Fórum Alternativo reforça visão da água como Direito Humano.
Reinaldo Canto, de Brasilia, especial para
a Envolverde –
“Água não é mercadoria, a
água é do povo”, afirma documento do FAMA
Aproveitando o Dia Mundial da Água
e a véspera do encerramento do evento oficial, o Fórum Alternativo
Mundial da Água (FAMA), divulgou documento que reforça posição de
luta comum e contra qualquer forma de privatização e de
estabelecimento de propriedade privada da água.
Segundo a declaração final do
fórum alternativo a água é um bem comum e, portanto, deve ser
controlada e estar a serviço do povo, reforçando o lema do encontro
que realizou centenas de ações e manifestações durante toda a
semana em Brasília: “Água é direito, não mercadoria”.
36 entidades assinaram o documento.
Veja abaixo a íntegra da
DECLARAÇÃO FINAL DO FÓRUM ALTERNATIVO MUNDIAL DAS ÁGUAS.
Nós, construtores e construtoras do
Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA), reunidos de 17 a 22 de
março de 2018, em Brasília, declaramos para toda a sociedade o que
acumulamos após muitos debates, intercâmbios, sessões culturais e
depoimentos ao longo de vários meses de preparação e nestes
últimos dias aqui reunidos. Somos mais de 7 mil trabalhadores e
trabalhadoras da cidade e do campo, das águas e das florestas,
representantes de povos originários e comunidades tradicionais,
articulados em 450 organizações nacionais e internacionais de todos
os continentes. Somos movimentos populares, tradições religiosas e
espiritualidades, organizações não governamentais, universidades,
pesquisadores, ambientalistas, organizados em grupos, coletivos,
redes, frentes, comitês, fóruns, institutos, articulações,
sindicatos e conselhos.
Na grandeza dos povos, trocamos
experiências de conhecimento, resistência e de luta. E estamos
conscientes que a nossa produção é para garantir a vida e sua
diversidade. Estamos aqui criando unidade e força popular para
refletir e lutar juntos e juntas pela água e pela vida nas suas
variadas dimensões. O que nos faz comum na relação com a natureza
é garantir a vida. A nossa luta é a garantia da vida. É isso que
nos diferencia dos projetos e das relações do capital expressos no
Fórum das Corporações – Fórum Mundial da Água.
Também estamos aqui para denunciar
a 8º edição do Fórum Mundial da Água (FMA), o Fórum das
Corporações, evento organizado pelo chamado Conselho Mundial da
Água, como um espaço de captura e roubo das nossas águas. O Fórum
e o Conselho são vinculados às grandes corporações transnacionais
e buscam atender exclusivamente a seus interesses, em detrimento dos
povos e da natureza.
Nossas constatações sobre
o momento histórico
O modo de produção capitalista,
historicamente, concentra e centraliza riqueza e poder, a partir da
ampliação de suas formas de acumulação, intensificação de seus
mecanismos de exploração do trabalho e aprofundamento de seu
domínio sobre a natureza, gerando a destruição dos modos de vida.
Vivemos em um período de crise do capitalismo e de seu modelo
político representado pela ideologia neoliberal, na qual se busca
intensificar a transformação dos bens comuns em mercadoria, através
de processos de privatização, precificação e financerização.
A persistência desse modelo tem
aprofundado as desigualdades e a destruição da natureza, através
dos planos de salvamento do capital nos momentos de aprofundamento da
crise. Nesse cenário, as ações do capital são orientadas pela
manutenção a qualquer custo das suas taxas de juros, lucro e renda.
Esse modelo impõe à América
Latina e ao Caribe o papel de produtores de artigos primários e
fornecedores de matéria prima, atividades econômicas intensivas em
bens naturais e força de trabalho. Subordina a economia desses
países a um papel dependente na economia mundial, sendo alvos
prioritários dessa estratégia de ampliação da exploração a
qualquer custo.
O Brasil, que sedia esta edição do
FAMA, é exemplar nesse sentido. O golpe aplicado recentemente expõe
a ação coordenada de corporações com setores do parlamento, da
mídia e do judiciário para romper a ordem democrática e submeter o
governo nacional a uma agenda que atenda seus interesses rapidamente.
A mais dura medida orçamentária do mundo foi implantada em nosso
país, onde o orçamento público está congelado por 20 anos,
garantindo a drenagem de recursos públicos para o sistema financeiro
e criando as bases para uma onda privatizante, incluindo aí a
infraestrutura de armazenamento, distribuição e saneamento da água.
