Como vai Mariana quase mil
dias depois da tragédia?
Por Neuza Árbocz, especial para a Envolverde –
Após dois anos e meio do rompimento da barragem do
Fundão, região se torna um exemplo mundial de recuperação, com amplo
envolvimento da população atingida.
Na era atual é impossível separar o dia a dia do
uso intenso de metais. Ferro, aço e alumínio, por exemplo, estão em todos os
meios de transporte, nas estruturas das casas e prédios, nos artefatos
hospitalares, máquinas, ferramentas, computadores e utensílios domésticos. A
demanda por minérios que servem ao nosso conforto, bem estar e diversão é
incessante.
A mineração, contudo, enfrenta grandes dilemas em
seu modus operandi, que pedem uma revisão profunda de suas práticas.
As condicionantes exigidas – entre elas, a
conservação de extensas áreas naturais que, do contrário, já teriam sucumbido à
extração predatória, à expansão urbana ou ao agrobusiness – não se provaram
suficientes face aos riscos representados por este setor. Um dos maiores é a
deposição diária de toneladas de rejeitos do beneficiamento de minérios em barragens
ou bacias artificiais. A cidade de Mariana, em Minas Gerais que o diga.
Tornou-se símbolo nacional da luta dos atingidos por desastres da mineração
após o rompimento, em novembro de 2015, da barragem do Fundão da Samarco, em
suas terras. Milhões de metros cúbicos de lama ferrosa avançaram ruidosamente
sobre distritos e bairros e inundaram 650 km do Rio Doce até sua foz, no
litoral do Espírito Santo.
O fato escancarou uma série de falhas tanto da
operação – entre elas a falta de um sistema de sirenes para dar o alerta em
caso de acidentes e de pontos intermediários de contenção – quanto dos governos
locais que permitiram casas construídas junto ao leito do rio em áreas de
preservação permanente, desmatamento das margens para sua ocupação com gado e o
despejo diário de toneladas de esgoto sem tratamento ao longo do rio por
municípios com milhares de habitantes. Para se ter uma ideia, até mesmo
Governador Valadares, a maior cidade às margens do rio Doce, jogava em 2015
todo tipo de dejetos nas suas águas, inclusive o esgoto in natura de seus 277
mil habitantes.
Passado o profundo choque que comoveu o país, a
região se transforma. Atualmente, boa parte da população local deseja a
retomada das atividades da mineradora, antes fornecedora para 19 países e
responsável por milhares de empregos diretos e indiretos, geradores de maior
dinamismo econômico nos mais de 40 municípios envolvidos na tragédia.
Contribuem para esta disposição as ações em curso, iniciadas imediatamente após
o rompimento e sustentadas por um arranjo inédito de governança para a tomada
de decisões.
Estas, até agora, tornaram a bacia do Rio Doce a
mais monitorada do país, com 92 pontos de coleta de dados sobre a qualidade da
água, incluindo estações medidoras para análises mensais e trimestrais, além de
22 automáticas, que realizam análises de hora em hora. Desde o acidente, com o
envolvimento de 217 proprietários rurais, foram cercadas e protegidas 511
nascentes e mais 500 estão em processo de escolha – parte das 5 mil que serão
recuperadas em dez anos. Há 101 afluentes reabilitados e R$ 500 milhões
provisionados para tratamento de esgoto aos municípios impactados, além de 47
mil hectares em processo de restauração florestal.
Mesmo sem a sentença judicial final, foram
investidos, até o momento, R$ 3,2 bilhões em ações de reparação e compensação,
realizados 23 mil cadastros e pagos R$ 700 milhões em indenizações e auxílios
financeiros. Uma equipe de arqueólogos foi contratada para escavar as áreas
submersas na lama e resgatou 2,5 mil bens e fragmentos culturais sacros,
conservados agora em um centro técnico climatizado e protegido com segurança
máxima.
Este é um caso excepcional no Brasil, onde é comum
verbas indenizatórias se perderem em um cipoal de entraves para sua
movimentação entre instituições e órgãos oficiais e não chegarem aos que mais
precisam. Vale conhecer como esta solução foi construída.
Salvaguarda das indenizações
“Ao sobrevoar a área atingida soube que as
consequências durariam muitos anos”, relembra Izabella Teixeira, ministra do
Meio Ambiente em 2015. A Samarco se adiantou e proveu apoio imediato aos
atingidos com indenizações financeiras prévias, alojamento em hotéis até que
escolhessem uma casa similar a que possuíam para locar enquanto aguardam as
sentenças judiciais e os reassentamentos (casas estas entregues totalmente
mobiliadas e equipadas), renda provisória para quem teve atividades paralisadas
e pagamentos a quem ficou sem água encanada, entre outras medidas. Enquanto
isso, sabia que haveria multas vultuosas a honrar. “Na ocasião, avaliamos entre
R$ 12 a 20 bilhões de reais o valor que a mineradora deveria investir nas
reparações. A disputa de que órgão ou órgãos gerenciariam este recurso logo
começou”, conta a ex-integrante do governo federal.
