não estava posta como hoje. Havia a
preocupação com espaços protegidos, mas se fôssemos pensar hoje
em um novo ordenamento jurídico, mereceria um papel de guarda-chuva
nesta questão. Mas existem outros âmbitos institucionais para isso,
que não exigem necessariamente a reforma constitucional”,
considera.
Entre leis ordinárias importantes
em vigor, que vieram após 1988, Santilli aponta como positivas as
Lei de Crimes Ambientais e a do Sistema Nacional de Unidades de
Conservação (SNUC). “Tivemos retrocessos quanto ao Código
Florestal (mas que teve correções feitas pelo STF referentes a
inconstitucionalidades) e atualmente o que sofre mais ameaça são as
regras do licenciamento ambiental e o direito indígena”, avalia.
O agravamento das secas em função
das mudanças do clima ameaçam a agricultura e muitos povos
vulneráveis © Gabriel Lindoso.
Santilli alerta para a necessidade
de aumento da mobilização da sociedade e dos meios de comunicação,
neste sentido. “Cada um desses temas tem um campo de batalhas. No
caso dos indígenas, não houve a constituição de leis ordinárias
mais modernas e ainda é importante o recurso ao STF, em muitos
casos, como o que resultou na decisão de não poder reduzir
unidades de conservação por medida provisória, mas sim, por
projeto de lei. Outra decisão importante, foi quanto à preservação
da titulação de terras quilombolas”, afirma.
Em um cenário de curto prazo,
Santilli prevê que o foco no país sejam questões imediatas
emergenciais, como violência, miséria e desemprego. “São
problemas concretos. Mas qualquer que sejam os próximos governos
(estaduais e federal), congresso e dirigentes de classe, será
inevitável que tenham de enfrentar o impacto da mudança climática,
principalmente em relação a crise hídrica que estamos vivendo. E
temos de avaliar também a importância do respeito a tratados na
dinâmica internacional, neste sentido, como o Acordo de Paris”,
afirma.
Ele analisa que o mundo, apesar dos
retrocessos, já mantém uma corrida de tecnologia na questão
climática e quem não participar disso ficará para trás. “As
demandas são muito específicas, como energia limpa. Por pior que
seja o cenário político e a preocupação das pessoas com a crise,
há muito o que fazer. Temos de nos organizar, ter capacidade de
comunicação para estas agendas.”
Fonte: ENVOLVERDE
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