Quais são as estratégias das
corporações para a água?
Identificamos que o objetivo das
corporações é exercer o controle privado da água através da
privatização, mercantilização e de sua titularização,
tornando-a fonte de acumulação em escala mundial, gerando lucros
para as transnacionais e ao sistema financeiro. Para isso, estão em
curso diversas estratégias que vão desde o uso da violência direta
até formas de captura corporativa de governos, parlamentos,
judiciários, agências reguladoras e demais estruturas
jurídico-institucionais para atuação em favor dos interesses do
capital. Há também uma ofensiva ideológica articulada junto aos
meios de comunicação, educação e propaganda que buscam criar
hegemonia na sociedade contrária aos bens comuns e a favor de sua
transformação em mercadoria.
O resultado desejado pelas
corporações é a invasão, apropriação e o controle político e
econômico dos territórios, das nascentes, rios e reservatórios,
para atender os interesses do agronegócio, hidronegócio, indústria
extrativa, mineração, especulação imobiliária e geração de
energia hidroelétrica. O mercado de bebida e outros setores querem o
controle dos aquíferos. As corporações querem também o controle
de toda a indústria de abastecimento de água e esgotamento
sanitário para impor seu modelo de mercado e gerar lucros ao sistema
financeiro, transformando direito historicamente conquistado pelo
povo em mercadoria. Querem ainda se apropriar de todos os mananciais
do Brasil, América Latina e dos demais continentes para gerar valor
e transferir riquezas de nossos territórios ao sistema financeiro,
viabilizando o mercado mundial da água.
Denunciamos as transnacionais
Nestlé, Coca-Cola, Ambev, Suez, Veolia, Brookfield (BRK Ambiental),
Dow AgroSciences, Monsanto, Bayer, Yara, os organismos financeiros
multilaterais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário
Internacional, e ONGs ambientalistas de mercado, como The Nature
Conservancy e Conservation International, entre outras que expressam
o caráter do “Fórum das Corporações”. Denunciamos o crime
cometido pela Samarco, Vale e BHP Billiton, que contaminou com sua
lama tóxica o Rio Doce, assassinando uma bacia hidrográfica
inteira, matando inúmeras pessoas, e até hoje seu crime segue
impune. Denunciamos o recente crime praticado pela norueguesa Hydro
Alunorte que despejou milhares de toneladas de resíduos da mineração
através de canais clandestinos no coração da Amazônia e o
assassinato do líder comunitário Sergio Almeida Nascimento que
denunciava seus crimes. Exemplos como esses têm se reproduzido por
todo o mundo.
Os povos têm sido as vítimas desse
avanço do projeto das corporações. As mulheres, povos originários,
povos e comunidades tradicionais, populações negras, migrantes e
refugiados, agricultores familiares e camponeses e as comunidades
periféricas urbanas têm sofrido diretamente os ataques do capital e
as consequências sociais, ambientais e culturais de sua ação.
Nos territórios e locais onde houve
e/ou existem planos de privatização, aprofundam-se as
desigualdades, o racismo, a violência sexual e sobrecarga de
trabalho para as mulheres, a criminalização, assassinatos, ameaças
e perseguição a lideranças, demissões em massa, precarização do
trabalho, retirada e violação de direitos, redução salarial,
aumento da exploração, brutal restrição do acesso à água e
serviços públicos, redução na qualidade dos serviços prestados à
população, ausência de controle social, aumentos abusivos nas
tarifas, corrupção, desmatamento, contaminação e envenenamento
das águas, destruição das nascentes e rios e ataques violentos aos
povos e seus territórios, em especial às populações que resistem
às regras impostas pelo capital.
A dinâmica de acumulação
capitalista se entrelaça com o sistema hetero-patriarcal, racista e
colonial, controlando o trabalho das mulheres e ocultando
intencionalmente seu papel nas esferas de reprodução e produção.
Nesse momento de ofensiva conservadora, há o aprofundamento da
divisão sexual do trabalho e do racismo, causando o aumento da
pobreza e da precarização da vida das mulheres.
A violência contra as mulheres é
uma ferramenta de controle sobre nossos corpos, nosso trabalho e
nossa autonomia. Essa violência se intensifica com o avanço do
capital, refletindo-se no aumento de assassinato de mulheres, da
prostituição e da violência sexual. Tudo isso impossibilita as
mulheres de viver com dignidade e prazer.
