Prá conhecer um índio.
por Ulisses Capozzoli
Quem quiser conhecer um índio deve
visitá-lo em sua casa, na floresta. O que nem sempre é possível e
isso os separa de nós. O índio que aparece, quase sempre, na TV e
no jornal, pintado e repleto de adornos, é um índio em dia de
festa. No cotidiano, são despojados. Devem cultivar as roças:
milho, batata, abacaxi, banana e, claro, a mandioca, base da comida e
bebida. Além disso, há a pesca, feita de muitas maneiras: solitária
ou coletiva. Com anzol, rede ou flecha, quando a abundância permite.
Tambaquis amazônicos, com seus corpos prateados, podem ser abatidos
com flecha, no caso de uma pontaria refinada, o que todo índio tem,
de uma ou outra maneira. Por um longo aprendizado e tradição.
Índios adoram armas leves, calibre 22, para a caça de macacos,
veados, paca e animais menores. Onça não é motivo de caça. É
vingança, contra as mais atrevidas que podem invadir uma aldeia e
levar um cachorro, o que deixa um índio indignado. Pela perda de um
amigo próximo e fiel.
Na pesca coletiva, cada um pega, dos
que estão pescando, com timbó, em lagos à margem de rios, quanto
peixe precisar. Dependendo do tamanho da família. Nem mais, nem
menos. As índias, que recolhem os peixes, retiram suas escamas com
um movimento hábil de unhas, deslocando-as como uma cunha, no
sentido cauda-cabeça. E num fogo pequeno, de madeira resinosa e
perfumada, em poucos minutos ele pode ser comido, com um acentuado
toque de pimenta.
Um índio é uma multiplicidade
fascinante de índios: corpos, costumes, língua, maneiras, tradições
e artes. Alguns cultivam cerâmica, outros preferem enfeites. Há
quem tenha apreço particular pela palavra, caso dos Caiabi, de quem
conheci um dos líderes: o mítico Prepori, que já não vive mais na
Terra. Índios barganham suas produções em encontros com
“parentes”, como eles se referem a outras etnias. Ou em festas.
Índios adoram festas, o que ficou gravado entre nós, brasileiros,
festeiros. Todo índio é um refinado observador.
Orlando Villas-Boas, com quem tive o
privilégio de conviver, amava particularmente os Juruna, a quem
atribuiu sempre a nobreza da coragem e confiança. Você pode, a
propósito da palavra “Juruna”, lembrar-se de Mário Juruna que
foi deputado, com seu gravador sob os braços para gravar palavras de
“branco”, criatura esquiva e que se caracteriza por não
sustentar o que diz. Mas Mário Juruna era Xavante, um dos bravos
Xavante, e seu nome uma homenagem de seus pais aos parentes dessa
etnia. Muitos “brancos” (café-com-leite que somos a maioria de
nós que se enxergam como “brancos) não conhecem nada de um índio.
O presidente da República,
literalmente um paraquedista, expulso do exército por insubordinação
e mal comportamento, é um deles. Por isso fala tanta tolice sobre
índios, entre outras sandices, e está, de muitas maneiras,
determinado a encerrar a história deles sobre a Terra, se pudesse
fazer isso. No Brasil, está tentando eliminar os índios com toda a
determinação e tem a companhia de seus ministros, gente rude, de
pouca ou quase nenhuma cultura. Preconceituosos, no sentido de não
entender a pluralidade da vida. Ressentidos e amargos, que se se
relacionam de forma agressiva com as pessoas.
Índios são humanos, teve de
reforçar um papa no século 16, e chegaram à América por caminhos
ainda não inteiramente decifrados a um tempo que pode chegar a 50
mil anos, segundo suspeita a arqueóloga, e também antropóloga por
força das circunstâncias, Niéde Guidon, que faz pesquisas nessa
área na Serra da Capivara, Sul do Piauí.
A história dos índios na América
é permeada de tragédia e parte dela está registrada num belíssimo
livro, do jornalista e editor Dorris Alexander (Dee) Brown: “Enterrem
meu coração na curva do rio”.
Lá estão as lutas e os lamentos
de chefes como Nuvem Vermelha (1822-1909), dos Sioux que incluíram
ainda, Cavalo Americano (1840-1908), filho adotivo de Nuvem Vermelha,
Touro Sentado (1831-1890) e Cavalo Louco (1840-1877), além de
Gerônimo (1929-1909), dos Apaches. O executor de parte das matanças
nos Estados Unidos também foi um militar, patife e doentio, o
tenente-coronel George Armstrong Custer (1839-1876). Há ainda, como
fonte de resistência, o vigoroso e poético discurso atribuído ao
Chefe Seattle (1786-1866), líder dos Duwamish, da costa oeste
americana. Uma fala de fazer inveja ao mesmo sensível dos
conservacionistas. No Brasil, entre os muitos resistentes indígenas
está Prepori, dos Caiabi, que conheci de surpresa numa manhã,
quando acordei com ele, pintado de preto, a cor da guerra, numa rede
em que dormia entre duas árvores no Médio Xingu.
Índios não são fazendeiros, não
perseguem o lucro e dão respostas longas a uma pergunta simples.
Contam a história de seus pais, avós, dos pais de seus avós e
outros ancestrais para dar sentido a um relato.
Interpretações sumárias dizem que
índios querem dinheiro e boa vida. Mas, neste caso, são povos
inteiros seduzidos e viciados pelo comportamento dos brancos e quando
agem assim ou se embebedam, são censurados. Como se fossem
malfeitores.
Foto: Orlando
Villas-Boas entrega roupas a índios Kuikuro à época da criação
do Parque Indígena do Xingu, em 1961.
*Ulisses
Capozzoli, entre outras atividades interessantes, foi editor da
revista Scientific American Brasil.
Fonte:
ENVOLVERDE
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