O impasse foi resolvido com uma ideia dada por
Sebastião Salgado e sua esposa Lélia. O casal, famoso por seus projetos no
campo da fotografia, reúne também uma sólida experiência em restauração
ambiental através do Instituto Terra, criado por eles em 1998, em Minas Gerais.
“Eles sugeriram a criação de um Fundo com o montante da indenização, que só
poderia ser acessado para fins da reparação dos danos causados. Se haveria um
fundo, deveria existir uma entidade responsável por movimentá-lo e a proposta
amadureceu para a criação de uma Fundação”, esclarece Izabella que, inspirada
pela sua participação na definição dos ODS – Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável, junto à ONU, reforçou a necessidade de garantir uma ampla
participação da população em todo o processo.
Assim, foi planejado um Conselho Curador popular
que aprovaria as ações da Fundação, que seriam fiscalizadas também pelos órgãos
técnicos e governamentais e definidas por um Comitê Interfederativo
(CIF). Em março de 2016, foi firmado um Termo de Transação e de Ajuste de
Conduta (TTAC) entre a empresa e os governos federal e dos Estados de Minas
Gerais e Espírito Santo. Com ele, criou-se a Fundação Renova, determinou-se a
composição do Comitê Interfederativo com 14 instâncias governamentais e
instituições, respaldado por Câmaras Técnicas, além de 41 programas de
reparação e reconstrução e o sistema de fiscalização e governança.
“Ainda restava o dilema da escolha de quem
comandaria a nova Fundação. A escolha não podia ser política”, recorda
Izabella. Buscou-se no mercado um nome neutro, independente, com capacidade de
gestão e interlocução com a população para comandá-la e o convite foi feito ao
biólogo e administrador de empresas Roberto Waack, experiente na área ambiental
e de sustentabilidade.
Ainda em 2016, a Renova assumiu toda a ação em
campo, com orçamento de R$ 2 bilhões no seu primeiro ano de existência; R$ 1,2
bilhão anual para 2017 e 2018; entre R$ 800 milhões e R$ 1,6 bilhão anuais de
2019 a 2021, de acordo com o andamento dos projetos. Os valores para o período
de 2022 a 2030 ainda serão definidos de acordo com as realizações executadas,
acrescidos de R$ 240 milhões anuais para ações compensatórias.
“Temos um triângulo exato: o CIF que define as
ações; a Renova que as executa e as empresas que as pagam”, detalha Andrea
Azevedo, diretora de Relações Institucionais da Renova. Andrea explica que o
Ministério Público ainda realiza ajustes nesta formação e defende que pessoas
civis impactadas também integrem o Comitê Interfederativo, respaldados por
Câmaras Técnicas, e não apenas o Conselho Curador da Fundação. “Apoiamos esta
recomendação; quanto mais participação da população, melhor”.
Instâncias do Ministério Público também debatem se
os valores calculados até o momento estariam corretos. Mas a Renova não
paralisa as ações à espera dessas definições. O CIF lhe impõe prazos, ela
debate os planos de ação com as comunidades, executa e presta contas.
“Priorizamos o diálogo com a sociedade para que seja possível transpor
barreiras e identificar as melhores formas de desenvolver os trabalhos, sejam
eles de revegetação, conservação do patrimônio cultural ou o Programa de
Indenizações Mediada (PIM)”, diz Waack.
Os programas se dividem em duas frentes:
socioambiental e socioeconômica, e três grandes eixos: Terra e Água; Pessoas e
Comunidades e Reconstrução e Infraestrutura. Os impactos sofridos e as
reparações já executadas e as por vir podem ser conferidas em detalhes no site
da Fundação.
Dar a outra face
A determinação da equipe em trabalhar e servir os
que tanto sofreram, assim como ajudar a restaurar este trecho do Brasil, famoso
por seus produtos e a peculiar cultura regional, esbarra em obstáculos
imprevistos. Que haveria dor, ressentimento e traumas era esperado. Toda pessoa
que se dispõe a atuar na Renova sabe disso e está preparada para ouvir com
empatia não só pleitos, mas também acusações, mesmo que indevidas, por aqueles
que a tomam como um braço estendido das mineradoras.
“Somos cobrados de como a mineração atuará, daqui
para frente. Mas este não é nosso papel”, esclarece Andrea Azevedo. “Também há
muita ansiedade pela reconstrução de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, em
Mariana e Gesteira, em Barra Longa, os distritos destruídos pela lama. Dizem:
levou 10 minutos para sumir com nossas casas e, em mais de dois anos, nada
ainda? Eles têm razão.