Para as diversas religiões e
espiritualidades, todas essas injustiças em relação às águas e
seus territórios, caracterizam uma dessacralização da água
recebida como um dom vital, e dificultam as relações com o
Transcendente como horizonte maior das nossas existências.
Destacamos que para os Povos
Originários e Comunidades Tradicionais há uma relação
interdependente com as águas, e tudo que as atinge, e que todos os
ataques criminosos que sofre, repercutem diretamente na existência
desses povos em seus corpos e mentes. Esses povos se afirmam como
água, pois existe uma profunda unidade entre eles e os rios, os
lagos, lagoas, nascentes, mananciais, aquíferos, poços, veredas,
lençóis freáticos, igarapés, estuários, mares e oceanos como
entidade única. Declaramos que as águas são seres sagrados. Todas
as águas são uma só água em permanente movimento e transformação.
A água é entidade viva, e merece ser respeitada.
Por fim, constatamos que a entrega
de nossas riquezas e bens comuns conduz a destruição da soberania e
a autodeterminação dos povos, assim como a perda dos seus
territórios e modos de vida.
Mas nós afirmamos:
resistimos e venceremos!
Nossa resistência e luta é
legítima. Somos os guardiões e guardiãs das águas e defensores da
vida. Somos um povo que resiste e nossa luta vencerá todas as
estruturas que dominam, oprimem e exploram nossos povos, corpos e
territórios. Somos como água, alegres, transparentes e em
movimento. Somos povos da água e a água dos povos.
Nestes dias
de convívio coletivo, identificamos uma extraordinária diversidade
de práticas sociais, com enorme riqueza de culturas, conhecimento e
formas de resistência e de luta pela vida. Ninguém se renderá. Os
povos das águas, das florestas e do campo resistem e não se
renderão ao capital. Assim também tem sido a luta dos povos, dos
operários e de todos os trabalhadores e trabalhadoras das cidades
que demonstram cada vez maior força. Temos a convicção que só a
luta conjunta dos povos poderá derrotar todas as estruturas injustas
desta sociedade.
Identificamos que a resistência e a
luta têm se realizado em todos os locais e territórios do Brasil e
do mundo e estamos convencidos que nossa força deve caminhar e
unir-se a grandes lutas nacionais e internacionais. A luta dos povos
em defesa das águas é mundial.
Água é vida, é saúde, é
alimento, é território, é direito humano, é um bem comum sagrado.
O que propomos
Reafirmamos que as diversas lutas em
defesas das águas dizem em alto e bom som que água não é e nem
pode ser mercadoria. Não é recurso a ser apropriado, explorado e
destruído para bom rendimento dos negócios. Água é um bem comum e
deve ser preservada e gerida pelos povos para as necessidades da
vida, garantindo sua reprodução e perpetuação. Por isso, nosso
projeto para as águas tem na democracia um pilar fundamental. É só
por meio de processos verdadeiramente democráticos, que superem a
manipulação da mídia e do dinheiro, que os povos podem construir o
poder popular, o controle social e o cuidado sobre as águas,
afirmando seus saberes, tradições e culturas em oposição ao
projeto autoritário, egoísta e destrutivo do capital.
Somos radicalmente contrários às
diversas estratégias presentes e futuras de apropriação privada
sobre a água, e defendemos o caráter público, comunitário e
popular dos sistemas urbanos de gestão e cuidado da água e do
saneamento. Por isso saudamos e estimulamos os processos de
reestatização de companhias de água e esgoto e outras formas de
gestão. Seguiremos denunciando as tentativas de privatização e
abertura de Capital, a exemplo do que ocorre no Brasil, onde 18
estados manifestaram interesse na privatização de suas companhias.
Defendemos o trabalho decente,
assentado em relações de trabalho democráticas, protegidas e livre
de toda forma de precarização. Também é fundamental a garantia do
acesso democrático e sustentável à água junto à implementação
da reforma agrária e defesa dos territórios, com garantia de
produção de alimentos em bases agroecológicas, respeitando as
práticas tradicionais e buscando atender a soberania alimentar dos
trabalhadores e trabalhadoras urbanos e do campo, florestas e águas.
Estamos comprometidos com a
superação do patriarcado e da divisão sexual do trabalho, pelo
reconhecimento de que o trabalho doméstico e de cuidados está na
base da sustentabilidade da vida. O combate ao racismo também nos
une na luta pelo reconhecimento, titulação e demarcação dos
territórios dos povos originários e comunidades tradicionais e na
reparação ao povo negro e indígena que vive marginalizado nas
periferias dos centros urbanos.
Nosso projeto é orientado pela
justiça e pela solidariedade, não pelo lucro. Nele ninguém passará
sede ou fome, e todos e todas terão acesso à água de qualidade,
regular e suficiente bem como aos serviços públicos de saneamento.
Nosso plano de ações e
lutas
A profundidade de nossas debates e
elaborações coletivas, o sucesso da nossa mobilização, a
diversidade do nosso povo e a amplitude dos desafios que precisam ser
combatidos nos impulsionam a continuar o enfrentamento ao sistema
capitalista, patriarcal, racista e colonial, tendo como referência a
construção da aliança e da unidade entre toda a diversidade
presente no FAMA 2018.
Trabalharemos, através de nossas
formas de luta e organização para ampliar a força dos povos no
combate à apropriação e destruição das águas. A intensificação
e qualificação do trabalho de base junto ao povo, a ação e a
formação política para construir uma concepção crítica da
realidade serão nossos instrumentos. O povo deve assumir o comando
da luta. Apostamos no protagonismo e na criação heroica dos povos.
Vamos praticar nosso apoio e
solidariedade internacional a todos os processos de lutas dos povos
em defesa da água denunciam a arquitetura da impunidade, que, por
meio dos regimes de livre-comércio e investimentos, concede
privilégios às corporações transnacionais e facilitam seus crimes
corporativos.
Multiplicaremos as experiências
compartilhadas no Tribunal Popular das Mulheres, para a promoção da
justiça popular, visibilizando as denúncias dos crimes contra a
nossa soberania, os corpos, os bens comuns e a vida das mulheres do
campo, das florestas, águas e cidades.
A água é dom que a humanidade
recebeu gratuitamente, é direito de todas as criaturas e bem comum.
Por isso, nos comprometemos a unir mística e política, fé e
profecia em suas práticas religiosas, lutando contra os projetos de
privatização, mercantilização e contaminação das águas que
ferem a sua dimensão sagrada.
O Fórum Alternativo Mundial da Água
(FAMA) apoia, se solidariza e estimulará todos os processos de
articulação e de lutas dos povos no Brasil e no mundo, tais como a
construção do “Congresso do Povo”, do “Acampamento Terra
Livre”, da “Assembleia Internacional dos Movimentos e
Organizações dos Povos”, da “Jornada Continental pela
Democracia e Contra o Neoliberalismo”; da campanha internacional
para desmantelar o poder corporativo e pelo “tratado vinculante”
como ferramenta para exigir justiça, verdade e reparação frente
aos crimes das transnacionais.
Convocamos todos os povos a lutar
juntos para defender a água. A água não é mercadoria. A água é
do povo e pelos povos deve ser controlada.
É tempo de esperança e de luta. Só
a luta nos fará vencer. Triunfaremos!
Assinam a declaração:
Articulação
dos Povos Indígenas do Brasil
Articulação Semiárido
Brasileiro
Associação Brasileira de Saúde Coletiva
Associação
Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento
Cáritas
Brasil
Central de Movimentos Populares
Conselho Nacional das
Populações Extrativistas
Confederação Nacional dos
Urbanitários
Confederação Nacional das Associações de
Moradores
Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades
Negras Rurais Quilombolas
Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do
Brasil
Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Agricultura
Comissão Pastoral da Terra
Confederação Sindical
de Trabalhadores/as das Américas
Central Única dos
Trabalhadores
Federação de Órgãos para Assistência Social e
Educacional
Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o
Meio Ambiente e o Desenvolvimento
Federação Nacional das
Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal
Federação
Interestadual de Sindicatos de Engenheiros
Frente Nacional pelo
Saneamento Ambiental
Federação Nacional dos
Urbanitários
Federação Única dos Petroleiros
Fórum de
Mudanças Climáticas e Justiça Social
Instituto Brasileiro de
Proteção Ambiental
Internacional de Serviços Públicos
Marcha
Mundial das Mulheres
Movimento dos Atingidos por
Barragens
Movimento dos Pequenos Agricultores
Movimento de
Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil
Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra
Movimento dos Trabalhadores Sem
Teto
ONG Proscience
Rede Mulher e Mídia
Serviço
Interfranciscano de Justiça Paz e Ecologia
Sociedade
Internacional de Epidemiologia Ambiental