Mas não podemos agir sem o consenso dos envolvidos e o
aval de cada órgão que compõe o Comitê Interfederativo”, continua a executiva.
A escolha do local para os novos assentamentos demorou a ganhar uma maioria
junto às famílias beneficiárias e, no caso de Gesteira, por exemplo, a obra não
iniciou pois o proprietário do terreno escolhido desistiu de vendê-lo em cima
da hora. “O desenho para a reconstrução de Bento foi refeito 17 vezes. Agora,
finalmente, as famílias reconhecem nele seu modo de vida e seus laços de
vizinhança. O local também está definido, com a aprovação de 92% das 190
famílias do subdistrito”, diz Patrícia Bernardes, que atua nas Relações Institucionais
da Renova.
Estes percalços eram esperados. Um ponto além do
imaginado foi enfrentarem sabotagem aos esforços em curso. A recomposição e
revegetação das margens, que visa 800 hectares na primeira etapa, por exemplo,
foi aceita pela maior parte dos proprietários rurais que permitiram as cercas
para proteção das áreas. O programa também leva aos que quiserem, apoio técnico
para melhorar a lavoura e o gado, regularizar o Cadastro Rural e ampliar as
opções de renda com desenvolvimento sustentável. Alguns proprietários de terras
junto ao rio se negam a participar e isto é compreendido.
Contudo, outros
chegam ao extremo de enviar contratados para semear braquiária sobre as áreas
em recuperação, uma planta invasora que inibe a recomposição da mata ciliar.
Assim como a mineração desperta, ao mesmo tempo,
fascínio e ódio; a Renova também enfrenta sentimentos exacerbados, ao aplicar a
legislação ambiental em seu trabalho de reconstrução e estimular a transformação
dos modos de produção mais usuais em modelos sustentáveis.
A Fundação mantém canais de Comunicação
abertos para um diálogo constante. Estes, inclusive, acolhem pedidos de
indenização até hoje, de quem teve qualquer prejuízo com o rompimento da
barragem. “Muitos têm dificuldade de comprovar lucro cessante, por exemplo”,
comenta Andrea.
“No caso de pescadores, vemos pessoas com as marcas de linha de
pesca nas mãos, mas que não possuem documento algum que ateste a profissão”. A
equipe validou com o CIF e o Conselho Curador, 17 formas de reconhecer esta
atividade. Uma matrícula em escola em que a profissão do pai ou da mãe foi
declarada como pesca, no ano do acidente, por exemplo, vale. Este empenho traz
a sobrecarga de excessos de pedidos para serem verificados e validados.
“Preferimos enfrentar uma alta demanda, do que correr o risco de deixar alguém
de fora”, explica a diretora.
É com essa disposição que a Fundação acaba
sendo uma mediadora entre o Brasil oficial e o país da informalidade; o Brasil
solidário e o Brasil do individualismo, daqueles que ainda não aceitam ou
entendem a validade de regras coletivas.
“A catástrofe foi tão grande e o vale do rio
Doce já era tão degradado, que a expectativa com relação à Fundação Renova era
muito alta“, registrou Sebastião Salgado. ”
É possível que estejamos trabalhando em um dos
maiores projetos de recuperação de água do planeta.
A experiência do vale do
rio Doce poderá ser usada em outras regiões do Brasil e no mundo inteiro”.
Salgado, parceiro das ações de recuperação de nascentes com seu Instituto Terra
avalia que a recuperação do rio levará de 20 a 30 anos.
Desastre
em novembro de 2015
- 39,2 MILHÕES DE M³ de
rejeito espalhados em direção ao Rio Doce
- 670 QUILÔMETROS impactados
entre Minas Gerais e Espírito Santo
- 40 MUNICÍPIOS atingidos
Ações
executadas até fevereiro de 2018
- R$ 3,2 bilhões em ações de
reparação e compensação
- mais de 23 mil cadastros
realizados
- 2,5 mil bens e fragmentos
culturais sacros resgatados e conservados
- R$ 500 milhões provisionados
para tratamento de esgoto dos municípios impactados
- 47 mil ha em processo de
restauração florestal
- 511 nascentes cercadas e
outras 500 em processo de escolha – parte das 5 mil que serão recuperadas
em 10 anos
- 700 milhões em indenizações
e auxílios financeiros pagos
- 92 pontos de coleta de dados
sobre a água ao longo da Bacia do Doce
- 22 estações automáticas de
monitoramento de água ao longo da Bacia – a mais monitorada do Brasil
- 101 afluentes impactados reabilitados
Fonte: ENVOLVERDE
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